outubro 06, 2024

Da Meia-Noite às Seis - Patrícia Reis

Título: Da Meia-Noite às Seis
Ano da edição original: 2021
Autor: Patrícia Reis
Editora: Edições D. Quixote

"Num mundo assolado ela instabilidade, a pergunta da canção de Caetano Veloso mantém-se: «Existimos: a que será que se destina?»

Escrita num registo de intimidade que nos envolve, esta narrativa segue a vida, presente e passada, de personagens que se cruzam e cujas opções de vida reflectem o que é prioritário em tempos de pandemia.

Da Meia-Noite às Seis é o regresso de Patrícia Reis ao espaço literário que define a singularidade, a subtileza e a sabedoria da sua voz: o território da complexidade das relações humanas e da busca de identidade."

Da Meia-Noite às Seis, passa-se durante a pandemia de Covid-19, numa realidade mais ou menos fiel ao que todos nós vivemos, embora no livro pareça que o confinamento terá sido mais prolongado, e é nesse contexto que conhecemos a Susana e o António Ribeiro de Andrade, o Rui Vieira, o Miguel Noronha e a Laura.

Susana trabalha na rádio, à qual regressa, após um período de luto pela morte do marido que morreu com covid. Regressa para o horário da meia-noite às seis, para o qual se voluntariou, porque não se sente capaz de enfrentar os dias, a luz e o sol. Descobre no horário da noite uma forma de fazer o luto pelo amor da sua vida e pelo tanto que ficou por viver. Vamos conhecendo a Susana e, através dela António, o marido que morreu cedo demais e a deixou perdida num mundo cada vez mais estranho.

Rui Vieira, também trabalha na rádio. A mesma onde Susana trabalha mas, nunca se tinham cruzado porque, ela trabalhava de dia e ele fazia parte da equipa da noite. O Rui teve um acidente grave, há uns anos, que o deixou com algumas sequelas, sendo que a mais visível é nunca mais ter dito uma palavra. Ficou mudo e, por isso, passou a escrever as notícias para que outros locutores as leiam na rádio. Foi também, na sequência do acidente, que toda a sua família ficou a saber que Rui é gay e, desde então nunca mais falou com os pais.
É no turno da meia-noite às seis que Rui e Susana  se conhecem, trocam emails, e é assim que dão início a uma bonita amizade que os vai ajudar a sobreviver e a superarem as suas tristezas.

Miguel Noronha, quando o conhecemos, namora com o Rui. É um homem do norte, que pertence a uma família com algum nome, é ambicioso e um pouco frio e distante nas relações amorosas. Tem alguma dificuldade em assumir compromissos. Nem ele nem Rui percebem muito bem que tipo de relação têm e o que pretendem um do outro.

Laura é a irmã do Rui, a única que continua presente na sua vida, depois de os pais se terem afastado do irmão por causa da sua homossexualidade. Laura é aquilo que todos esperam dela, sorridente, disponível, boa filha, casada com alguém que os pais aprovam e com dois filhos. Avessa ao confronto e com medo de desiludir os pais, vive presa a um casamento infeliz. Nunca abandonou o irmão que, juntamente com Miguel Noronha, ajudou a recuperar após o acidente.

Patrícia Reis é uma das favoritas, embora, como leitora, reconheça que nem tudo o que escreve é igualmente inspirado. No entanto, gosto muito da forma como escreve e das histórias que nos dá a conhecer. 
No caso deste Da Meia-Noite às Seis, acho que é dos que gostei. É um livro pequeno, que se lê muito bem e é fácil gostarmos das personagens.
Ainda não sei se é demasiado cedo para lermos ficção que tem como pano de fundo a realidade vivida durante a pandemia. Confesso que me desconcentrou um pouco, embora a história não seja de todo sobre a Covid, traz de volta algumas das sensações daqueles tempos. E, por estar num livro, quase parece ficção científica. É um pouco estranho, não nego.

Recomendo sempre Patrícia Reis, sem qualquer hesitação.

Boas leituras!

