janeiro 12, 2025

Maria Judite de Carvalho - Obras Completas Vol lI

Título: Obras Completas Maria Judite de Carvalho vol.II - Paisagem Sem Barcos | Os Armários Vazios | O Seu Amor por Etel
Ano da edição original: 1963 / 1967
Autor: Maria Judite de Carvalho
Editora: Minotauro

A presente coleção reúne a obra completa de Maria Judite de Carvalho, considerada uma das escritoras mais marcantes da literatura portuguesa do século XX. Herdeira do existencialismo e do nouveau roman, a sua voz permanece intemporal, tratando com mestria e um sentido de humor único temas fundamentais, como a solidão da vida na cidade e a angústia e o desespero espelhados no seu quotidiano anónimo. Observadora exímia, as suas personagens revelam o ritmo fervilhante de uma vida avassalada por multidões, mas sempre reclusas em si mesmas, separadas por um monólogo da alma infinito.

O segundo volume reúne duas coletâneas de contos - Paisagem sem Barcos (1963) e O seu Amor por Etel (1967) - e uma novela - Os Armários Vazios (1966).

Mais um volume a não perder da Maria Judite de Carvalho. Acho que será mais eficaz se vos deixar excertos de alguns dos textos que compõem este segundo volume das Obras Completas desta escritora surpreendente.

Leiam que não se vão arrepender.

Boas leituras!

Paisagem Sem Barcos (pág. 31)
"Quando deixara ele de ser ele? Perdera-se pelo caminho e só ficara como recordação para a posteridade a sua imutável efigie em cera. Uma figura falante, era verdade, mas porque não seriam falantes as figuras de cera, desde que as palavras que dissessem fossem de cera também? Havia qualquer coisa nele... Não sabia bem explicar; assim de repente nunca soube explicar coisa nenhuma, nem mesmo a sim própria, em silêncio. Era preciso observá-lo com atenção, deitar fora toda a subjetividade, estudá-lo por alguns momentos com um olhar frio crítico. O olhar aquoso que-fora-azul por detrás dos óculos de tartaruga, o nariz direito, a boca grande e delgada, quase sem lábios, de cantos profundos, o queixo largo, as mãos perfeitas, o fato de bom corte. Que mais? Não muito, certamente, porque ele se fora transformando com o tempo numa efigie, a sua. Lá dentro, numa espécie de nife, havia várias camadas secretas, sobrepostas, bem escondidas. Jô tinha-as conhecido, mas não sabia se algumas delas ainda existiam ou se haviam sido asfixiadas pela carapaça exterior. Não sabia e nunca viria a sabê-lo, pensou. Era tarde demais."

Anica nesse tempo (pág. 99)
"O major ria ainda, sem bem saber de quê. Ria por mimetismo ou por fraqueza. Por receio de não colaborar. «Sou um fraco», pensou melancolicamente. «Sempre o fui. Que teria sido de mim numa guerra? Ou num país ocupado? Que teria feito se fosse necessário fazer qualquer coisa, sair do rebanho?» Estava farto, ansioso por se encontrar sozinho em casa. Aquilo acontecia-lhe quase sempre em sociedade. Ter a visão nítida de que à sua volta todos representavam um papel importante ou secundário, mas de antemão escolhido, e só ele desmanchava o conjunto passeando por entre os artistas, sem maquilhagem nem trajo adequado, nem frase para dizer no momento próprio, só ele estragava o espetáculo como um dia, em menino, quando durante a festa do colégio atravessara, a correr e soltando gritos agudos de índio sioux, o palco onde uma rapariguinha de cara de lua declamava com trémulos na voz: «Meus amigos e meus parentes, eu sou uma pobre viúva a quem Deus privou de toda a força e amparo neste mundo.» Nesse dia, porém, tinham-no aplaudido - fora tão inesperado - enquanto a menina, embrião de atriz, tinha uma violenta crise de choro. Agora não lhe davam palmas, não. Achavam-no certamente impopular, criticavam-no talvez quando voltavas as costas, falavam, era natural, de Luísa e talvez «a compreendessem»."

