novembro 18, 2021

A Menina que Roubava Morangos - Joanne Harris

Título original: The Strawberry Thief
Ano da edição original: 2019 
Autor: Joanne Harris
Tradução: Ana Saldanha
Editora: Porto Editora

"O coração de Vianne Rocher, a encantadora e inquieta maga do chocolate, parece ter finalmente serenado. A vila de Lansquenet-sous-Tannes, que em tempos a rejeitou, é agora o seu lar. Com a filha mais velha, Anouk, a viver em Paris, Vianne dedica-se por inteiro à chocolaterie e a Rosette, a filha mais nova, a sua menina "especial". A acompanhá-las estão os seus amigos do rio, os extravagantes vizinhos, e o circunspecto padre Reynaud. Mas o vento, quando sopra, traz sempre mudanças… E estas começam com a morte de Narcisse, o temperamental florista. A vila fica em alvoroço pois Narcisse deixa não só uma surpreendente herança a Rosette, mas também uma inesperada confissão.
Nada voltará a ser como dantes. E quando uma loja nova abre onde antes se dispunham as magníficas flores de Narcisse, tudo parece um prenúncio de algo: um confronto, alguma turbulência, ou talvez até… um crime? Conseguirá Vianne impedir que o vento leve tudo o que lhe é mais querido?
Há magia no ar. Há luz e sombra. Vingança e amor. Vinte anos depois da publicação de Chocolate, Joanne Harris regressa à pitoresca vila francesa num romance sobre a força do passado, o poder da memória e a aceitação das marcas que a vida deixa em nós."

Sinto saudades de um livro de Joanne Harris que me encha as medidas. Não consigo sentir muito interesse pelo que se passa na vida de Vianne porque sempre a achei uma chata, mascarada de excêntrica. É chata, é aborrecida e desinteressante.

Vianne está, neste livro, particularmente parva e incoerente. No entanto, o maior protagonismo de Rosette acaba por tornar o livro menos aborrecido e menos óbvio, porque Rosette é uma miúda especial, mesmo para os padrões da família Rocher. É mais complexa, mais densa e perspicaz. É uma miúda inteligente e destemida, com vontade de viver a própria vida sem medos e limitações.

A Menina que Roubava Morangos não deixa, no entanto, de ser mais do mesmo. A mudança do vento, a chegada de uma estranha irresistivelmente sedutora, que ameaça a paz e o sossego dos habitantes de Lansquenet-sous-Tannes, e em particular, parece ameaçar tudo o que Vianne conseguiu alcançar e que ama na sua vida.

Por mais que me custe, não sei se voltarei a ler mais algum livro da Joanne Harris que inclua a Vianne Rocher. Conhecendo todos os outros livros dela e todas personagens femininas que já criou, sei do que ela é capaz e, por isso, tenho muita dificuldade em gostar de Vianne e em reconhecer-lhe as qualidades que me levariam a querer saber mais sobre a sua vida.

Recomendo, para quem gosta do universo Vianne Rocher. Para quem nunca leu Joanne Harris, acho que deveriam começar por qualquer outro, fora da saga Vianne. 

Boas leituras! 

Excerto (pág. 144):

"Voltei para a chocolaterie invadida por uma profunda sensação de  inquietude. Morgane ficou a observar-me da porta, com as suas calças pretas largas a esconder aqueles pés perturbadores. O que quer que fosse que os antigos Chineses acreditassem, não tenho razão para pensar que há algo de maléfico em Morgane; e, no entanto, tudo nela me deixa inquieta. A sua chegada, na mudança do vento. As cores à volta da entrada da loja dela. A maneira como Rosette se sentiu atraída para ela apesar dos meus avisos de que devia manter-se afastada. E, agora a conversa dela sobre os Maias parece demasiado a propósito para ser uma coincidência."

novembro 14, 2021

A Infância de Jesus - J. M. Coetzee

Título original: The Childhood of Jesus
Ano da edição original: 2013
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Editora: Publicações Dom Quixote