Excerto (pág. 80):
"A tarefa, que inicialmente lhe parecera ser mais uma pedra de Sísifo, outra forma de se torturar, era agora uma razão para sair do sofá, para fazer o reconhecimento nocturno de uma cidade que amava desde sempre, era Lisboa, a cidade boa, cidade que a vira crescer e sobre a qual dominava, sabia dela os segredos de quem a ela pertence. Certas vezes, calhava-lhes inventar uma casa no campo, com árvores de fruto e uma horta, António Ribeiro de Andrade dizia que, bem vistas as coisas, era apenas a poesia do campo a invadi-los, porque nunca teriam dinheiro para comprar uma casa, nem mesmo no interior desértico do país. Apreciavam a cidade, sabiam-lhe os recantos. Com a pandemia e o vírus a afugentar as pessoas da rua, havia algo moribundo que deixava Lisboa triste, num lugar impreciso entre a beleza e a maldade. Sou muito urbana, nunca conseguiria viver no campo, tu, que és artista, também não terias como, e ele abanava a cabeça e assegurava que não, ele poderia viver no campo. Nunca tinham imaginado a morte de um ou do outro, não falaram da morte, era um amor demasiado novo. Falavam de casas, era uma construção mental, algo que os remetia para o futuro, para uma vivência tranquila com árvores de fruto."

outubro 05, 2024

[Ebook] Into the Water - Paula Hawkins

Título: Into the Water
Ano da edição original: 2017
Autor: Paula Hawkins
Editora: Transworld Publishers

"Just days before her sister plunged to her death, Jules ignored her call. Now Nel is dead. They say she jumped. And Jules must return to her sister's house to care for her daughter, and to face the mystery of Nel's death. But Jules is afraid. Of her long-buried memories, of the old Mill House, of this small town that is drowning in secrecy . . . And of knowing that Nel would never have jumped."

Jules é uma mulher insegura, com excesso de peso e que vive sozinha, longe da única família que lhe resta, a irmã mais velha Nel, com quem tem uma relação complicada, recheada de traumas, rancores e mal-entendidos e, longe da sobrinha, agora adolescente e que praticamente não conhece.

Jules regressa a casa dos pais, onde Nel e a sobrinha viviam, quando sabe que Nel se atirou ao rio da sua infância, morrendo afogada. O rio, conhecido na cidade por Drowning Pool, é temido por Jules desde um episódio traumático em criança, em que quase morreu afogada.

Este regresso traz de volta a Jules memórias de tempos menos felizes e que preferia não ter de desenterrar. Mas a morte repentina e suspeita da irmã e, a necessidade de cuidar da sobrinha, não lhe permitem fugir para voltar à sua vida.
Jules não acredita que a irmã se tenha suicidado e, na tentativa de perceber o que aconteceu, vai ter de enfrentar os seus traumas de infância e as memórias do que aconteceu e que a levou a afastar-se da irmã. 
É no decorrer desse processo que Jules se vai apercebendo de que, o que recorda pode estar distorcido pela visão da pré-adolescente insegura e inadaptada que era na altura. É com tristeza que se vai apercebendo que, provavelmente, foi injusta com a irmã e, é também por isso, que não a pode abandonar mais uma vez. Quer que toda a verdade seja descoberta e poder ajudar a sobrinha a ultrapassar a perda da mãe. 

É um livro que, mais uma vez, toca no tema da memória e na forma como recordamos o que nos acontece. Até que ponto o que retemos é ou não fiel ao que efectivamente se passou. Estará a nossa memória condicionada pelo nosso estado de espírito e preconceitos? 

É também um livro que fala da violência contra as mulheres e do muito que há para ser feito na prevenção e na proteção das vítimas. 

Paula Hawkins tem sido uma boa surpresa. É consistente na qualidade dos livros que já li dela e dos quais gostei mesmo muito. Gosto da escrita, das temáticas que aborda, da forma como nos vai desvendado as coisas e das personagens que cria. Resumindo, gosto de tudo. :)

Recomendo sem qualquer hesitação. 

Boas leituras!

Excerto:
"There's was something you wanted to tell me, wasn't there? What was it you were trying to say? I feel like I drifted out of this conversation a long time ago. I stopped concentrating, I was thinking about something else, getting on with things, I wasn't listening, and I lost the thread of it. Wells, you've got my attention now. Only I can't help thinking I've missed out on some of the more salient points. 
When they came to tell me, I was angry. Relieved first, because when two police officers turn up on your doorstep just as you're looking for your train ticket, about to run out of the door to work, you fear the worst. I feared for the people I care about - my friends, my ex, the people I work with. But it wasn't about them, they said, it was about you. So I was relieved, just for a moment, and then they told me what had happened, what you've done, they told me that you'd been in the water and then I was furious. Furious and afraid. 
I was thinking about what I was going to say to you when I got there, how I knew you'd done this to spite me, to upset me, to frighten me, to disrupt my life. To get my attention, to drag me back to where you wanted me. And there you go, Nel, you've succeeded: here I am in the place I never wanted to come back to, to look after your daughter, to sort out your bloody mess."

