novembro 05, 2023

[Ebook] Bichos - Miguel Torga

Título original: Bichos
Ano da edição original: 1940
Autor: Miguel Torga
Editora: Publicações Dom Quixote (Ebook ISBN: 9789722057004)

"Uma nova edição pelos 75 anos de uma obra que tem acompanhado muitas gerações de leitores. Incluído no Plano Nacional de Leitura, Bichos é um dos mais lidos e famosos livros de Miguel Torga. A respeito desta obra dirigia-se ao leitor com as seguintes palavras: «São horas de te receber no portaló da minha pequena Arca de Noé. Tens sido de uma constância tão espontânea e tão pura a visitá-la, que é preciso que me liberte do medo de parecer ufano da obra, e venha delicadamente cumprimentar-te uma vez ao menos. Não se pagam gentilezas com descortesias, e eu sou instintivamente grato e correcto. Este livro teve a boa fortuna de te agradar, e isso encheu-me sempre de júbilo. [...] És, pois, dono como eu deste livro, e, ao cumprimentar-te à entrada dele, nem pretendo sugerir-te que o leias com a luz da imaginação acesa, nem atrair o teu olhar para a penumbra da sua simbologia. Isso não é comigo, porque nenhuma árvore explica os seus frutos, embora goste que lhos comam. Saúdo-te apenas nesta alegria natural, contente por ter construído uma barcaça onde a nossa condição se encontrou, e onde poderemos um dia, se quiseres, atravessar juntos o Letes [...].» "

Nunca tinha lido Miguel Torga. Admito que tenho um desconhecimento enorme sobre escritores portugueses do século XX, principalmente até aos anos 70, 80. E tenho, confesso, uma ideia errada da escrita, dos temas e do tipo de escritores que são. Na minha cabeça são chatos, complicados, cheios de palavras desnecessárias e pesados... Não sei quando e como é que este preconceito se instalou em mim mas acho que o estou a quebrar porque, na verdade, tenho tido grandes, e boas, surpresas quando os leio. 
Desconheço a maioria dos escritores da época e a verdade é que nos muitos anos de escola estes pouco ou nada são mencionados... Como é que só recentemente ouvi falar de Maria Judite de Carvalho?!  Acho, sinceramente, que saímos todos a perder. 

Decidi ler Bichos depois de ter visto na RTP1, o episódio do O Leproso, que faz parte da mini série Histórias da Montanha, onde cada episódio é baseado num conto de Miguel Torga. Gostei imenso do que vi e intuí que muito do que tinha gostado era fruto da qualidade de Miguel Torga e não apenas da qualidade da produção. E não me enganei. 

Em BichosMiguel Torga, presenteia-nos com contos sobre animais, sobre animais de duas patas mas principalmente sobre os outros animais. A maioria dos contos são contados na perspetiva dos próprios animais o que torna tudo mais interessante, curioso e muito divertido. 

Gostei muito da escrita, rica e cheia de vida, muito visual, sem ser excessivamente descritiva e adorei as histórias, muito bem estruturadas e criativas. 

Recomendo sem reservas e, faço questão de ter uma cópia física deste Bichos, e também dos Contos da Montanha. Acho que Miguel Torga merece um espacinho nas minhas estantes. :) 

Vejam a mini série na RTP. São cinco episódios e está disponível na plataforma RTP Play. Vale muito a pena. 

Boas leituras. 

Excerto:
"É difícil. Isto de começar num monturo, e só parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida... Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois... Ah, depois é essa descida ao húmus, essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja...
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.
- Já hoje ouvi a cigarra...
- É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam somente os dramas encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses leviana. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera.  Protoplasma, lagarta, ninfa..."