"Depois de cruzarem oceanos, um homem é um rapaz chegam a uma nova terra. Recebendo ali um nome e uma idade, são alojados num campo do deserto enquanto aprendem espanhol, a língua do novo país. 
Agora chamados Simón e David, dirigem-se ao centro de realojamento da cidade de Novilla, onde os funcionários são corteses, mas não necessariamente prestáveis. Simón assume então a incumbência de localizar a mãe do rapaz. Embora, como todos os que chegam a este novo país, pareça estar completamente limpo de todos os vestígios de recordações, tem a convicção de que a reconhecerá quando a vir. E , de facto, ao passear pelo campo com o rapaz, Simón vislumbra uma mulher que tem a certeza tratar-se da mãe dele, persuadindo-a a assumir esse papel. E será a nova mãe de David a aperceber-se de que está é uma criança excecional, um rapaz inteligente e sonhador, com ideias muito invulgares sobre o mundo. As autoridades académicas, porém, detestam nele um traço de rebeldia e obstinam-se em que ele seja enviado para uma escola especial distante. A mãe recusa-se a entregá-lo, e é Simón que terá de conduzir o automóvel durante a fuga do trio pelas montanhas. 

A Infância de Jesus é um belo e profundo romance, sempre surpreendente, assinado por um esplêndido escritor. "

Tinha algumas expectativas quando peguei neste livro para ler. Gostei de tudo o que li de J. M. Coetzee e por isso, quando comecei a ler A Infância de Jesus, e a primeira impressão foi de estranheza, fiquei preocupada.
A verdade é que estranhei um pouco a história, as personagens e a dinâmica entre elas. Estranhei o ritmo. Houve momentos em que pensei que não estava a gostar muito, e outros em que me consegui embrenhar em tudo aquilo.
Acabei por ler o livro em muito poucos dias, o que hoje em dia é uma raridade e, terminado o livro, gostei bastante. É um pouco diferente dos outros que li dele, achei-o original, gostei das personagens e da forma como nos permite refletir sobre algumas questões que, enquanto sociedade, devíamos todos refletir.

De uma forma muito resumida, não querendo repetir ou acrescentar mais ao muito que já é dito na sinopse, A Infância de Jesus conta-nos a história de um homem e de uma criança, que chegam juntos a Novallis. O homem não é familiar da criança, não o conhecia até há pouco tempo e não sabe o nome dele. Aliás, nenhum dos dois tem memória da sua vida passada, algo que parece ser uma consequência da viagem que todos fazem até ali, uma espécie de preço a pagar para poderem entrar e ficar em Novallis porque, "não há mais nenhum sítio para estar a não ser aqui." Por isso, na verdade, nenhum dos dois sabe como se chama e os seus nomes e idades foram escolhidos no centro de onde vieram antes de poderem avançar para Novallis.
 
Simón fica como responsável por David, a quem prometeu que iria encontrar a mãe, embora não saiba o nome dela, nunca a tenha visto e o rapaz não se lembre dela. No entanto, Simón tem a certeza que quando a vir vai saber que é ela.

Novallis não é uma cidade normal, parece que estamos, de alguma forma, a viver numa espécie de distopia. As pessoas são todas muito simpáticas, mas não são particularmente disponíveis e prestáveis. Não parecem genuinamente interessadas em ninguém ou por nada. São burocráticas, vivem de acordo com as regras e não as questionam. Não parecem precisar de mais nada, não criam novos laços e já perderam a memória dos laços que existiam antes de lhes ser dada a oportunidade de viverem em Novallis.
David é um miúdo inteligente que questiona tudo e todos, principalmente a autoridade e, começa a destacar-se num meio onde todos obedecem.

Não existe propriamente uma autoridade repressiva ou autoritária que incute o medo. É mais uma espécie de apatia que parece estar entranhada em todos os habitantes de Novallis. Não há uma proibição de questionar nem existe violência ou reações extremadas. As crianças vão à escola e os adultos trabalham, em qualquer coisa, para poderem comprar comida e ter um sítio onde morar. Mais nada.

Trabalham sem que exista um objetivo definido no trabalho que desenvolvem. Simón arranja trabalho nas docas na descarga de mercadoria e, passado uns tempos apercebe-se de que tudo o que ele e os colegas descarregam não serve para nada, toda aquela carga é levada, por outros colegas, para um outro sítio nas docas e fica por lá sem qualquer serventia. 
Muita da nossa economia é exatamente isto: Consumir matérias-primas finitas, para produzir coisas que ninguém vai comprar ou que têm uma utilidade muito limitada e que acaba no lixo. Existem milhares, milhões de pessoas que se levantam todos os dias para passarem mais de metade do seu dia a produzirem algo que vai diretamente para o lixo. Trabalho inútil que só serve para dar trabalho, também ele inútil, ao próximo agente na cadeia de valor. E andamos todos, a correr atrás da própria cauda, preocupados em aumentar produtividade, em aumentar lucros, quando na realidade a grande maioria de nós está a trabalhar para produzir lixo... É angustiante... 