setembro 04, 2024

[Ebook] Olive Kitteridge - Elizabeth Strout

Título: Olive Kitteridge
Ano da edição original: 2008
Autor: Elizabeth Strout
Tradução: Tânia Ganho
Editora: Alfaguara

"Em Crosby, uma pacata povoação costeira no Maine, todos conhecem Olive Kitteridge, a temível professora de Matemática do liceu, agora reformada, e Henry, o seu marido, farmacêutico gentil.
E talvez não haja ninguém que conheça tão bem quanto Olive os segredos e os dramas dos habitantes da vila: o desespero de um ex-aluno que perdeu a vontade de viver; uma pianista alcoólica vítima de uma mãe castradora; uma mãe destroçada pelo crime hediondo do filho; um homem que descobre a ferocidade e as consequências do amor; e a solidão da própria família de Olive, à mercê dos seus caprichos.
Lamentando os ventos de mudança que varrem a sua vila e o mundo, sempre pronta a apontar um dedo crítico, Olive nem sempre dedica aos que a rodeiam a sensibilidade ou tolerância que mereceriam. Mas à medida que todas estas vidas se vão entrelaçando, Olive começa a conhecer-se melhor e a compaixão - pelos outros e por si própria - ganha terreno ao preconceito.
Nas mãos de Elizabeth Strout - autora elogiada pelo olhar clínico sobre a condição humana - a sonolenta vila esquecida na margem do Atlântico torna-se o mundo inteiro, e os seus habitantes somos todos nós, enredados no drama e no milagre diários da vida, com os seus conflitos, tragédias, alegrias - e a coragem que viver sempre exige."

A sinopse é um bom resumo do que esta história é - a vida de uma comunidade numa vila pequena, onde todos se conhecem, ou acham que se conhecem. 
Em Crosby ninguém se mete na vida de ninguém, no entanto todos sabem da vida um dos outros e, embora seja uma vila pequena, não sentimos muito aquela mítica solidariedade e envolvimento do lugares mais isolados ou, então é porque os conhecemos pelos olhos de Olive Kitteridge. Mas o que sentimos é que todos, de uma forma geral, têm histórias de vida difíceis, com traumas, suicídios, doenças mentais e com segredos e, por isso, acabam por se manter todos, focados nos seus próprios problemas.
Olive é uma professora de matemática aposentada, de caráter duro, pouco simpática e pouco dada a sentimentos. Parece ser sempre empurrada para fazer alguma coisa pelos outros, sempre contrariada e de mau-humor. Mas, não é por isso que deixamos de sentir que, lá no fundo, Olive é boa pessoa só não é uma pessoa muito feliz e, provavelmente não sabe como sê-lo.

Ao longo da história vamos notando em Olive algumas mudanças, subtis, à medida que o seu mundo parece crescer e a sua tristeza e rabugice parecem ceder. A Olive do último parágrafo já não é bem a mesma que nos é apresentada nas primeiras páginas, embora a sua essência permaneça inalterada.

Olive Kitteridge é, na minha cabeça, uma típica história norte-americana, tudo o que é descrito me parece familiar por causa dos muitos filmes americanos que já vi. É mau, Olive Kitteridge ser "tão" americano? Não me parece que seja. A escrita é fluida, a narrativa tem um bom ritmo, conseguimos adivinhar que será um filme (já existe uma minisérie com a fantástica Frances McDormand) mas, neste caso, nada disto é mau. Funciona porque a escrita de Elizabeth Strout é boa e a história também é boa. 

Gostei da escrita, da história e da forma como nos vai contando a vida dos habitantes de Crosby. Gostei, naturalmente de Olive, mulher complexa, dura, difícil de gostar, tensa, dorida mas sem deixar de ter esperança de que a vida lhe traga algo de diferente. É uma personagem que ficou comigo durante algum tempo e isso, para quem lê muito, não é assim tão comum. :)

Recomendo sem qualquer hesitação.

Boas leituras!