Os Armários Vazios (pág. 139)
"Foi um dia de Primavera que começou e acabou como todos os outros, pelo menos aparentemente, diria ela, ou, melhor, era natural que o pensasse; nunca foi pessoa de muitas falas. Dizia o necessário, mas reduzido ao mínimo indispensável, ou então um necessário que depressa se cansava, se detinha a meio caminho, como se ela se desse subitamente conta de que não valia a pena prosseguir, porque isso era um esforço inútil. Ficava então quieta, sem gestos, hesitante à beira das reticências como alguém à beira de água de inverno, e nesses momentos o seu olhar perdia todo o brilho, era como se um mata-borrão o houvesse absorvido, talvez ainda seja assim, não sei, nunca mais a vi. Durante muito tempo não consegui perceber que esses desmaios, porque o eram, a conduziam invariavelmente ao mesmo lugar, ou, melhor, à mesma pessoa, à mesma imagem danificada de pessoa, porque, como já disse, não era mulher que se confessasse. As palavras não lhe serviam para explicar o seu pensamento, aperfeiçoando-o ou disfarçando-o, como é mais ou menos hábito de toda a gente. Só as utilizava, e em última instância, para dizer o que era urgente."

O Seu Amor por Etel (pág. 247)
"Nos dias em que se travavam esses diálogos mais ou menos tontos, mas para ele tão preciosos, regressava sempre a casa calado e amargo após o entusiasmo, e com uma grande vontade de morrer. Eram os dias em que, fechado à chave no seu quarto modesto, passava em revista, estudando-lhes os prós e os contras - primeiro uns, depois os outros -, todas as possibilidades de pôr termo àquela existência  morna e sem interesse onde nunca haveria Etel: os gás, os pulsos cortados com uma lâmina, o tubo da Aspirina. Pensava também, minuciosamente , recitando a meia voz algumas frases mais significativas, na carta que escreveria a Etel nos últimos instantes, confessando-lhe o seu desesperado amor. Estacava sempre, porém, a boa distância do precipício. Tentava-o, afinal de contas, a vida ainda não vivida e o desejo de tornar a ver Etel, de falar novamente com ela, mesmo de assuntos superficiais e dolorosos, que nunca conduziriam a nada.
Em dias mais serenos, sobretudo quando não a encontrara, conseguia encarar, quase friamente e com a objetividade necessária, o seu caso, e mesmo troçar um pouco de si próprio. Como podia Etel amá-lo?, pensava nesses dias. Era feio, pobre, de baixa condição. Nunca fora excecional em coisa alguma, e na escola comercial ia passando à justa. Ora não havia na cidade, por mais que pensasse, ninguém que merecesse Etel. Se ela gostasse dele, não seria quem era. Porque não afastar então esse estúpido sonho que tomara posse do seu corpo e do seu coração?"

janeiro 02, 2025

Deuses Americanos - Neil Gaiman

Título original: American Gods
Ano da edição original: 2001
Autor: Neil Gaiman
Tradução: Fátima Andrade
Editora: Editorial Presença

"A poucos dias de sair da prisão, sombra quer apenas desfrutar de alguma tranquilidade junto da sua mulher, Laura. o destino, porém, reserva-lhe outros planos.
Quando recebe a notícia de que Laura morreu num acidente de viação, Sombra não tem outra alternativa senão aceitar o trabalho que um desconhecido, Sr. Quarta-Feira, lhe oferece. Mas cedo percebe que o trabalho e o próprio Quarta-feira pouco têm em comum, já que o ultimo é a encarnação de um dos deuses antigos que se encontram em vias de extinção por estarem a ser ultrapassados por ídolos modernos.
Sombra e Quarta-Feira têm assim a missão de reunir o maior número de divindades para se prepararem para o conflito iminente que paira no horizonte, mas esperam-nos inúmeras surpresas insólitas…
Bestseller distinguido com diversos prémios e adaptado com enorme êxito à televisão, Deuses Americanos é uma Aventura onde o mágico e o mundano, o mito e o real caminham lado a lado, levando-nos numa viagem repleta de humor ao extraordinário potencial da imaginação humana."