Gosto muito de J. M. Coetzee. Para além de falar em assuntos que, de uma forma geral, são pertinentes, há uma leveza na escrita e na forma como nos conta uma história que faz com que tudo nos pareça muito próximo.
A Infância de Jesus não fugiu à regra. Primeiro estranhei, é verdade, mas depois entranhou de tal forma que já comprei o segundo volume, Jesus na Escola, da trilogia, que fecha com A Morte de Jesus.

Recomendo, sem qualquer hesitação.

Boas leituras.

Excerto (pág. 28):

" - Para que é que estamos aqui, Simón? - pergunta baixinho. 
 - Já te disse: estamos aqui só por uma ou duas noites, até encontrarmos um sítio melhor para ficarmos.
 - Não, o que eu quero dizer é porque é que estamos aqui? - o seu gesto abarca o quarto, o Centro, a cidade de Novilla, tudo. 
 - Tu estás aqui para encontrar a tua mãe. E eu estou aqui para te ajudar. 
 - Mas depois de a encontrarmos, para que é que estamos aqui? 
 - Não sei o que dizer. Estamos aqui pela mesma razão pela qual todas as outras pessoas estão. Deram-nos uma possibilidade de viver e nós aceitámos essa possibilidade. É uma grande coisa, viver. É a maior de todas as coisas. 
 - Mas temos de viver aqui? 
 - Aqui em vez de onde? Não há mais nenhum sítio para estar a não ser aqui. Agora fecha os olhos. São horas de dormir. "

outubro 19, 2021

Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? - Philip K. Dick

Título original: 
Do Androids Dream of Electric Sheeps?
Ano da edição original: 1968
Autor: Philip K. Dick
Tradução: Raquel Martins
Editora: Relógio D'Água

"O romance que deu origem ao filme Blade Runner, do autor de Minority Report e A Scanner Darkly. Philip K. Dick morreu em 1982, mas a sua visão futurista, carregada de humor negro, é mais perturbante e poderosa do que nunca. 
A Guerra deixou a Terra devastada. Por entre as ruínas, o caçador de recompensas Rick Deckard persegue a sua presa: os andróides desertores. Quando não desempenha esta tarefa, Deckard sonha possuir o maior símbolo de status da época: um animal vivo. É então que Rick recebe a sua principal tarefa: localizar seis Nexus, seis alvos que lhe podem valer uma enorme recompensa. Mas a vida nunca é assim tão linear, e a de Rick transforma-se rapidamente num pesadelo caleidoscópio de subterfúgios e enganos."

Sempre que ouvia falar de Philip K. Dick sentia curiosidade mas ficava sempre de pé atrás porque o classificam como escritor de ficção científica. E, como sou mais quadrada do que gosto de admitir, sempre o associei a histórias espaciais, com naves e guerras interestelares. Não gosto disto, aborrece-me. Sei que a ficção científica de Philip não é destas, mas pronto fui adiando a leitura até me ter cruzado com ele na estante da biblioteca e pareceu-me ideal para leitura de férias e, ainda bem que o fiz.
Gostei bastante da escrita, direta e sem complicações desnecessárias. Achei a história muito bem conseguida, gostei da forma como ele nos apresenta um mundo e uma sociedade credível, sem precisar de nos dar muitos detalhes, nem qualquer enquadramento sobre o que aconteceu para que tenhamos chegado ali, naquelas condições. Para um livro que é relativamente pequeno, acaba por conseguir contar muita coisa e de forma muito eficaz.

Gostei bastante. É um escritor ao qual vou voltar, certamente.

Boas leituras!