Excerto:
"A tarde inteira, Olive lutou contra a sensação de se mover debaixo de água: uma sensação horrível e assustadora, uma vez que, por algum motivo, nunca aprendeu a nadar. Entalando o guardanapo de papel entre as ripas da mesa de piquenique, pensa: Pronto, para mim chega, e baixando os olhos para evitar ficar presa em mais uma conversa de chacha, dirige-se para a parte lateral da casa e transpõe uma porta que dá diretamente para o quarto do filho. Atravessa o soalho de pinho, reluzindo ao sol, e deita-se na cama grande de Christopher (e de Suzanne).
O vestido de Olive - importante, claro, uma vez que ela é a mãe do noivo - é feito de uma diáfana musselina verde, estampada com uns grandes gerânios rosa-avermelhados, e ela tem de se estender cuidadosamente na cama para não o amarrotar todo e também para ter um ar decente, se por acaso entrar alguém. Olive é uma pessoa grande. Tem noção disso, mas nem sempre foi grande e, por vezes, ainda tem a sensação de que não se habituou ao seu tamanho. É verdade que sempre foi alta e amiúde se sentiu desajeitada, mas o ser grande foi uma coisa que aconteceu com a idade; os tornozelos incharam, os ombros ganharam um rolo de gordura atrás no pescoço e os pulsos e as mãos pareceram adquirir dimensões masculinas. Olive importa-se com isso, é claro que se importa; por vezes, intimamente, importa-se muitíssimo. Mas, nesta altura da vida, não está para abandonar os prazeres reconfortantes da comida e isso significa que, naquele instante, provavelmente parece uma foca gorda a dormitar, enrolada numa espécie de ligadura de gaze. Mas o vestido até ficou bem, diz para si própria, recostando-se e fechando os olhos. Muito melhor do que as roupas escuras e soturnas que os elementos da família Bernstein decidiram vestir, como se tivessem sido convidados para um funeral e não para um casamento, naquele radioso dia de Junho."

agosto 30, 2024

O Dia da Expiação - David Liss

Título original: The Day of Atonement
Ano da edição original: 2014
Autor: David Liss
Tradução: Inês Castro
Editora: Clube de Autor

"Lisboa é o palco desta história fascinante narrada por um dos principais romancistas históricos norte-americanos.

O Dia da Expiação combina minuciosos pormenores de época com a história de um homem que deseja justiça e vingança.

1755. Um homem regressa do exílio determinado em vingar-se da Inquisição, que lhe havia destruído a família. Mas numa cidade marcada pela pobreza, injustiça e intolerância religiosa, não será fácil distinguir os aliados dos inimigos."

Tenho um carinho especial por David Liss. Não sei porquê, talvez por fazer tantas referências a Portugal, não sei, mas desde que Benjamin Weaver entrou na minha vida com A Conspiração do PapelDavid Liss ganhou um lugarzinho especial no meu coraçãozinho de leitora. 

O Dia da Expiação, passa-se numa altura em que a Inquisição ainda aterrorizava Portugal, com muita atividade, especialmente em Lisboa. 
Os novos cristãos (judeus convertidos) eram o alvo preferido dos inquisidores da Santa Fé, tinham algumas posses e, também por isso, acabavam por criar à sua volta alguns inimigos que os iam denunciando pela prática proibida do judaísmo, mesmo que isso não fosse verdade. Ao serem presos e condenados, toda a sua fortuna e todos os seus bens eram transferidos para a Inquisição. 

O nosso protagonista, Sebastião Raposa, é filho de novos cristãos, denunciados à Inquisição por praticarem a fé judaica. Os pais acabam por morrer nas masmorras da Inquisição, não sem antes assegurarem que o único filho, uma criança de 12 anos, consegue fugir para Londres, ficando ao cuidado no nosso já conhecido Benjamin Weaver. 

Londres, na altura era o refúgio de muitos cristãos-novos e de judeus praticantes. Era uma cidade tolerante nesse sentido. Desde que os negócios não fossem prejudicados, todas as religiões eram toleradas. Para além disso, Londres era um refúgio porque muitos ingleses viviam em Lisboa onde tinham negócios muito lucrativos. Os ingleses e seu protestantismo eram tolerados em Lisboa porque, enfim mais uma vez havendo dinheiro envolvido tudo se vai resolvendo. 

Benjamin Weaver vai ensinar tudo o que sabe ao nosso protagonista e o nosso protagonista vai aprender tudo, nunca esquecendo o nome do padre que prendeu os pais. Não consegue ultrapassar o ódio que sente e, é por isso que, assim que pode, regressa a Lisboa com uma identidade falsa, para se vingar do padre Pedro Azinheiro, o mais temível inquisidor do país.