[Ebook] Afirma Pereira - Antonio Tabucchi

Título original: 
Sostiene Pereira
Ano da edição original: 2013
Autor: Antonio Tabucchi
Tradução: José Lima
Editora: Leya (Ebook ISBN: 9789896603243)

"Tendo por pano de fundo o salazarismo português, o fascismo italiano e a guerra civil espanhola, Afirma Pereira é a história atormentada da tomada de consciência de um velho jornalista solitário e infeliz. Antonio Tabucchi nasceu em Pisa (1943-2012), onde fez os seus estudos, primeiro na Faculdade de Letras e depois na Scuola Normale Superiore. Ensinou nas Universidades de Bolonha, Roma, Génova e Siena. Foi Visiting Professor no Bard College de Nova Iorque, na École de Hautes Études de Paris e no Collège de France. Publicou 27 livros, entre romances, contos, ensaios e textos teatrais. As suas obras estão traduzidas em mais de 40 países. Recebeu numerosos prémios nacionais e internacionais. Sozinho, ou com Maria José de Lancastre, traduziu para italiano a obra de Fernando Pessoa. Considerando que a sua pátria é também a língua portuguesa, escreveu um romance em português, Requiem, 1991. O seu teatro foi levado ao palco, entre outros, por Giorgio Strehler e Didier Bezace. O Fio do Horizonte, Nocturno Indiano, Afirma Pereira e Requiem foram adaptados ao cinema respectivamente por Fernando Lopes, Alain Corneau, Roberto Faenza e Alain Tanner."

Pereira é um jornalista que, na verdade, já pouco faz de jornalismo.
É responsável pela nova página Cultural do Lisboa, um jornal "apolítico e independente" o que, na verdade, significa que está completamente alinhado com a propaganda do Governo.
Trabalha sozinho, num escritório só para si e o seu único contacto regular é com o Diretor do jornal, que parece estar sempre na termas em Cascais, e com a porteira do prédio onde tem o escritório, com quem Pereira não simpatiza e que acha que é uma informante da PIDE.

Pereira é um homem solitário, com excesso de peso e que perdeu a mulher há uns anos. Nunca perdeu muito tempo a pensar sobre o mundo que o rodeia, não se interessa por política e os seus dias são passados entre idas ao escritório e os almoços no Café Orquídea, onde tenta resistir às omeletes, por indicação médica, e passa os dias a beber limonadas com açúcar, porque acha que assim vai perder peso.

Ultimamente pensa muito na morte e, é por isso que o artigo de um jovem filósofo, Monteiro Rossi, sobre o tema, lhe desperta a atenção. Num impulso que não consegue explicar, procura o nome dele na lista telefónica, liga-lhe e oferece-lhe trabalho. Pede-lhe que escreva o obituário de alguém conhecido, culturalmente relevante, e que ainda não tenha morrido, para que esteja pronto a publicar na nova página cultural quando a pessoa morrer.
Para sua surpresa Rossi aceita de imediato, embora não seja escritor e a morte não o interesse por aí além. Está a passar por dificuldades e precisa de dinheiro.
 
Pereira é confrontado, pela primeira vez, em anos, com alguém que o obriga a estar atento ao mundo que o rodeia. Monteiro Rossi entrega-lhe um obituário que nada tem a ver com o que Pereira lhe pediu. Rossi recusa-se a escrever sobre figuras simpatizantes do regime e debate-se contra a neutralidade no conteúdo que Pereira lhe pede. E é nestas trocas que Pereira se vê, de repente, confrontado com alguém que se movimenta num meio que até então lhe era completamente desconhecido e, sem que perceba muito bem porquê, não consegue afastar-se. Sente, pelo contrário, uma atração pela agitação que Rossi e a namorada trazem à sua pacata vida. 
E é assim que Pereira se torna numa pessoa que, no verão quente de 1938, entra no radar da polícia política portuguesa. :) 

Embora não tenha sido propositado, li Afirma Pereira, em Abril do ano passado, durante as comemorações do 25 de Abril. Antonio Tabucchi, um estrangeiro, com  uma forte ligação a Portugal, que não viveu na ditadura, cujas referências são necessariamente diferentes, parece ter acertado na descrição da época e dos portugueses. 