O livro que inspirou o filme Blade Runner, de Ridley Scott

julho 01, 2021

[Kindle] Um Homem Chamado Ove - Fredrik Backman

Título: 
En man som heter Ove
Autor: Fredrik Backman
Ano da edição original: 2012
Tradução: Alberto Gomes
Editora: Editorial Presença

"À primeira vista, Ove é o homem mais rabugento do mundo. Sempre foi assim, mas piorou desde a morte da mulher, que ele adorava. Agora que foi despedido, Ove decide suicidar-se. Mal sabe ele as peripécias em que se vai meter. Um jovem casal recém-chegado destrói-lhe a caixa de correio, o seu amigo mais antigo está prestes a ser internado a contragosto num lar, e um gato vadio dá-se a conhecer.

Ove vê-se obrigado a adiar o fim para ajudar a resolver, muito contrariado, uma série de pequenas e grandes crises. Este livro simultaneamente hilariante e encantador fala-nos de amizades inesperadas e do impacto profundo que podemos ter na vida dos outros."

Começo por dizer que esta é uma história muito bonita, simples e de certa forma, normal. Não acho, no entanto, que seja banal.

Tive alguma dificuldade em classificar este livro porque não lhe reconheço grandes rasgos de originalidade, nem na escrita, nem na história em si.
Não partilho do sentido de humor, algo infantil, de Fredrik Backman, e achei grande parte do que se passava absurdo e pouco credível. No entanto, não fui capaz de lhe dar menos de 4 estrelas no Goodreads. 

Há qualquer coisa em Ove e na história deste homem que nos faz sorrir e nos deixa de coração apertado, sem que haja um apelo desavergonhado ao sentimentalismo, nem nada que se pareça. O facto de ter mexido comigo e de eu ter conseguido criar empatia com Ove e com todos os seus vizinhos, acabou por fazer toda a diferença. 
Não existem assim tantos livros que nos façam sentir tudo isto, sem se tornarem pedantes. E por vezes é o que basta: um livro simples, com uma história que nos faz sorrir, sobre pessoas comuns (ou nem por isso) e que acrescentam qualquer coisa ao nosso mundo. Personagens e histórias que, de alguma forma, nos enriquecem. 

Gostei e recomendo. É um livro que nos deixa com a alma um bocadinho mais cheia. Além disso, adoro histórias de amor como a de Ove e Sonja. Fascina-me o amor na terceira idade. :) Velhinhos apaixonados, de mãos dadas e sorriso no rosto. Acho que é das coisas mais bonitas que existe. :)

Boas leituras!

Excerto:
"No dia seguinte, foi aos escritórios dos caminhos de ferro devolver o salário do pai relativo ao resto do mês. Ao constatar que as senhoras da contabilidade não estavam a compreender, Ove explicou-lhes com impaciência que o pai tinha morrido no dia dezasseis e que, obviamente, não poderia trabalhar os restantes catorze dias desse mês. E como o pai recebia o salário antecipadamente, Ove viera devolver a diferença. 
Perplexas, as senhoras da contabilidade pediram-lhe que se sentasse e aguardasse. 
Cerca de um quarto de hora depois, o diretor apareceu e olhou para aquele estranho rapaz de dezasseis anos sentado numa cadeira de madeira no corredor e segurando na mão o envelope com o salário do falecido pai. O diretor sabia muito bem quem era o rapaz. E depois de se ter convencido de que não havia maneira de persuadir o jovem a ficar com aquele dinheiro que sentia não ser seu por direito, o diretor não viu outra alternativa senão propor-lhe que trabalhasse o resto do mês para ter direito a ele. Ove achou a proposta razoável e notificou a secretaria da sua escola de que estaria ausente durante as duas semanas seguintes. Nunca mais lá voltou. 
Trabalhou cinco anos nos caminhos de ferro.  Certa manhã, embarcou num comboio - e foi aí que a viu pela primeira vez. Foi a primeira vez que riu desde a morte do pai.
E a sua vida nunca mais foi a mesma.
As pessoas diziam que Ove via o mundo a preto-e-branco. Mas ela era cor. Toda a cor que ele tinha."

junho 27, 2021

[Kindle] Oryx and Crake - Margaret Atwood

Título original: 
Oryx and Crake
Ano da edição original: 2003
Autor: Margaret Atwood
Editora: Anchor Books (Ebook ISBN: 9781400078981)

"Pigs might not fly but they are strangely altered. So, for that matter, are wolves and racoons. A man, once named Jimmy, lives in a tree, wrapped in old bedsheets, now calls himself Snowman. The voice of Oryx, the woman he loved, teasingly haunts him. And the green-eyed Children of Crake are, for some reason, his responsibility."

