Ano da edição original: 1963 / 1967
Autor: Maria Judite de Carvalho
Editora: Minotauro
A presente coleção reúne a obra completa de Maria Judite de Carvalho, considerada uma das escritoras mais marcantes da literatura portuguesa do século XX. Herdeira do existencialismo e do nouveau roman, a sua voz permanece intemporal, tratando com mestria e um sentido de humor único temas fundamentais, como a solidão da vida na cidade e a angústia e o desespero espelhados no seu quotidiano anónimo. Observadora exímia, as suas personagens revelam o ritmo fervilhante de uma vida avassalada por multidões, mas sempre reclusas em si mesmas, separadas por um monólogo da alma infinito.
O segundo volume reúne duas coletâneas de contos - Paisagem sem Barcos (1963) e O seu Amor por Etel (1967) - e uma novela - Os Armários Vazios (1966).
Mais um volume a não perder da Maria Judite de Carvalho. Acho que será mais eficaz se vos deixar excertos de alguns dos textos que compõem este segundo volume das Obras Completas desta escritora surpreendente.
Leiam que não se vão arrepender.
Boas leituras!
Paisagem Sem Barcos (pág. 31)
"Quando deixara ele de ser ele? Perdera-se pelo caminho e só ficara como recordação para a posteridade a sua imutável efigie em cera. Uma figura falante, era verdade, mas porque não seriam falantes as figuras de cera, desde que as palavras que dissessem fossem de cera também? Havia qualquer coisa nele... Não sabia bem explicar; assim de repente nunca soube explicar coisa nenhuma, nem mesmo a sim própria, em silêncio. Era preciso observá-lo com atenção, deitar fora toda a subjetividade, estudá-lo por alguns momentos com um olhar frio crítico. O olhar aquoso que-fora-azul por detrás dos óculos de tartaruga, o nariz direito, a boca grande e delgada, quase sem lábios, de cantos profundos, o queixo largo, as mãos perfeitas, o fato de bom corte. Que mais? Não muito, certamente, porque ele se fora transformando com o tempo numa efigie, a sua. Lá dentro, numa espécie de nife, havia várias camadas secretas, sobrepostas, bem escondidas. Jô tinha-as conhecido, mas não sabia se algumas delas ainda existiam ou se haviam sido asfixiadas pela carapaça exterior. Não sabia e nunca viria a sabê-lo, pensou. Era tarde demais."
Anica nesse tempo (pág. 99)
"O major ria ainda, sem bem saber de quê. Ria por mimetismo ou por fraqueza. Por receio de não colaborar. «Sou um fraco», pensou melancolicamente. «Sempre o fui. Que teria sido de mim numa guerra? Ou num país ocupado? Que teria feito se fosse necessário fazer qualquer coisa, sair do rebanho?» Estava farto, ansioso por se encontrar sozinho em casa. Aquilo acontecia-lhe quase sempre em sociedade. Ter a visão nítida de que à sua volta todos representavam um papel importante ou secundário, mas de antemão escolhido, e só ele desmanchava o conjunto passeando por entre os artistas, sem maquilhagem nem trajo adequado, nem frase para dizer no momento próprio, só ele estragava o espetáculo como um dia, em menino, quando durante a festa do colégio atravessara, a correr e soltando gritos agudos de índio sioux, o palco onde uma rapariguinha de cara de lua declamava com trémulos na voz: «Meus amigos e meus parentes, eu sou uma pobre viúva a quem Deus privou de toda a força e amparo neste mundo.» Nesse dia, porém, tinham-no aplaudido - fora tão inesperado - enquanto a menina, embrião de atriz, tinha uma violenta crise de choro. Agora não lhe davam palmas, não. Achavam-no certamente impopular, criticavam-no talvez quando voltavas as costas, falavam, era natural, de Luísa e talvez «a compreendessem»."
Os Armários Vazios (pág. 139)
"Foi um dia de Primavera que começou e acabou como todos os outros, pelo menos aparentemente, diria ela, ou, melhor, era natural que o pensasse; nunca foi pessoa de muitas falas. Dizia o necessário, mas reduzido ao mínimo indispensável, ou então um necessário que depressa se cansava, se detinha a meio caminho, como se ela se desse subitamente conta de que não valia a pena prosseguir, porque isso era um esforço inútil. Ficava então quieta, sem gestos, hesitante à beira das reticências como alguém à beira de água de inverno, e nesses momentos o seu olhar perdia todo o brilho, era como se um mata-borrão o houvesse absorvido, talvez ainda seja assim, não sei, nunca mais a vi. Durante muito tempo não consegui perceber que esses desmaios, porque o eram, a conduziam invariavelmente ao mesmo lugar, ou, melhor, à mesma pessoa, à mesma imagem danificada de pessoa, porque, como já disse, não era mulher que se confessasse. As palavras não lhe serviam para explicar o seu pensamento, aperfeiçoando-o ou disfarçando-o, como é mais ou menos hábito de toda a gente. Só as utilizava, e em última instância, para dizer o que era urgente."
O Seu Amor por Etel (pág. 247)
"Nos dias em que se travavam esses diálogos mais ou menos tontos, mas para ele tão preciosos, regressava sempre a casa calado e amargo após o entusiasmo, e com uma grande vontade de morrer. Eram os dias em que, fechado à chave no seu quarto modesto, passava em revista, estudando-lhes os prós e os contras - primeiro uns, depois os outros -, todas as possibilidades de pôr termo àquela existência morna e sem interesse onde nunca haveria Etel: os gás, os pulsos cortados com uma lâmina, o tubo da Aspirina. Pensava também, minuciosamente , recitando a meia voz algumas frases mais significativas, na carta que escreveria a Etel nos últimos instantes, confessando-lhe o seu desesperado amor. Estacava sempre, porém, a boa distância do precipício. Tentava-o, afinal de contas, a vida ainda não vivida e o desejo de tornar a ver Etel, de falar novamente com ela, mesmo de assuntos superficiais e dolorosos, que nunca conduziriam a nada.
Em dias mais serenos, sobretudo quando não a encontrara, conseguia encarar, quase friamente e com a objetividade necessária, o seu caso, e mesmo troçar um pouco de si próprio. Como podia Etel amá-lo?, pensava nesses dias. Era feio, pobre, de baixa condição. Nunca fora excecional em coisa alguma, e na escola comercial ia passando à justa. Ora não havia na cidade, por mais que pensasse, ninguém que merecesse Etel. Se ela gostasse dele, não seria quem era. Porque não afastar então esse estúpido sonho que tomara posse do seu corpo e do seu coração?"