Sebastião parte para Lisboa com o coração cheio de raiva e com sede de vingança mas parte também com o desejo de reencontrar parte da sua infância. Tem esperança de reencontrar Gabriela, a namorada na época e que a separação forçada não permitiu esquecer. 
Em Lisboa, Sebastião vai encontrar muito mais do que aquilo que o levou até lá, vai conhecer novas pessoas, reencontrar outras, vai ser enganado e vai enganar e as suas ações vão provocar reações que ultrapassam as suas intenções.

Quando confrontado com a possibilidade de cumprir as sua vingança, destruindo Pedro Azinheiro, Sebastião hesita porque o Sebastião que decidiu regressar a Lisboa não é o mesmo que fugiu dela com 12 anos e, todas as peripécias que viveu desde que desembarcou na cidade, colocaram em causa muito do que o movia antes. Irá Sebastião dar ouvidos à sua raiva e ao seu ódio pela Inquisição ou, o regresso a Lisboa acabou por apaziguar a sua dor?

Este O Dia da Expiação, talvez por não ser um livro de Benjamin Weaver, embora ele tenha um papel breve mas importante na história, não me encheu as medidas. Achei-o um pouco aborrecido porque a história se estendeu e tornou-se repetitivo e previsível.  No entanto, gostei bastante da descrição da Lisboa do século XVIII, antes de ser dizimada pelo terramoto de 1755, evento que faz parte da história contada no livro. 

Gosto de David Liss e, por isso só posso recomendar. É um livro bastante interessante e que se lê muito bem.

Boas leituras!

Excerto (pág. 47):
"Desviei o olhar. Abandonara o meu pai na prisão da Inquisição. Deixara a minha mãe sozinha. A sobrevivência não era, em si mesma, heroica. A mera sugestão enraiveceu-me e, para minha surpresa, dei por mim a abraçar a raiva. Era a primeira vez desde que me escondera no porão do paquete que sentia outra coisa para além de medo ou tristeza. Queria agarrar-me àquela raiva, alimentá-la como a faísca que se torna chama, porque talvez queimasse e fizesse desaparecer tudo o resto." 

agosto 28, 2024

E Três Maçãs Caíram do Céu - Nariné Abgarian

Título original: C неба уnалu mpu яблока
Ano da edição original: 2015
Autor: Nariné Abgarian
Tradução (do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Editorial Presença

"Em Maran, uma pequena aldeia aninhada nas montanhas arménias, os sonhos, as pragas e os milagres são produtos da realidade, intocados pelo tempo. É neste lugar perdido que encontramos Anatólia, tranquila, deitada na sua cama, à espera da morte, convicta de que só isso pode acontecer. Anatólia teve uma vida longa, não foi mãe como tanto desejou, passou anos a cuidar da biblioteca da aldeia, centro da sua pouca felicidade, e foi mulher num casamento em que o sofrimento substituiu o amor. Agora, sabe-o, vai morrer. Porém, Vassíli, o vizinho, entra de surpresa em sua casa: ele tem outros planos e uma proposta inesperada para lhe fazer.

E assim começa a história que vai transformar a aldeia de Maran, uma história que mescla realidade e fábula, que confunde as fronteiras do racional e do onírico, e não deixa ninguém - naquela aldeia ou deste lado do romance - indiferente."


Acho que a primeira palavra que me vem à cabeça quando penso neste livro é Beleza. Beleza nas palavras, beleza nas paisagens, beleza nas pessoas que nele são retratadas, beleza na forma como se relacionam entre si, beleza em praticamente tudo, exceto na dureza das vidas de todos em Maran, uma aldeia isolada nas montanhas da Arménia.

A história inicia com Anatólia, que se prepara para morrer, sozinha na sua casa. Sendo a mais nova de Maran, com cerca de 50 anos, acha que já viveu e sofreu o suficiente, está preparada para morrer e não quer que nenhuma das vizinhas saibam que se está a esvair em sangue e que a obriguem a ir para o Hospital no vale ou, que tentem curá-la com mezinhas. Está pronta para morrer e deixar Maran. 
Quando acorda no dia seguinte e se apercebe que ainda está viva, sente-se um pouco desesperada, quer morrer e se não for rápido como achou que iria ser, não vai conseguir esconder o seu problema dos vizinhos.