Confesso a minha dificuldade em escrever sobre este livro porque me parece que vai ser tudo superficial. Tenho a impressão de que há camadas e camadas que me passaram ao lado e, para dizer a verdade, também não tenho pretensões de colocar a descoberto. Por isso, de uma forma muito leve e descontraída, é um livro sobre deuses e a sua luta por se manterem relevantes na vida dos humanos. Deuses antigos, que os humanos levaram com eles na suas migrações, em particular para os Estados Unidos da América e que, com o tempo foram esquecendo. 
Deixaram de lhes prestar homenagem, de os adorar e de oferecerem algo em sacrifício. Os Deuses, sem grande surpresa, são retratados como seres egocêntricos, pouco benevolentes e capazes de tudo para sobreviver a estes tempos modernos.

O livro lê-se muito bem. Tem uma carrada de referências mitológicas, às diversas divindades e rituais mas, como está tudo enquadrado de uma forma mais real, porque estes deuses circulam entre nós com forma humana, não se sente esse peso. 
Isto, envolvido na história dos Estados Unidos, com muito sentido de humor à mistura e uma boa escrita, tornaram este livro, primeiro, uma surpresa, e depois um prazer.

Gostei da imaginação, agarrada à realidade, e da forma como vai desenrolando a história e nos vai conseguindo manter envolvidos e entretidos. Gostei muito, tanto que já cá tenho mais dois do Neil Gaiman para ler um dia destes - Mitologia Nórdica e Os Filhos de Anansi.

Recomendo sem qualquer hesitação. Acho que não perdem nada em experimentar.

Boas leituras!

Excerto (pág. 32):
"O homem abriu os olhos. Havia algo de estranho neles, pensou Sombra. Um era de um cinzento mais escuro do que o outro. O desconhecido voltou-se para ele:
- A propósito, lamento as notícias sobre a tua mulher, Sombra. Foi uma grande perda.
Nesse momento, Sombra quase lhe bateu. Mas, em vez disso, respirou fundo. («É como te digo, não irrites as cabras dos aeroportos», dizia a voz de Johnnie Larch algures na sua memória, «ou vens malhar com os ossos outra vez cá dentro enquanto o diabo esfrega um olho.») Contou até cinco.
- Eu também lamento - retorquiu.
O homem abanou a cabeça:
- Se ao menos pudesse ter sido de outro modo - comentou, com um suspiro.
- Morreu num acidente de automóvel - disse Sombra - Há maneiras piores de se morrer.
O homem abanou lentamente a cabeça. Por um instante, Sombra teve a sensação de que ele era insubstancial, como se o avião se tivesse tornado subitamente mais real, enquanto o seu vizinho perdia realidade.
- Sombra - disse o homem. - Isto não é uma brincadeira. Não é um truque. Posso pagar-te mais do que aquilo que ganharias em qualquer outro emprego. És um ex-recluso. Não haverá propriamente uma quantidade de gente a acotovelar-se para te contratar.
- Senhor Como-Raio-Se-Chama - disse Sombra, numa voz apenas audível acima do zumbido dos motores -, nem por todo o dinheiro do mundo.
O sorriso do homem abriu-se ainda mais. Sombra deu por si a recordar um documentário sobre chimpanzés. Segundo esse documentário, quando os chimpanzés e outros símios sorriem, fazem-no apenas para mostrarem os dentes, num esgar de ódio, agressividade ou medo. O sorriso de um chimpanzé é uma ameaça.
- Vem trabalhar para mim. É possível que haja alguns riscos, bem entendido, mas, se sobreviveres, poderás ter tudo o que quiseres. Poderás ser o próximo rei da América. Como vês, quem irá +agar-te tão bem? Heim?
- Quem é você? - inquiriu Sombra.
- Ah, sim. A era da informação... minha senhora, pode trazer-me outro copo de Jack Daniel's? Não abuse do gelo... não, claro que nunca houve outro tipo de era. Informação e conhecimento: duas divisas que nunca passaram de moda.
- Perguntei-lhe quem é.
- Vejamos... Bem, tendo em conta que não há dúvidas de que hoje é o meu dia, porque não me chamas Quarta-Feira? Senhor Quarta-Feira. Embora, considerando o tempo que está, até podia ser quinta-feira, heim?"

dezembro 26, 2024

[Ebook] Canção Doce - Leila Slimani

Título original: Chanson Douce
Ano da edição original: 2016
Autor: Leïla Slimani
Tradução: Tânia Ganho
Editora: Alfaguara (ISBN: 978-989-665--372-9)