Margaret Atwood tem sido uma das melhores descobertas dos últimos tempos. A capacidade que tem de imaginar um futuro, onde nos coloca enquanto espécie humana, em situações limite e, onde tudo nos parece credível, é muito difícil de fazer e ela faz isso muito bem.
Leva-nos a acreditar que tudo pode, de facto, vir a acontecer como ela descreve. É assustador e fascinante ao mesmo tempo. 

Em Oryx and Crake a autora leva-nos a um tempo onde a humanidade parece ter sido extinta devido a uma praga que nos deixou a todos muito doentes. 
É nessa realidade que conhecemos Snowman, aparentemente o último Homem na Terra. Vive no cimo de uma árvore e é adorado pelos Filhos de Crake, uns seres de olhos verdes, e que são muito parecidos com os humanos. Estes e Snowman parecem ser as últimas criaturas racionais que circulam pela face da Terra. O resto do mundo é habitado por animais, aparentemente inofensivos, mas que possuem uma espécie de inteligência quase humana que, ironia das ironias, os torna particularmente perigosos.

É Snowman, nascido Jimmy, que nos conta o que se passou para que se tenha tornado no último Homem à face da Terra.
Jimmy descreve uma sociedade bastante diferente da que conhecemos, constituída por pequenas comunidades, que mais não são que complexos empresariais detidos por grandes empresas tecnológicas, ligadas à investigação biogenética. Quem lá trabalha tem acesso a casa e escola para os filhos, não existindo qualquer necessidade de saírem do complexo. O que se passa fora das paredes destes complexos não é muito explorado, mas a ideia que se quer fazer passar é a de que, lá fora é perigoso e de que, quem vive dentro de um dos complexos é privilegiado. 

Jimmy nasceu e cresceu numa dessas bolhas protetoras, por ser filho de dois cientistas e investigadores muito respeitados. Apesar de não não poder dizer que teve uma infância feliz, reconhece que fazia parte de uma elite privilegiada. 

Tudo parecia possível naquele tempo. Um tempo em que a engenharia genética estava de tal forma avançada, que as empresas que trabalhavam na área se tornaram muito poderosas.
É possível, por exemplo, criar porcos geneticamente modificados os Pigoons, para recolha de órgãos que serão transplantados em humanos. Autênticas quintas de cultivo de órgãos humanos, onde os porcos já se parecem muito pouco com porcos e são, aos nossos olhos, autênticas aberrações. 

Crake, que Jimmy conheceu na escola, dedicou toda a sua vida e inteligência a tentar criar o ser humano perfeito. Ele acha que as hormonas, o sexo e as ligações emocionais são fraquezas no ser humano, que nos tornam mais agressivos e, por isso, devem ser inibidas.
O ser humano perfeito não questiona, só pensa em sexo para procriar, não se sente emocionalmente ligado a outros seres humanos e não acredita em Deus ou qualquer outra coisa mais espiritual. Só assim, numa forma mais primitiva, o Homem poderá ser verdadeiramente feliz.
Os Filhos de Crake são o resultado dessa investigação.

O que se passou para que Jimmy seja o último homem na Terra e se Crake tinha razão sobre a felicidade dos Homens é o que vamos descobrindo ao longo do livro. 

Gostei muito e vou querer ler os outros dois livros da trilogia - The Year of the Flood e MaddAddam.

Recomendo!

Boas leituras.

Excerto: 
"How long had it taken him to piece her together from the slivers of her he'd gathered and hoarded so carefully? There was Crake's story about her, and Jimmy's story about her as well, a more romantic version; and then there was her own story about herself, which was different from both, and not very romantic at all. 
Snowman riffles through these three stories in his head. There must once have been other versions of her: her mother's story, the story of the man who'd bought her, the story of the man who'd bought her after that, and the third man's story - the worst man of them all, the one in San Francisco, a pious bullshit artist; but Jimmy had never heard those.
Oryx was so delicate. Filigree, he would think, picturing her bones inside her small body. She had a triangular face - big eyes, a small jaw - a Hymenoptera face, a mantid face, the face of a siamese cat. Skin of the palest yellow, smooth and translucent, like old, expensive porcelain. Looking at her, you knew that a woman of such beauty, slightness, and one-time poverty must have Led a difficult life, but that this life would not have consisted in scrubbing floors.
"Did you ever scrub floors?" Jimmy asked her once.
"Floors?" She thought a minute. "We didn't have floors. When I got as far as the floors, it wasn't me scrubbing them." One thing about that early time, she said, the time without floors: the pounded-earth surfaces were swept clean every day. They were used for sitting on while eating,  and for sleeping on, so that was important.  Nobody wanted to get old food on themselves. Nobody wanted fleas."