A história começa por aqui, é-nos apresentada uma aldeia sem crianças, apenas velhos, que se conhecem desde sempre. Vivem como sempre viveram, com as suas rotinas, as suas birras e as suas alegrias. Tentam manter uma vida normal, mesmo sabendo que a aldeia desaparecerá quando o último habitante de Maran morrer.
A história de Maran e dos seus habitantes é uma história dura, cheia de perdas. É uma aldeia isolada numa montanha da Arménia onde, com o passar dos anos é cada vez mais difícil chegar, vindos do vale, onde se situa a cidade mais próxima. 
Tal como toda a região, passou por guerras, fome e perdeu praticamente todos os jovens e crianças que lá nasceram, para a fome e para a guerra. Não há uma única pessoa na aldeia que não tenha perdido um filho.
No entanto, não se sente essa tristeza nas pessoas, talvez por terem perdido tanto e a desgraça ser tão democrática, ninguém se sinta no direito de andar infeliz porque o vizinho do lado perdeu tanto ou mais do que ele. Vivem em comunidade, são afáveis e preocupam-se uns com os outros e, à sua maneira acreditam no amor e na felicidade.

A história está repleta de algum misticismo, algum realismo mágico, que resulta muito bem em toda a narrativa. É quase normal que as coisas não sigam uma lógica racional e certinha em Maran. É um local isolado, meio perdido no tempo onde, para sobreviver a tanta perda, as pessoas recorrem a explicações menos racionais. Veem os seus mortos, encontram neles proteção e interpretam certos acontecimentos como sinais que podem indicar o caminho certo.

É uma história muito bonita, muito bem escrita e que, embora relate muita tristeza, me manteve com um sorriso no rosto porque está repleta de bom humor, de ternura, de aconchego e de gente muito mas muito real e próxima, que sentimos que podemos abraçar.

Gostei muito e recomendo sem qualquer hesitação.

Nariné Abgarian é para manter debaixo de olho. 

Boas leituras!


Excerto (pág. 41):

"Cada linhagem da aldeia de Maran tinha a sua alcunha. Na maioria dos casos, era cómica e engraçada, às vezes irónica, mas havia, embora raramente, as muito ofensivas. A alcunha da linhagem estava em conformidade com o comportamento da pessoa, boa ou indecente, e depois o apelido era herdado pelos descendentes. 
Por exemplo, o bisavô de Iassaman, na sua juventude, visitava muito o seu primo, ator principal de um dos maiores teatros do Vale. O primo levava-o aos espetáculos, apresentava-o nos círculos da alta-roda, ensinava-lhe como era preciso vestir-se. Uma vez, o bisavô voltou do vale com um chapéu nunca visto, até provocatório do ponto de vista dos conterrâneos. Quando lhe perguntaram que coisa era aquela que trazia enfiada na cabeça, o bisavô respondeu em tom de desafio:< Chlapka! > Pelo que foi apelidado de Chlapka, e os seus descendentes de Chlapkants. 
Quanto à alcunha da linhagem dos Chalvarants, a história foi outra. O avô de Ovanés preparou-se para a guerra mundial como se fosse para uma festa: retorceu o bigode, enfiou na testa o gorro, cingiu a tiracolo duas cartucheiras em cruz, vestiu umas calças novas, caríssimas. Não chegou, porém, a juntar-se ao seu regimento, pelo caminho viu-se sob um canhoneio. Um estilhaços atingiu-lhe uma perna abaixo do joelho, o ferimento foi tão grave que lhe amputaram uma parte da perna e, acabado o tratamento, mandaram-no para casa. No hospital, o avô de Ovanés, em vez de se preocupar com a perna mutilada, lamentou as calças novas que teve de deitar fora. 
- Chalvars, Chalvars - queixava-se às irmãs de misericórdia e aos médicos. Pelo que foi alcunhado de Chalvars, e todos os seus descendentes, de Chalvarants. 
Na aldeia, brincavam que Iassaman e Ovanés se completavam como peças de vestuário."

junho 13, 2024

O Outono em Pequim - Boris Vian

Título original: L'Automne a Pékin
Ano da edição original: 1947
Autor: Boris Vian
Tradução: Luiza Neto Jorge
Editora: Editora Ulisseia (Edições de Bolso)

"O romance O Outono em Pequim é de 1947, o mesmo ano em que Vian escreveu A Espuma dos Dias. Publicado pela primeira vez nas Éditions du Scorpion, o livro contém elementos surrealistas. A Pequim que surge no título não é literal. Os protagonistas têm em comum dirigirem-se a um deserto imaginário chamado Exopotâmia, onde está em construção uma estação de comboios.
A narrativa começa com as peripécias de Amadis Dudu, que, não tendo conseguido apanhar o autocarro para ir trabalhar, acaba a bordo do 975, que o leva a esse deserto. Esse acaso revela-se frutuoso para Amadis. O Outono em Pequim é uma narrativa de desilusão do mundo adulto, construído sobre o absurdo da sociedade industrial. Mas é também, tal como A Espuma dos Dias, uma história de amor sem esperança.
O narrador detém por vezes deliberadamente o desenrolar da história para comentar o que se está a passar. E é esse seu olhar irónico que evidencia os aspectos absurdos do romance." 