"Mãe de duas crianças pequenas, Myriam decide retomar a actividade profissional num escritório de advogados, apesar das reticências do marido. Depois de um minucioso processo de selecção de uma ama, o casal escolhe Louise. A ama rapidamente conquista o coração dos pequenos Adam e Mila e a admiração dos pais, tornando-se uma figura imprescindível na casa da jovem família.
O que Myriam e Paul não suspeitam - ou não querem ver - é que a sua pequena família é o único vínculo de Louise à normalidade. Pouco a pouco, o afecto e a atenção vão dando lugar a uma interdependência sufocante, com o cerco a apertar a cada dia, até desembocar num drama irremediável.
Com um olhar incisivo sobre esta pequena família, Leila Slimani aponta o foco para um palco maior: a sociedade moderna, com as suas concepções de amor, educação e família, das relações de poder e dos preconceitos de classe. Com uma escrita cirúrgica e tensa, eivada de um lirismo enigmático, o mistério instala-se desde a primeira página, um mistério que é tanto sobre as razões do drama como o das profundezas insondáveis da alma humana."

Canção Doce, ao contrário do que o título possa levar a pensar nada tem de doce, de terno ou de alegre. É um livro angustiante, que começa sem rodeios e sem qualquer vislumbre de esperança, com duas crianças mortas, assassinadas pela sua ama Louise. Não há qualquer possibilidade de uma reviravolta, as crianças estão mortas e Louise é a culpada.

Por isso, Canção Doce é a história de Louise, de como conheceu aquela família, de como ganhou a confiança daqueles pais e o que a levou a fazer o que fez sem que ninguém o conseguisse prever.

É uma história triste, cinzenta, chega a ser fisicamente tensa. Há sempre uma espécie de confrangimento nas interações com Louise que, é um amor e está sempre disponível, mas que provoca em quem a rodeia retraimento, quase repulsa.
Claramente ama os miúdos e gosta daquela família, à sua maneira. O que a leva a cometer um acto tão extremo e tão inesperado? 
Não sei se chegamos ao fim e temos uma resposta mas, vamos acompanhando o crescente desequilíbrio de Louise, a obsessão por aquela família, e conhecemos um pouco da Louise antes de ter entrado na vida deles.

Gostei da escrita, simples e sem floreados. Gostei da forma como nos vai dando a conhecer Louise e a sua crescente loucura.

Senti, não sei se é propositado, que há uma crítica subliminar à mãe, que "abandona" os filhos nas mãos de uma desconhecida, para ir atrás de uma carreira, porque não quer ser apenas uma mãe e uma esposa. Esta espécie de culpa que parece cair sobre a mãe, fez-me retrair um pouco e não me deixou muito confortável. Mais ainda porque me pareceu, pela forma como nos são relatados os acontecimentos, que não há nada a apontar àquela mãe.

Sensações à parte, gostei da história, gostei da escrita e, é natural que volte a Leïla Slimani.

Boas leituras!

Excerto:

"A mãe encontrava-se em estado de choque. Foi o que disseram os bombeiros, o que repetiram os polícias, o que escreveram os jornalistas. Ao entrar no quarto onde jaziam os filhos, ela soltou um grito, um grito saído das profundezas, um uivo de loba. As paredes tremeram. A noite abateu-se sobre aquele dia de Maio. Ela vomitou e a polícia encontrou-a assim, com a roupa suja, agachada no quarto, a soluçar como uma possessa. Berrou quase até rasgar os pulmões. Um dos paramédicos fez um sinal discreto com a cabeça e ergueram-na, apesar da sua resistência, dos seus pontapés. Levantaram-na devagar e uma jovem estagiária do SAMU administrou-lhe um calmante. Era o seu primeiro mês de estágio.
A outra também, também tiveram de a salvar. Com o mesmo grau de profissionalismo, com a mesma objectividade. Ela não soube morrer. Não soube acolher a morte, sõ soube infligi-la. Cortou os pulsos e espetou a faca na garganta. Desmaiou aos pés da cama de grades. Endireitaram-na, mediram-lhe as pulsações e a tensão. Instalaram-na na maca e a jovem estagiária manteve a mão no pescoço dela.."

novembro 23, 2024

Coração Impaciente - Stefan Zweig

Título original: Ungeduld des Herzens
Ano da edição original: 1939
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Maria Henriques Osswald, F.I.L.
Editora: Livraria Civilização - Editora