[Kindle] O Meu Irmão - Afonso Reis Cabral

Título: O Meu Irmão
Ano da edição original: 2014
Autor: Afonso Reis Cabral
Editora: Leya

"A relação entre dois irmãos, um deles com necessidades especiais, que têm de aprender a viver juntos.
Com a morte dos pais, é preciso decidir com quem fica Miguel, o filho de 40 anos que nasceu com síndrome de Down. É então que o irmão – um professor universitário divorciado e misantropo – surpreende (e até certo ponto alivia) a família, chamando a si a grande responsabilidade. Tem apenas mais um ano do que Miguel, e a recordação do afecto e da cumplicidade que ambos partilharam na infância leva-o a acreditar que a nova situação acabará por resgatá-lo da aridez em que se transformou a sua vida e redimi-lo da culpa por tantos anos de afastamento. Porém, a chegada de Miguel traz problemas inesperados – e o maior de todos chama-se Luciana.
Numa casa de família, situada numa aldeia isolada do interior de Portugal, o leitor assistirá à rememoração da vida em comum destes dois irmãos, incluindo o estranho episódio que ameaçou de forma dramática o seu relacionamento.

O Meu Irmão, vencedor do Prémio LeYa 2014 por unanimidade, é um romance notável e de grande maturidade literária que, tratando o tema sensível da deficiência, nunca cede ao sentimentalismo, oferecendo-nos um retrato social objectivo e muitas vezes até impiedoso."

O Meu Irmão é, como o título sugere, uma história sobre a relação entre dois irmãos, Miguel, com Síndrome de Down, e agora com 40 anos e o narrador, com apenas mais um ano que Miguel, professor universitário e, cujo nome, acho que nunca é referido. Os dois, afastados há muitos anos, reencontram-se, quando os pais morrem.

Foram, enquanto crianças, muito amigos. Ele lembra-se do amor que sentiam um pelo outro e da ternura que Miguel lhe despertava.
A relação entre os dois foi-se deteriorando à medida que ambos cresciam, a adolescência torno-os a ambos… adolescentes. Miguel deixou de vê-lo como o seu ídolo, e ele ressentiu-se com o facto de Miguel já não necessitar dele como dantes. Ambos se tornaram, de certa forma mais agressivos, menos pacientes e menos tolerantes.

Apesar do afastamento, quando os pais morrem e ele as irmãs têm de decidir o que será melhor para Miguel, decide que o irmão ficará à sua responsabilidade. Sente que esta é uma oportunidade para voltar ao que eram enquanto crianças, e de dar algum significado à sua própria vida, acreditando, também, que é o melhor para Miguel.

A verdade é que, talvez esteja a fazer isto mais por ele, para se sentir bem, e não tanto pelo irmão ou pela relação de ambos. A verdade é que, talvez nunca tenha efetivamente conseguido olhar para o irmão para além da Síndrome. Talvez nunca tenha olhado para ele como alguém que, com limitações naturais, tem desejos, sonhos e o direito de os perseguir e tentar concretizar. Nunca terá olhado para o Miguel como alguém que tem personalidade e, esta personalidade pode até ser, muitas vezes, uma merda, mas é um direito que lhe assiste. Não tem de ser bonzinho, obediente e sorridente o dia todo, e tem o direito de se ressentir e de não gostar de toda a gente. Tem direito às suas obsessões e às suas esquisitices.

O Meu Irmão é isto, a relação entre estes dois irmãos. O que lhes aconteceu e o que os espera daqui para a frente.

Afonso Reis Cabral conseguiu falar de Síndrome de Down numa obra de ficção, sem ser condescendente, sem ser ofensivo, tornando todas personagens muito humanas, com todos os seus defeitos e qualidades. 
Não é de todo a história triste de uma família que tem de aprender a lidar com alguém com necessidades especiais. Não é a história triste, mas também não é a história cor-de-rosa que, muitas vezes, tenho a sensação que todos nos querem fazer acreditar, quando falamos de crianças e adultos com Síndrome de Down. É um relato muito realista e muito objetivo, por vezes muito cru, e de certa forma impiedoso, como refere a sinopse.