Gostei muito da escrita bem humorada, do ritmo, da história e das personagens, que me pareceram muito credíveis, ao mesmo tempo que provocam uma certa estranheza.

Afirma Pereira é um livro pequeno que se lê muito bem. 

Recomendo sem qualquer hesitação e Antonio Tabucchi é, de certeza, um autor a repetir.

Boas leituras.


Excerto:
"Pereira afirma que naquela noite a cidade parecia nas mãos da polícia. Estavam em todo o lado. Tomou um táxi até ao Terreiro do Paço e debaixo das arcadas viam-se camionetas e guardas com espingardas. Talvez temessem manifestações ou concentrações na rua, e por isso controlavam os pontos estratégicos da cidade. (...) Aqui desceu, afirma, e encontrou mais polícia. Desta vez teve de passar diante do pelotão, o que lhe provocou um ligeiro mal-estar. Ao passar ouviu um oficial dizer aos soldados: E lembrem-se rapazes que os subversivos estão sempre emboscadas, é melhor estar de olhos abertos. Pereira olhou à sua volta, como se aquele conselho lhe fosse dirigido, e não lhe pareceu que fosse preciso estar de olhos abertos. A Avenida da Liberdade estava tranquila, o quiosque dos gelados estava aberto e havia pessoas nas mesas a tomar o fresco. Seguiu num passo tranquilo pelo passeio do meio e nessa altura, afirma, começou a ouvir música. Era uma música suave e melancólica, de guitarras de Coimbra, e achou estranha aquela combinação de música e polícia. Pensou que vinha da Praça da Alegria e realmente assim era, pois à medida que se aproximava a música aumentava de intensidade. 
Não parecia nada uma praça de uma cidade em estado de sítio, afirma Pereira, pois não se viam polícias, ou antes, viu apenas um guarda-nocturno que lhe pareceu ébrio e que dormitava num banco. A praça estava enfeitada com grinaldas de papel, com lâmpadas coloridas amarelas e verdes que pendiam de fios estendidos de uma janelas para outras. Havia umas quantas mesas ao ar livre e alguns pares dançavam. Reparou então numa larga tira de pano esticada entre duas árvores da praça com uma enorme inscrição: Viva Francisco Franco. E por baixo, em letras mais pequenas: Vivam os militares portugueses em Espanha. 
Afirma Pereira que só nesse momento compreendeu que se tratava de uma festa salazarista, e por isso não precisava de ser vigiada pela polícia. Mas só então reparou que muitas pessoas vestiam a camisa verde e traziam um lenço ao pescoço. Deteve-se apavorado, e num segundo pensou em várias coisas diferentes. Pensou que talvez Monteiro Rossi fosse um deles, pensou no carroceiro alentejano que tinha manchado de sangue os seus melões, pensou no que diria o Padre António se o visse naquele sítio. Pensou em tudo isto e sentou-se no banco onde o guarda-nocturno dormitava, e deixou-se embalar pelos seus pensamentos."

junho 18, 2023

O Peso do Coração - Rosa Montero

Título: El Peso del Corazón
Ano da edição original: 2015
Autor: Rosa Montero
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Três anos, dez meses e vinte e um dias.

É o tempo que resta a Bruna Husky. A detetive replicante, que é uma sobrevivente capaz de tudo, continua a debater-se com a independência total e a necessidade desesperada de carinho, como uma fera aprisionada na jaula de uma existência a prazo.

Contratada para resolver um caso aparentemente simples e lucrativo, Bruna vê-se envolvida numa trama de corrupção internacional de tal forma sinistra e ameaçadora que pode comprometer a existência da própria Terra. Num futuro no qual os direitos, outrora considerados essenciais, se tornaram reféns do dinheiro, a replicante revela-se uma guerreira empenhada na luta contra esquemas de organização social baseados em preconceitos, regras rígidas e fanatismo, que põem em causa a existência de todos os seres.