"Stefan Zweig, mestre em psicologia, artista humaníssimo que constrói figuras vivas, palpitantes - obra de carne e nervos - enriqueceu a sua obra notabilíssima com um romance profundamente humano, em cujas páginas palpita a tragédia inigualável de uma rapariga riquíssima, que pode com o seu dinheiro comprar quanto a vida tem de belo para vender, mas não a perfeição física, pois é irremediavelmente uma pobre aleijada... nem o amor, pelo menos o amor-paixão tal como a sua alma vibrante ambiciona.
Só pode ser amada por caridade, pobre farrapo humano, cercado de fausto, só a mentira a rodeia, a mentira piedosa de uns, a mentira aduladora de outros, mas sempre como uma maldição, só a mentira a cerca: a mentira, a mentira...
Os caracteres deste romance são vincados com rara mestria. O homem que se deixa arrastar, sugestionar pela piedade e pela ternura de um pai amantíssimo que ambicionava dar à sua filha querida a felicidade, é fortemente traçado neste romance apaixonante e tão rico de psicologia humana.
Zweig, neste livro, ergue ainda mais alto se é possível, o seu nome de artista."

Um soldado que descobre o poder da caridade e começa a sentir-se invencível na sua bondade, vai descobrir da pior forma que as pessoas não precisam de caridade, precisam de amor, verdadeiro e genuíno, precisam de amizade desinteressada e honesta.
Um pai, rico, que tudo pode comprar, vive angustiado com a doença incapacitante da sua única e amada filha. A menina, quase uma mulher, foi perdendo, ao longo dos anos a capacidade de andar. Depende de uma cadeira de rodas e de muletas para se deslocar. É doce e tirana, compreensiva e cruel, tudo ao mesmo tempo. Generosa e egoísta, vive presa na dualidade entre o que é e consegue fazer, e aquilo que sabe que poderia ser e fazer se a doença não lhe tivesse batido à porta.

É na dinâmica que se cria entre o soldado solitário, que descobre a caridade, a menina entrevada, sedenta de amor e um pai, meio louco, que nada consegue fazer para que a filha seja feliz, que a trama de Coração Impaciente se vai desenrolando. 

Coração Impaciente é, entre outras coisas, uma história sobre piedade e sobre o facto de a caridade ter, por vezes, efeitos perversos para quem é alvo dela.
Mesmo quando achamos que estamos a fazer bem, não podemos descurar o outro e a forma como o outro está a receber aquilo que temos para oferecer. 

Enquanto fala de incapacidade física, de doenças desconhecidas e incuráveis fala, na verdade, de inseguranças e da enorme incapacidade que temos de viver confrontados com a imperfeição. Temos dificuldade em vermos o lado positivo de situações menos boas.

Coração Impaciente, é sobre desequilíbrio mental, violência psicológica, sacrifício, por vezes é sobre  amor, esperança e boa-vontade mas, essencialmente, acaba por ser sobre desespero, confusão e arrependimento. É um livro pesado? Nada disso, lê-se muito bem. 

Gosto muito da escrita de Stefan Zweig. Gosto das personagens que cria, das suas personalidades, complexas e pouco previsíveis. Consegue retratar muito bem como as relações humanas são complexas e frágeis. 

Gostei e só posso recomendar.

Boas leituras!


Excerto (pág.158):
"«Não sei e nunca saberei tudo o que prometi e afiancei a Kekesfalva nesse banco dos pobres. Assim como as minhas palavras embriagavam o seu ouvido ansioso, também a felicidade com que escutava me embriagava, e sentia o prazer de lhe prometer cada vez mais. Nenhum de nós  reparava nos relâmpagos que flamejavam em volta, nenhum de nós  ouvia o estalar ameaçador do trovão. Permanecíamos unidos; um falava, outro escutava e eu afirmava-lhe convicto, honestamente convicto: - «Sim, ela há-de sarar, muito breve, há-de sarar em absoluto». E de novo ele balbuciava: «Ah! Deus seja louvado!» Como era maravilhoso, contagioso, este êxtase, este delírio! Quem sabe quanto tempo ali teríamos permanecido sentados, se, de repente, não sobreviesse aquela rajada decisiva que sempre vem na vanguarda de uma tempestade, como que a abrir-lhe o caminho?! Curvavam-se as árvores com tanta violência, que os troncos estalavam, vergavam; dos castanheiros, sacudidos furiosamente, caía forte saraivada de projécteis e quase nos sufocou uma gigantesca nuvem de pó." 