Em O Outono em Pequim, temos um grupo de pessoas, que acabam pelos mais diversos motivos, no deserto da Exopotâmia, envolvidos num projeto de construção de uma linha férrea.
 
Ângelo, Ana e Rochela vão lá parar porque atropelam o engenheiro que estava contratado para o projeto e, naturalmente alguém tem de o substituir e só poderiam ser eles. Ângelo e Ana são amigos. Ângelo é apaixonado por Rochela mas esta é a namorada do amigo Ana. 

Amadis Dudu é um simples funcionário de escritório que se levanta todos os dias para ir trabalhar, até que um dia não consegue apanhar o autocarro para o escritório onde trabalha. Acaba por apanhar o 975 que o deixa no deserto. No deserto acaba por ser nomeado diretor e responsável pela construção da linha e transforma-se numa espécie de tirano.

O doutor Manjamanga e um interno vão parar ao deserto porque o engenheiro que foi atropelado dá entrada no hospital onde trabalham e, enfim, porque não haveriam de ir? Para além disso, o deserto é o sítio ideal para o doutor Manjamanga testar um novo avião de aeromodelismo, com um novo motor italiano que não é a combustão e que é super potente. O aeromodelismo é a verdadeira paixão do doutor.

No deserto encontram um restaurante-pensão gerido pelo Barrizana e uma exploração arqueológica cujo responsável, Atanágoras parece ser o mais racional de todos os que se juntam no deserto.

Temos também um auto denominado padre, três irmãos mineiros e um eremita, condenado a ser eremita no deserto da Exopotâmia, por ter morto um ciclista.
 
Para além disto tudo, convém deixar claro que a linha férrea não terá qualquer utilidade porque não vai ligar nenhuma localidade a outra, mas tem de ser construída e todos trabalham para que isso aconteça. :) 

Há nos livros de Boris Vian, que já li (opinião sobre A Espuma dos Dias aqui), alguma coisa que ressoa em mim. Não sei explicar porquê mas, todo o absurdo e a toda a irrealidade, têm a capacidade de me prender e divirto-me a ler. Gosto dos ambientes que cria, dos diálogos, da espécie de história que se vai desvendando e gosto das personagens, gosto muito das personagens e das dinâmicas entre elas.

Não será uma leitura para todos. Eu própria não sei muito bem porque gosto mas, não posso deixar de recomendar. É daquele tipo de escritor que só lendo e por isso força, avancem sem medos. ;) 

Boas leituras! 

Excerto (pág. 84):
"Não muito distante havia um metro boquiaberto, atraindo grupos de imprudentes para dentro da goela negra. De tempos a tempos produzia-se o movimento inverso e ele lá vomitava, muito a custo, um molho de indivíduos pálidos e enfezados, com o fato a cheirar às entranhas do monstro, que fediam.
Rochela virava a cabeça de um lado para o outro à procura de um táxi, porque só a ideia do metro a assustava. À sua vista foram tragadas, com um ruído de sucção, cinco pessoas, três delas do campo, pois traziam cabazes com gansos dentro, e ela não teve outro remédio senão ficar de olhos baixos, primeiro que se recompusesse. Não havia um único táxi nas imediações. A vaga de automóveis e autocarros que desciam a rua inclinada causava-lhe uma vertigem movediça. O irmãozinho é que surgiu no momento preciso em que, já sem forças para mais, ia deixar-se tragar pelo insidioso tapete rolante, e conseguiu retê-la, agarrando-a pela ponta do vestido, gesto este que desvendou as encantadoras coxas de Rochela. Houve homens que caíram desmaiados, Rochela subiu o degrau fatal e beijou o maninho, para lhe agradecer. Felizmente que o corpo de uma das pessoas que se sentira mal veio cair precisamente diante das rodas de um táxi livre, o que fez empalidecer os pneus e, por conseguinte, parar o carro."

junho 05, 2024

Tanta Gente, Mariana / As Palavras Poupadas - Obras Completas vol. 1 - Maria Judite de Carvalho

Título: Tanta Gente, Mariana / As Palavras Poupadas
Ano da edição original: 1959 / 1961
Autor: Maria Judite de Carvalho
Editora: Minotauro

"A presente coleção reúne a obra completa de Maria Judite de Carvalho, considerada uma das escritoras mais marcantes da literatura portuguesa do século XX. Herdeira do existencialismo e do nouveau roman, a sua voz é intemporal, tratando com mestria e um sentido de humor único temas fundamentais, como a solidão da vida na cidade e a angústia e o desespero espelhados no seu quotidiano anónimo.

