dezembro 22, 2020

O Fim do Homem Soviético - Svetlana Aleksievitch

Título original: Время секонд хэнд
Ano da edição original: 1984 
Autor: Svetlana Aleksievitch
Tradução: António Pescada
Editora: Porto Editora

"Volvidas mais de duas décadas sobre a desagregação da URSS, que permitiu aos russos descobrir o mundo e ao mundo descobrir os russos, e após um breve período de enamoramento, o final feliz tão aguardado pela história mundial tem vindo a ser sucessivamente adiado. O mundo parece voltar ao tempo da Guerra Fria.
Enquanto no Ocidente ainda se recorda a era Gorbatchov com alguma simpatia, na Rússia há quem procure esquecer esse período e o designe por a Catástrofe Russa. E, desde então, emergiu uma nova geração de russos, que anseia pela grandiosidade de outrora, ao mesmo tempo que exalta Estaline como um grande homem.

Com uma acuidade e uma atenção únicas, Svetlana Aleksievitch reinventa neste magnífico requiem uma forma polifónica singular, dando voz a centenas de testemunhas, os humilhados e ofendidos, os desiludidos, o homem e a mulher pós-soviéticos, para assim manter viva a memória da tragédia da URSS e narrar a pequena história que está por trás de uma grande utopia."

Confesso que de início estranhei muito a forma como o livro está escrito. Não estava à espera que fosse uma espécie de manta de retalhos, cuidadosamente cosida, com as palavras das muitas pessoas entrevistadas pela autora.
No entanto, quando consegui apanhar o ritmo certo, o livro acabou por se tornar uma leitura quase compulsiva. Muito, muito interessante e diferente de tudo o que já li até hoje.
Por ser contado da forma que é, senti-me muito próxima do que estava a ser dito e é muito fácil criar empatia com cada uma das pessoas, mesmo quando não concordamos com o que está a ser dito.
É curioso que a forma como cada um perceciona um mesmo acontecimento, e a forma como a expressa pode efetivamente, alterar a realidade. E o que é a realidade quando todos a podemos ver de formas tão distintas?

A União Soviética, descrita por quem a viveu, por quem a construiu e por quem nunca deixou de a viver, mesmo depois de esta ter deixado de existir, é fascinante e assustadora e, a maior parte das vezes, completamente incompreensível e irracional. 
E no meio de tanto sofrimento e dor, e de tanta irracionalidade, há algo de muito bonito e, que é comum a praticamente todos os testemunhos no livro: todos sonhavam, e continuam a sonhar, com um mundo melhor, mais justo e igual. São pessoas que fizeram mais do que sonhar com a utopia e tentaram, ativamente, concretizá-la. Deram as suas vidas, por algo que acreditavam ser pelo bem maior.
Depois de tudo se ter desmoronado, mesmo os que sofreram, os que foram sacrificados, mesmo esses, muitos continuam a acreditar que aquele era o caminho certo e, sentem-se um pouco perdidas porque não resultou.

Todo o livro é verdadeiramente fascinante. Está muito bem escrito. Não é, claramente, um livro pró-soviético, mas também não é anti-soviético. É apenas e só, aquilo que os testemunhos são, pessoas que viveram na época, de todos os quadrantes da sociedade, que assistiram à queda e ao desmembramento da União, que viveram esses tempos conturbados e que vivem na Rússia dos dias de hoje, com Putin.
 
Svetlana Aleksievitch, com O Fim do Homem Soviético, deixa que seja o leitor a formular as suas próprias opiniões. Não se trata de induzir-nos por um determinado caminho, trata-se de dar voz às pessoas que efetivamente têm algo a dizer e, no fim, o que temos é um retrato desassombrado de um povo que muitos de nós continua a não entender e de uma época que, hoje em dia, continua a despertar, tanto ódio como paixão.

Gostei mesmo muito e vou querer ler todos os que ela inclui no ciclo Vozes da Utopia, do qual O Fim do Homem Soviético faz parte. Já tenha na estante As Vozes de Chernobyl para ler.

Recomendo sem qualquer hesitação.

Boas leituras!


Excerto (pág.79):
"As pessoas felizes não querem morrer... e aquelas... aquelas que têm quem as ame, também não querem. Querem sempre mais. Mas onde estão as pessoas felizes? Em tempos diziam na rádio que depois da guerra todos seríamos felizes, e o Khruschov, lembro-me, prometeu... que em breve começaria o comunismo. O Gorbartchov jurou, falava tão bem... Corretamente. Agora o Eltsin promete, ameaçou que se deitava nos carris... Toda a vida esperei uma vida boa. Esperava em pequena... e depois de adulta... Agora já sou velha... Resumindo, todos nos enganaram, a vida tornou-se ainda pior. Espera, aguenta e mais espera , aguenta. Espera, aguenta... O meu marido morreu. Saiu à rua, caiu e pronto - o coração falhou. Aquilo que nós passámos não dá para medir com um metro nem pesar com uma balança. Mas estou viva. Vivo. Os meus filhos partiram: o meu filho está em Novossibirsk, a minha filha ficou em Riga com a família, agora é o estrangeiro. Um país diferente. Ali já nem falam russo."

