maio 29, 2022

Se o Passado Não Tivesse Asas - Pepetela

Título: 
Se o Passado Não Tivesse Asas
Ano da edição original: 2016
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote

“A terrível luta diária pela sobrevivência dos meninos de rua, em plena guerra, contrasta com a fartura desmesurada dos jovens da nova burguesia de Luanda.
Himba, treze anos acabados de fazer, durante a fuga do Planalto Central para Luanda, motivada pela guerra, perde-se do resto da família, vendo-se de repente sozinha no mundo. Sem outros meios que não sejam a sua inteligência, consegue chegar à capital, onde conhece Kassule, um menino de dez anos que perdeu uma perna devido a estilhaços de uma mina. Ambos órfãos vítimas da guerra, sem teto e dependendo do lixo dos restaurantes, unem-se para conseguirem subsistir, lutando pela sobrevivência dia a dia. Assim nasce uma bela amizade.
Sofia, que há muito aguarda uma oportunidade para mudar de vida, descobre que tem um sentido muito apurado do gosto. Numa aposta arriscada, aceita gerir um restaurante, onde dá conselhos sobre temperos. À medida que o restaurante vai ganhando clientes da classe alta de Luanda, também a ambição de Sofia vai sendo alimentada. E está disposta a agarrar todas as oportunidades que lhe garantam uma vida melhor, a ela e ao irmão Diego, um artista de rua que sonha expor em galerias.

Se o Passado não Tivesse Asas cruza duas histórias, duas grandes personagens femininas, numa narrativa original com um desfecho imprevisível, que retrata os últimos vinte anos da história de Angola.”

Se o Passado Não Tivesse Asas é um livro duro, sobre a infância num país em guerra, num país pobre e desigual e sobre os adultos que são o resultado de crescer nestas circunstâncias.

Quando a guerra se aproximou da povoação onde Himba vivia, a família decidiu que estava na altura de fugirem. Himba tinha treze anos quando se viu, na fuga e após um ataque ao autocarro onde seguia com a família, perdida e sozinha. Com o ataque, afastou-se dos pais e nunca mais os conseguiu encontrar. Com algum esforço conseguiu chegar à cidade, na esperança de que os pais lá estivessem à espera dela, tão desesperados por encontrá-la como ela estava por voltar a vê-los. 
No entanto, o que Himba encontra na cidade grande é barulho, confusão, indiferença e mais miséria. Vê-se obrigada a dormir na rua, junto de outras crianças, também elas vítimas da guerra, perdidos das suas famílias, vagueiam pelas ruas a pedir, a roubar a fazer o que é necessário para sobreviverem mais um dia.
É lá que conhece Kassule, um menino mais novo que ela e que está na rua há mais tempo que Himba. Kassule não tem uma perna, perdeu-a quando pisou uma mina, no entanto, é um miúdo cheio de energia, com boa disposição e muito honesto. Percebendo que ela está com dificuldades em adaptar-se à nova realidade, acolhe-a sob a sua alçada e os dois acabam por se tornar inseparáveis.
Pouco tempo depois, os dois decidem, deixar a cidade e partem para uma zona costeira, onde a competição por comida, na teoria, será menor. E é lá que vivem o melhor e o pior das suas curtas vidas. Conhecem o amor e o ódio, a paz e a violência, riem e choram. 

Paralelamente conhecemos a história de Sofia e Diego, dois irmãos a viver em Luanda, num país que já não está em guerra. 
Sofia trabalha num restaurante, onde é responsável principalmente pela cozinha e por toda a comida que é servida aos clientes. Tem um dom inigualável para os temperos e uma intuição que vai tornando o restaurante, pouco a pouco, numa referência, que começa a atrair a atenção da classe mais alta de Luanda. É inteligente e ambiciosa e, embora não seja de todo uma má pessoa, é uma sobrevivente que tem uma visão, por vezes um pouco distorcida do que é correto ou não fazer para se atingirem determinados objetivos.
Diego, por outro lado, é um artista. Pinta quadros e ganha algum dinheiro a vendê-los na rua aos turistas. Tem a noção de que não é muito bom naquilo que faz, mas vive uma vida despreocupada. Não é ambicioso e parece ter até alguma aversão ao dinheiro. Quer ganhar apenas o suficiente para viver o dia-a-dia. 
Os dois vivem juntos e, embora sejam muito diferentes um do outro, a vida vai correndo com alguma normalidade.

Se o Passado Não Tivesse Asas talvez fosse possível deixar para trás aquilo que nos tornou em adultos menos simpáticos, menos capazes e menos seguros. Se fosse possível apagar da nossa história aquilo que nos prende, que não nos permite avançar, voar e sermos mais felizes, aposto que muito pouca gente escolheria manter esse passado presente nas suas vidas. Por vezes o passado torna-nos melhores pessoas, outras vezes só nos torna menos capazes.

Gostei muito deste livro, porque está muito bem escrito e porque as personagens são difíceis de esquecer. Este foi leitura das férias de Verão do ano passado (estou muito atrasada nas minhas opiniões aqui no blogue, eu sei) e, tendo passado quase um ano, ainda guardo na memória, com carinho a Himba, o Kassule, a Sofia e o Diego. A minha memória não é grande coisa, por isso, para mim, o facto de ainda os ter tão presentes diz muito sobre o livro.