Observadora exímia, as suas personagens convivem com o ritmo fervilhante de uma vida avassalada por multidões, permanecendo reclusas em si mesmas, separadas por um monólogo da alma infinito.

Este primeiro volume inclui as duas primeiras coletâneas de contos de Maria Judite de Carvalho: Tanta Gente, Mariana (1959) e As Palavras Poupadas (1961), Prémio Camilo Castelo Branco."

Primeiro contacto com a escrita de Maria Judite de Carvalho e sinto que já deveria ter sido exposta a ela há muito mais tempo. 
Gostei de tudo. Gosto da escrita, da forma leve e irónica como nos transporta para dentro das vidas das mulheres, essencialmente mulheres, que habitam as suas histórias.

São mulheres sozinhas, por vezes sós, solteiras ou viúvas, na meia idade, que suponho seja, para a altura em que foram escritas, uns quarenta anos e cujos pensamentos, angustias e reflexões sobre as suas vidas e sobre o que as rodeia vamos conhecendo de forma muito natural. Impressiona que sejam, à primeira vista histórias sobre nada, onde nada acontece mas, que sejam afinal de conta histórias profundas sobre o ser humano, sobre a mulher, sobre o amor e sobre a vida.

Recomendo sem qualquer hesitação. Desconfio de escritores ou obras que são consensuais e das quais todos gostam mas, na verdade, não sei o que levaria alguém a não gostar de Maria Judite de Carvalho.

Além disso as edições da Minotauro têm uma qualidade extraordinária e com capas lindíssimas. Dá vontade de andar com eles para todo o lado. :)

Boas leituras!

Fica também o link para um documentário que passou na RTP e que continua disponível na RTP Play - A Vida é Um Autocarro Vazio - sobre a vida e obra de Maria Judite de Carvalho. Não deixem de ver.

Excerto (pág. 34)
"Não quero deixar nada atrás de mim. Levei hoje a tarde a rasgar papéis. Entre eles achei o meu retrato de braços pendentes, encostada a uma árvore... Porque o guardei? Não sei, já não me lembro. Pu-lo em cima da cómoda, sabe-me bem olhar para ele.
Tantos papéis, tantas folhas que tenho escrito! Diários, cartas que não seguiram o seu destino porque afinal, pensando bem, não valia a pena mandá-las... Papéis bordados a letra miúda que eu desconheço. Mais firme, mais igual, mais redonda. A minha letra de agora engelhou e amoleceu com a minha cara e as minhas mãos, com o meu próprio corpo de seios flácidos, de carne desbotada e só.
O cesto está cheio da minha vida. Pedaços rasgados, fragmentos, frases que alguém me dirigiu e eu já mão me recordo de ter ouvido, palavras que eu disse a alguém e já esqueci. Tudo tão baralhado como as minhas recordações. Postais do Luís Gonzaga com selos de Itália e vistas de catedrais. Palavras de um desconhecido dirigidas a alguém que já não sou eu. O tempo tem estado muito agradável... Roma que é uma maravilha... e a terminar muitos desejos de felicidades. Já nem rir me sinto capaz."

                                                                                                                        "Tanta Gente, Mariana"


Excerto (Pág. 190)
"Libertei-me do círculo magnético e pus-me a subir a rua. Não fui dar aulas, não podia. Voltei para a minha casa sem calor, onde nada me esperava. Uma casa vazia, sem objetos de mau gosto, sem sentimentos de mau gosto. E pensei muito nela.
«Talvez fizesse alguma coisa louca...» Que pensarão os homens que a vão julgar? Uma mulher velha e feia, que talvez se apresente no tribunal vestida de verde e amarelo,  a matar por amor... Se não é repugnante! E ridículo, acima de tudo. Mas eles os dois, creio que já o disse, nunca tinham tido a noção do ridículo."

                                                                                                                        "Uma História de Amor"