novembro 04, 2024

[Ebook] Luanda, Lisboa, Paraíso - Djaimilia Pereira de Almeida

Título: Luanda, Lisboa, Paraíso
Ano da edição original: 2018
Autor: Djaimilia Pereira de Almeida
Editora: ´Companhia das Letras

"Chegados a Lisboa, Cartola e Aquiles descobrem-se pai e filho na desventura. Até que num vale emoldurado por um pinhal, nas margens da cidade mil vezes sonhada pelo velho Cartola, encontram abrigo e fazem um amigo. Será esta amizade capaz de os salvar?

«Se o entendimento entre duas almas não muda o mundo, nenhuma ínfima parte do mundo é exactamente a mesma depois de duas almas se entenderem.»

Luanda, Lisboa, Paraíso, o segundo romance de Djaimilia Pereira de Almeida, é o balanço tocante de três vidas obscuras, em que esperança e pessimismo, desperdício e redenção, surgem lado a lado."

Cartola e Aquiles, pai e filho, partem de Luanda para Lisboa para que Aquiles seja operado ao calcanhar que nasceu torto.
Chegados a Lisboa, o pai Cartola, apesar de achar que tinha tudo planeado, é surpreendido pela dimensão da cidade e pela indiferença das pessoas. Sente-se perdido e desorientado.
Depois a operação acaba por não correr tão bem como esperavam, o tempo vai passando e o regresso a Luanda parece cada vez mais distante.

Em Luanda deixaram Glória (mulher e mãe), doente, e Justina (filha e irmã). Em Luanda, Cartola era completamente dedicado a Glória. Em Lisboa sente pouca vontade de regressar a casa e, não é só por vergonha de as coisas não terem corrido como planeado. A verdade é que, apesar das dificuldades que sente em Lisboa não quer regressar para Glória e a sua doença.
 
Aquiles, adolescente, vê-se preso a uma deficiência que o atormenta, numa cidade que não conhece e que estranha, e a ter de cuidar do pai que parece estar, lentamente, a enlouquecer. Sente vergonha de Cartola por ser tão "estrangeiro" em Lisboa e, sente pena do pai.

É uma história triste que é, certamente, a história de muitos dos que chegam a Lisboa, sem ninguém que os receba, e que os ajude, acabam por ser engolidos pela cidade, empurrados para guetos, condenados à mera sobrevivência.

Gostei bastante da escrita, da história e das personagens e por isso só posso recomendar.
 
Voltarei, certamente a Djaimilia Pereira da Almeida

Boas leituras! 


Excerto:
"O rapaz sorriu. O pai pareceu-lhe jovem. Aquela era a sua segunda juventude. Continuava com a ilusão de que podia começar do princípio. A chuvada dera-lhe uma esperança pasmada, infantil. Não podia impedi-lo de se atirar nos braços de Lisboa e de se magoar. Mas ninguém tinha ensinado a Aquiles como se lidava com um adulto que recomeça, o que fazer diante dele. Ao olhar para a cara do pai, os olhos de Cartola atingiram o filho com uma ingenuidade que o assustou. Parecia ter regredido décadas e ser agora mais novo do que ele. Um horizonte reabria-se para Cartola numa imensidão ponte Aquiles não cabia. O homem que tinha à sua frente não era simplesmente um velho, como começara por lhe parecer no avião, mas um jovem em início de vida, um velho doente, nascido de novo. Aquiles abraçou o pai para o aquecer. Tremia de medo. «Poça, faz frio em Lisboa, Papá.» O pai, ensopado, estava quente por dentro. Tinha os lábios secos contornados num sorriso inocente. Quase dava para ver na cara dele o menino que um dia tinha sido. Aquiles soube que estava sozinho. Ele era o coxo e a bengala. "

novembro 02, 2024

Manhã e Noite - Jon Fosse

Título original: Morgon og Kveld
Ano da edição original: 2000
Autor: Jon Fosse
Tradução: Manuel Alberto Vieira
Editora: Cavalo de Ferro