(pág. 97):
"Pergunte-me... Deve perguntar como se conciliava isto: a nossa felicidade e que viessem a meio da noite prender alguém? Alguém desaparecia, alguém soluçava atrás da porta. Por qualquer razão não me lembro disso. Não me lembro! Mas lembro-me de como os lilases floriam na primavera, e das festas de massas nas ruas, dos passeios de madeira aquecidos pelo sol. Do cheiro do sol. Dos deslumbrantes desfiles de ginastas na Praça Vermelha e dos nomes de Lenine e Estaline compostos de flores e corpos humanos vivos entretecidos. Eu fiz essa pergunta à minha mãe...
Que recordação temos nós da Béria? Da Lubianka? A minha mãe ficou calada..."

dezembro 21, 2020

A Construção do Vazio - Patrícia Reis

Título: 
A Construção do Vazio
Ano da edição original: 2017
Autor: Patrícia Reis
Editora: Publicações Dom Quixote

"Sofia é uma menina-tesoura que sobrevive a uma relação de violência e abuso e cresce com a convicção de que a maldade supera tudo.

Será possível atenuar a dor?
Como se resiste ao fantasma real da infância?
Que decisões partem dessa memória e podem limitar a vida?

Sofia abriga-se na amizade de três homens.
Eduardo, Jaime e Lourenço, e vive sem desejo, sem vontade, de construção em construção, sendo o vazio o objectivo final.

Esta personagem surge pela primeira vez no livro Por Estes Mundo Acima (2011) e faz parte do território ficcional da autora que, com A Construção do Vazio, termina um ciclo de três narrativas independentes iniciado em 2008, com o romance No Silêncio de Deus."

A Construção do Vazio é um livro difícil de ler. É um livro que, mais uma vez, devido à qualidade da escrita de Patrícia Reis, nos faz sentir muito próximos do que se está a contar e, quando o que se conta é doloroso, difícil e triste, a leitura pode ser, por vezes, incómoda.

Sofia é uma menina que cresce sem amor, numa família onde os abusos são constantes, tanto por parte do pai como da mãe. Cresce, por isso, com a certeza de que não merece ser amada, e de forma quase consciente, afasta tudo o que possa apaziguar a sua dor. Não acredita que algo de bom lhe possa estar reservado e acaba por se autossabotar, optando por caminhos que só validam a opinião que tem sobre si própria. 

Até que ponto aquilo que nos acontece enquanto crescemos, nos limita na vida adulta? Temos consciência dessa limitações e do impacto que têm na nossa vida? Como é que ultrapassamos essas limitações? 
A Construção do Vazio põe-nos a pensar, entre outras coisas, sobre estas questões. Sobre não julgarmos sem conhecer a história das pessoas e o seu percurso. 
Não acredito que o passado sirva de justificação para todas as nossas atitudes no presente, no entanto, acredito que o que fazemos com o que nos acontece, a forma como lidamos com o que nos acontece, de bom e de mau, molda a nossa forma de ser, de viver, de pensar. Conhecer de onde vimos é fundamental para sabermos quem somos, para onde queremos ir e com quem queremos ir. 

Mais um livro certeiro da Patricia Reis.

Recomendo sem qualquer hesitação. 

Boas leituras! 

Excerto (pág. 49):

"O meu pai obrigou-me a um almoço. Combinámos num centro comercial e, ao fim de uma hora constrangedora de duro silêncio e acusações mútuas sem o tiroteio das palavras, recusei-me a entrar no carro. Voltaria para casa de metropolitano. Vi-o em estado de perder as estribeiras, a raiva, a vergonha, a surpresa de saber que eu tinha crescido, já não era o seu animalzinho de estimação. Ficou vermelho, levantou a voz, até a mão subiu da altura da sua anca. Estávamos em público e nada podia fazer. Um homem como ele escusar-se-ia a uma cena. Eu sabia. Sem dizer nada, pagou o almoço e eu fui empinando a camisola para ele ver o meu peito, como tinha crescido, como as minhas unhas pintadas eram um gesto de ser outra e que, apesar de tudo, nunca mais me tocaria. Nem um beijo."