Pepetela, mais uma vez, a não desiludir. Acho até que este está no meu top três dos livros do Pepetela.

Recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras.


Excerto (pág.246):

“Não sentia dores, mesmo se o sangue não parava de sair do nariz por causa das chapadas. O corpo estava feito para ser torturado, por isso era indiferente doer ou não doer, qual era a diferença? Quando a dor é constante, deixa de ser sentida. E assim queria ficar, imune à dor, física e à outra, a da perda. Já tinha perdido tudo ou quase, pois lhe restava Kassule. Era pouco?
Era imenso.
Mas também queria mais. Mentira. Agora já não desejava mais nada, ficava satisfeita com o que tivesse, só tinha de andar, andar, evitar pensar, evitar fazer comparações com outras vidas, o passado se enterrava automaticamente, inútil fazê-lo ressuscitar, pois só trazia sofrimento, saudade, angústia. Devia agradecer cada minuto de vida e viver assim, cada minuto de sua vez.
O futuro não existe para gente como nós, só o minuto em que ainda cá estamos.”

[Kindle] Cinco Esquinas - Mario Vargas Llosa

Título original: Cinco Esquinas
Ano da edição original: 2016
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora: Quetzal Editores

"À conversa, sem os maridos, e desatentas da hora do recolher obrigatório, Chabela e Marisa terão de pernoitar juntas. O que aconteceu na cama nessa noite passará a ser um grande e saboroso segredo. Chabela é mulher de um advogado de renome; Marisa, de uma das figuras cimeiras da exploração mineira. O mundo perfeito em que vivem - não fora a constante ameaça dos guerrilheiros e sequestros - será fortemente abalado por um escândalo. Após tentativa de chantagem por parte de Rolando Garro, diretor do pasquim Destapes, a participação do engenheiro Enrique Cárdenas numa orgia será tornada pública em todos os seus pormenores mais sórdidos. Segue-se um assassínio brutal. Mas a relação de tudo isto com o poder político, nomeadamente com o homem que na verdade governa de forma corrupta e autoritária o país, o Doutor, braço direito do presidente, será trazida à luz: curiosamente pela coragem e fibra da redatora principal do referido tabloide que usa o nom de plume «La Retaquita»."

Cinco Esquinas daria uma boa novela. Tem tudo aquilo que é comum encontrar neste tipo de produto televisivo: dinheiro, sexo, crime e gente famosa. Temos gente muito rica, bonita e bem-sucedida; temos gente pobre, remediada e outros que fazem de tudo para subir na escala social. Pessoas sem escrúpulos que acabam por fazer algumas coisas bem, mesmo que pelos motivos errados. Como pano de fundo, mas com um papel muito ativo na vida de todas as nossas personagens, temos um governo autoritário e repressor que controla todo o enredo e todas estas personagens, mesmo que elas achem que não.

De forma muito resumida é isto. :)

Não conhecia a veia erótica de Vargas Llosa, porque nenhum dos livros que já tinha lido dele era deste género. Confesso, por isso que, durante uma boa parte do livro, me senti confusa. 
Com muita pena minha, a confusão não se deveu apenas às descrições das cenas de sexo, mas sim pela qualidade, duvidosa, das mesmas e porque a escrita, em geral, me pareceu muito menos bem conseguida. Tenho memória de ter gostado bastante dos outros livros que li dele (A Festa do Chibo; Lituma nos Andes; O Falador) e este pareceu-me francamente inferior. Talvez a história possa não ser tão interessante. Não sei, mas não fiquei particularmente impressionada e, se não tivesse já lido outras coisas de Vargas Llosa, muito provavelmente não regressaria a ele.

Cinco Esquinas acaba por ser um romance mais levezinho e, não há nada de errado com isso. Sou da opinião de que os escritores devem escrever sobre o que lhes apetecer, da forma que quiserem. Sinto, no entanto que, este Cinco Esquinas e outros que Vargas Llosa tenha escrito do mesmo género, quase merecem um pseudónimo, para que, facilmente eu conseguisse distinguir que tipo de Vargas Llosa tenho entre as mãos. :)

Não sendo um livro mau, não faz o meu género e quando decido ler Vargas Llosa procuro outro tipo de histórias e de personagens e, por isso, com este tenho alguma dificuldade em dizer se recomendo ou não. Ficam por vossa conta e risco. ;)

Excerto:
"Quando os seus olhos se acostumaram à escuridão do compartimento, entre as figuras que a povoavam avistou numa das paredes pintalgadas uma inscrição a giz, em letras grandes, onde pôde ler:

«E quando esperava o bem,
Sobreveio o mal;
Quando esperava a luz, veio
A escuridão.»

Era uma inscrição bíblica? Estava encolhido de terror, mas, isso sim, muito consciente de que aquele recinto estava impregnado por uma pestilência que o enjoava - fedia a muitas coisas, mas, sobretudo, a excremento, suor e urina - e que fervilhava de homens, alguns seminus, uns sentados no tosco poial de cimentos e outros acocorados ou deitados no chão.
Ninguém falava, mas Quique intuía que, das sombras que o rodeavam, dezenas de olhos estavam cravados nele, o último recém-chegado àquela cave, calabouço, quarto de torturas ou fosse lá o que fosse."