"Um menino está prestes a nascer - chamar-se-á Johannes como o avô e será pescador como o pai. Uma vida boa, é esse o desejo de quem o traz ao mundo, embora este seja um mundo duro, ruim e cruel. Um homem, velho e sozinho, morre - chama-se Johannes e foi pescador.
É o seu melhor amigo que o vem buscar rumo a esse destino onde não há corpos nem palavras, apenas tudo aquilo que se ama. Antes do regresso definitivo ao nada, Johannes revisita o museu da sua vida, longa, simples e quotidiana, confrontando-se paulatinamente com a morte num constante entrelaçamento de real e alucinação, passado e presente.
Manhã e Noite é um romance sobre o maravilhoso sonho que é viver e a aceitação do ciclo natural das coisas. Numa linguagem poética e elíptica, inovadora e despojada, Jon Fosse condensa toda uma existência em dois momentos-chave, urdindo uma reflexão encantatória sobre o significado da vida, Deus e a morte."

É um pequeno livro, em tamanho, mas que diz muito. A escrita embala, tem uma cadência que nos leva a compreender o que sentem as personagens. Sentimos a confusão, a alegria, o medo, o entusiasmo. Parece que estamos dentro da cabeça deles ou que aqueles pensamentos podem até ser nossos. 

Pensei que fosse ter dificuldade em acompanhar a história, porque a forma como o livro está escrito, os parágrafos, as repetições, podiam ter sido motivo para me perder mas a verdade é que a linguagem é tão simples, como é Johannes e todos os que fizeram parte da sua vida e, da sua morte e, por isso, a história quase que baila dentro de nós
E é disto que se trata, do nascimento, da vida e da morte de Johannes. Da naturalidade e inevitabilidade que é subjacente a tudo isto. Nasce-se, vive-se, o melhor que conseguirmos e, depois morremos. Deixamos para trás as pessoas que nos preencheram a vida, que amámos, com quem rimos e chorámos. Encontramos os que partiram antes de nós e que, agora nos ajudam para que esta transição seja o mais pacífica possível, sem dor, confusão, medo ou revolta.

A parte final, em que se insinua uma espécie de vida depois da morte, uma visão mais religiosa da passagem para uma outra dimensão, porque me diz pouco, acabou por me estragar um pouco o resto do livro. Nada contra, até porque nunca se menciona Deus ou o paraíso ou algo semelhante mas, parece que me arrancou à pura ficção e me levou para os bancos da igreja. :)

Gostei desta primeira experiência com Jon Fosse. Gostei especialmente da linguagem e da forma como está escrito. Voltarei a ele, de certeza.

Boas leituras!

Excerto (pág. 28):

"(...) por aquela altura já deveria ter-se levantado, pensou, não podia ficar mais tempo deitado, e além disso ansiava por um cigarro, que bem me saberia um cigarro agora, pensa Johannes, e faz frio no quarto dele, na divisão principal também, mas na cozinha a lenha do figão esteve a arder toda a noite, de maneira que devia ir até lá, enrolar um cigarro, pôr a cafeteira ao lume e depois preparar qualquer coisa para comer, uma fatia de pão com queijo caramelizado, mais um dia igual a todos os outros dias, pensa Johannes. Mas e depois? O que faria ele depois? Talvez caminhar para oeste em direção à Enseada, para ver como estão as coisas por lá? e se o tempo não estiver especialmente mau talvez possa fazer-se à água, pescar um pouco, sim, talvez não seja má ideia, pensa Johannes, e logo lhe ocorre que acaba de pensar o que pensa todas as manhãs, todas as manhãs sem exceção tem exatamente o mesmo pensamento, pensa Johannes, mas que outro pensamento pode ele ter? que mais pode ele fazer senão caminhar para oeste em direção à Enseada?, pensa Johannes, e pensa também que não há razão para se sentir tão acabrunhado, não é assim tão terrível, ainda tem um tecto sobre a cabeça, calor bastante com se aquecer, e tem filhos, são bons filhos, os que ele tem, e a filha mais nova, Signe, não vive muito longe e visita-o quase todos os dias, é verdade, (...)"

outubro 26, 2024

[Ebook] Ecologia - Joana Bértholo

Título: Ecologia
Ano da edição original: 2018
Autor: Joana Bértholo
Editora: Editorial Caminho

"Numa sociedade que se fundiu com o mercado - tudo se compra, tudo se vende - começamos a pagar pelas palavras.