Afonso Reis Cabral abordou o tema de uma forma que a mim me pareceu muito realista, não tornando esse o tema principal, ou o único tema do livro. Por vezes, parece que o livro é mais sobre o narrador do que sobre Miguel.

Gostei muito e acho que Afonso Reis Cabral é para manter debaixo de olho. Recomendo sem qualquer hesitação. 

Boas leituras!

Excerto: 
"Não estamos muito entusiasmados com esta vinda. Observo-lhe o jeito apreensivo de olhar a paisagem, como um bicho cada vez mais encurralado. O cheiro a eucalipto e o som de galhos a estalar nas rodas, algum azul que se revela quando os montes e as nuvens falham. Coisas assim em volta e nós no meio sem as vermos. É que há o medo de os anos se terem sentado na casa como num banco velho. Está com certeza no mesmo sítio, mas não da mesma forma, tal como as pessoas são as mesmas no tempo, mas nunca iguais.
É melhor pararmos. Travo o carro e pergunto-lhe
- Enjoo?
- Nao Nao... - responde com um sorriso..
Arranco e dou-lhe a mão porque sei que também tem os seus medos e talvez pense o que eu penso e quem sabe sinta as mesmas saudades. Com certeza sente as mesmas saudades. Somos parecidos de modos diferentes e, dadas as circunstâncias, esta parecença é surpreendente. Como o sangue nos pode juntar e afastar no mesmo movimentos."

janeiro 02, 2021

As Leis da Fronteira - Javier Cercas

Título original: Las Leyes de la Frontera
Ano da edição original: 2012 
Autor: Javier Cercas
Tradução: Helena Pitta
Editora: Assírio & Alvim

"Uma impetuosa história de amor e desamor, de enganos e violência, de lealdades e traições, de enigmas por resolver e de vinganças inesperadas.
No verão de 1978, com Espanha a sair ainda do franquismo e sem ter entrado definitivamente na democracia, quando as fronteiras sociais e morais parecem mais porosas do que nunca, um adolescente chamado Ignacio Cañas conhece por acaso Zarco e Tere, dois delinquentes da sua idade, e esse encontro mudará para sempre a sua vida. Trinta anos mais tarde, um escritor recebe o encargo de escrever um livro sobre Zarco, transformado nessa altura num mito da delinquência juvenil da Transição. O que acaba por encontrar não é a verdade concreta de Zarco, mas uma verdade imprevista e universal, que nos diz respeito a todos. Assim, através de um relato que não dá um instante de trégua, escondendo a sua extraordinária complexidade sob uma superfície transparente, o romance transforma-se numa pesquisa apaixonada sobre os limites da nossa liberdade, sobre as motivações impenetráveis dos nossos actos e sobre a natureza inapreensível da verdade. Confirma também Javier Cercas como uma das figuras indispensáveis da narrativa europeia contemporânea."

As Leis da Fronteira, transporta-nos para uma época em que as crianças andavam na rua o dia inteiro. Um tempo em que só lhes era pedido que estivessem em casa à hora de jantar e, que não se metessem em sarilhos. Uma época em que, dificilmente conseguias não te meter em sarilhos. :) 
Ignacio Cañas, é um adolescente, filho da classe média baixa espanhola e vive com os pais e a irmã mais velha. É um adolescente típico que tem feito um percurso que se pode dizer que é normal, até ao dia em que começa a ter alguns problemas na escola, com alguns dos colegas que começam a atormentá-lo. Ignacio não se sente à vontade para falar com os pais sobre isso e vai aguentando, as férias de verão aproximam-se e, brevemente, não terá de se cruzar com eles.
No entanto, com a chegada das férias, percebe que a cidade não é grande o suficiente para não se cruzar com eles e, porque se sente sozinho e sem amigos, Ignacio começa a frequentar o salão de jogos onde passa grande parte dos dias e onde acaba por fazer amizade com o dono, começando a trabalhar para ele.
É no salão de jogos que conhece Zarco, Tere e o resto do grupo, todos mais ou menos da idade de Ignacio. Ignacio fica fascinado com Tere e é ela a a principal razão que o leva a querer pertencer ao grupo de Zarco. É por causa deles que começa a frequentar o outro lado do rio, junto à zona onde reside, e onde todos os membros do grupo moram. O rio é a fronteira entre dois mundos que só se cruzam quando há problemas. Do outro lado do rio existe um bairro social onde moram os emigrantes, os pobres, os ladrões, as prostitutas. Um sítio onde proliferam os traficantes de droga e onde a polícia evita ir.