A estranheza inicial dá lugar ao entusiasmo.
Afinal, como é que falar podia permanecer gratuito? Há seis mil idiomas no mundo.
Seis mil formas diferentes de dizer ecologia, e tão pouca ecologia.
Seis mil formas diferentes de dizer paz, e tão pouca paz. 
Seis mil formas diferentes de dizer juntos, e cada um por si."

E se a linguagem e as palavras passassem a ser pagas? Primeiro são só algumas palavras e as pessoas, de uma forma geral, não se opõem. Depois a lista de palavras que são pagas começa a crescer e comunicar começa a ser, quase um luxo. 
No início parece que é para que algumas palavras ou idiomas não morram, para que o vocabulário permaneça rico. É para estudar a linguagem, perceber o que nos distingue como seres humanos. No fim, acaba por ser, como é natural, uma questão de poder e dinheiro. 

Gostei da escrita, muito fluída e oral. Gostei da história e embora não seja um livro muito fácil de ler, há imensas coisas que fogem ao meu entendimento, a verdade é que se lê muito bem.

Não sendo um livro fácil de ler, também não é um livro fácil de comentar. Tem camadas e mais camadas. :)

Gostei muito e recomendo. Joana Bértholo é para manter debaixo de olho.

Boas leituras! 

Excerto:
"O anúncio foi feito esta manhã, em Dublin, na sede da multinacional Gerez: As palavras BERÇO, ENTRETANTO e INGREDIENTE estão entre as primeiras cinquenta palavras sujeitas ao período de testes do Plano de Revalorização da Linguagem. A Gerez, empresa mediática graças à recente polémica em torno da privatização do genoma humano, é também célebre pela sua directora-executiva, Darla Walsh, que esteve mais de três horas a responder à imprensa internacional. O tema que suscitou mais perguntas foi a taxação dos termos. Walsh explicou: «Cada palavra tem um sentido e um peso diferentes, e por isso o valor de cada uma delas varia, como as pessoas vão ter oportunidade de experienciar nos próximos meses. O objectivo é estarmos todos mais conscientes do que dizemos, mais atentos ao modo como falamos. Tenho a certeza de que, a partir de agora, as pessoas vão deixar de falar por falar. Isso vai necessariamente enriquecer-nos, às nossas relações e à nossa vida enquanto comunidade.»
A apresentação do projecto incluiu simuladores que os próprios jornalistas puderam testar, e assim compreender o dispositivo que permitirá, doravante, a taxação do que é dito. Durante a conferência de imprensa, Walsh partilhou as motivações pessoais para este ambicioso projecto: «Falo onze idiomas e sou fascinada por línguas. Quero encontrar a sua raiz universal, perceber como tudo começou, como funciona... Com a tecnologia disponível, isso é possível. Estamos a poucos passos de conseguir computar todas as emissões humanas e, quando o fizermos, vamos poder aprender coisas inimagináveis. Uma nova era, uma transição só comparável à da roda, do fogo, ou à introdução da linguagem escrita.»
Eloquente e rigorosa, Walsh falou sobre como a linguagem faz de nós humanos, a ligação entre as nossas identidades culturais e os diferentes idiomas, e o quão pouco sabemos sobre as suas origens. Referiu-se também à actual desvalorização da palavra, a uma cultura de opinião em que já não se distingue um facto de uma «pós-verdade», na qual «o jornalismo, a literatura e as relações interpessoais perderam o norte». Reforçou a ideia de que «somos gratuitos a falar» e anunciou como missão da Gerez e do seu Plano de Revalorização da Linguagem rectificar isso.
Segundo nos foi possível apurar, às listas internacionais, ditadas pela Gerez/CCM, cada Mercado irá ter autonomia para emitir as suas próprias listas, consoante o idioma e a cultura. O Mercado do Português©, por exemplo, revalorizará, na Primeira Vaga, as palavras «peúga» e «cimbalino», enquanto o Mercado do Português do Brasil© reconhecerá termos como «grampeador» e «bunda»."