O resto é história. A história de uma Espanha pós-franquista desigual, pobre, onde muitos eram esquecidos e votados ao abandono. A história de um adolescente que quer pertencer a alguma coisa, que anseia por ser valorizado e estimado por alguém. 
Uma história de actos e consequências, de boas e más escolhas e uma história de crescimento individual e de assumir, ou não, as consequências dos nossos actos. Uma história onde nem todos têm a oportunidade de deixar tudo para trás e avançar. 
O que aconteceu naquelas férias de verão, não foi, para a maioria deles, apenas uma história para contar. Aos que vivem do lado errado da fronteira, não são dadas as mesmas oportunidades de regeneração, não têm sequer acesso às mesmas ferramentas. Nunca é uma luta igual e equilibrada. A única alternativa para essas pessoas é o crime? Claramente que não mas, para a maioria o único caminho é manterem-se, a eles e à descendência, num ciclo vicioso de maus empregos e pobreza. Era a realidade na altura, e é a realidade hoje em dia, na maioria dos países do mundo.

Zarco e os seus feitos, continuam a ser falados passados 30 anos, e é a história de Zarco que Ignacio conta, passados 30 anos ao escritor que quer escrever um livro sobre o lendário Zarco.

Este foi mais um daqueles livros que comprei porque estava em promoção e, porque gostei da capa ou do título. Tenho tido boas surpresas com escritores espanhóis e, posso dizer que foi mais um que correu bem. 
Gostei da escrita, da história, do tema e das personagens e, principalmente, gostei da envolvência, do ambiente e da vivência que Javier Cercas consegue passar para nós, enquanto leitores.

Gostei bastante e recomendo sem quaisquer reservas.

Boas leituras!

Excerto (pág. 13):

" - Diga-me quando conheceu Zarco.
- No início do Verão de 78. Aquela foi uma época estranha. É assim, pelo menos, que me recordo dela. Há três anos que Franco tinha morrido, mas o país continuava a ser governado por leis franquistas e a cheirar exatamente ao que o franquismo cheirava: a merda. Nessa altura eu tinha dezasseis anos e o Zarco também. Nessa altura vivíamos ambos muito perto e muito longe.
- O que quer dizer?
-  Você conhece a cidade?
- Por alto.
- Talvez seja melhor assim. A cidade daquela época parece-se pouco com a de agora. À sua maneira, a Girona de então era ainda uma cidade do pós-guerra, um lugarejo obscuro e clerical, acossado pelo campo e coberto de névoa no inverno; não digo que a Girona de agora seja melhor - em certo sentido é pior -: digo apenas que é diferente. Naquela época, por exemplo, a cidade estava rodeada por uma cintura de bairros onde viviam os charnegos. A palavra caiu em desuso mas, nessa altura, servia para designar os emigrantes que chegavam à Catalunha vindos do resto de Espanha, gente que, em geral, não tinha onde cair morta e que viera para cá tentar fazer pela vida... Embora você já saiba tudo isto. O que talvez não saiba é que, como lhe dizia, no fim dos anos setenta a cidade estava rodeada por bairros de charnegos: Salt, Pont Major, Germans Sàbat, Vilarroja. Era aí que a escória se aglomerava.
- O Zarco vivia aí?
- Não: o Zarco vivia com a escória da escória, nos albergues provisórios, na fronteira nordeste da cidade. E eu vivia a duzentos metros dele. A diferença é que ele vivia do lado de lá da fronteira, mesmo ao cruzar a divisória entre o parque de La Devesa e o rio Ter, e eu, do lado de cá, mesmo antes de a cruzar. A minha casa ficava na calle Caterina Albert, no que é hoje o bairro de La Devesa e que nessa altura não era nada ou quase nada, uma série de hortas e descampados onde a cidade ia morrer; aí, dez anos antes, no fim dos anos sessenta, tinham construído alguns prédios isolados onde os meus pais alugaram um apartamento."