O Peso do Coração é um romance distópico que, a partir do debate claro e atual das consequências das opções do presente, reflete de forma madura sobre as condições de vida e da morte, e sobre aquilo que é, na essência, a própria definição de humanidade, constituindo um regresso extraordinário ao mundo fascinante de Lágrimas na Chuva."

Tenho a estranha sensação de que cada vez mais as distopias me parecem mais realistas, menos improváveis e, por isso, mais perturbadoras. É o caso deste O Peso do Coração de Rosa Montero, que se passa num futuro não tão longínquo, onde o Homem quase destruiu a Terra, conquistou o espaço, inventou Tecno-Humanos, batizou-os de Replicantes e, estes conquistaram direitos.

A Terra ainda existe, mas é um lugar diferente do que conhecemos e está em pleno processo de renascimento. A sociedade parece continuar assente numa lógica de dinheiro: quem o tem pode pagar qualidade de vida, quem não o tem, é como se não existisse. Pensando bem, afinal a Terra não é assim um lugar tão diferente. Talvez a diferença esteja no descaramento com que tudo é feito, sem dilemas morais porque, as coisas são como são. Uma questão de sobrevivência, a normalização da lei do mais forte, talvez.

Os replicantes são uma espécie de androides muito evoluídos que coabitam com os humanos, convivem com os humanos e relacionam-se com os humanos. Parecem humanos, agem como humanos, parecem sentir como os humanos mas não são humanos. Tem um tempo predeterminado de vida e "morrem" de uma forma feia e humana. Quando se aproxima a data em que são desativados, as suas partes orgânicas começam a degradar-se, até que deixam de funcionar por completo na data que estava programada desde a sua criação.

Bruna Husky é um replicante e, restam-lhe três anos, dez meses e vinte e um dias de vida e ela não consegue deixar de pensar nisso. Sente a toda a hora a sua finitude e o aproximar do seu fim.  Bruna é um Replicante de combate e, desde que foi dispensada do serviço militar, é detetive.
Bruna sempre foi diferente dos outros porque quem a criou, colocou em Bruna algumas das suas memórias pessoais, o que a tornou, se assim se pode dizer, mais humana, porque as memórias, para todos os efeitos, são reais. Não são dela, ela sabe que não lhe pertencem, mas a memória dos sentimentos que lhe foi implantada é real. Isto torna Bruna mais sensível, empática e até capaz de amar, romanticamente, os humanos.

O Peso do Coração é o segundo livro que Rosa Montero escreveu com Bruna Husky, o primeiro é Lágrimas na Chuva. Não tendo lido o primeiro, não me senti deslocada no mundo de Bruna. Parece-me que podem perfeitamente funcionar de forma independente.

Neste, Bruna vê-se envolvida numa investigação que coloca em risco os três anos, dez meses e vinte e um dias que lhe restam. Vê-se de volta às Zonas Zero, é mordida por uma miúda meio selvagem e, para lhe salvar a vida, aceita ficar responsável por ela, trazendo-a de volta consigo e, volta a trabalhar com Lizard, o polícia com quem tem um relação complicada, a todos os níveis.

Tendo como pano de fundo a investigação de Bruna, vamos vendo, através dos seus olhos, o estado da humanidade, as consequências de todas as decisões de humanos pouco escrupulosos, baseadas no dinheiro, no poder efémero mas, também as decisões de humanos bem intencionados que não souberam fazer de outra forma. 
São interessantes os dilemas de Bruna, que vive torturada, sabendo que não é humana mas sentindo-se como uma. Capaz de amar, de sentir prazer e dor, de questionar as suas ações e as dos outros, de tomar decisões que vão para além do seu bem-estar. Não deixa, no entanto, de pensar até que ponto tudo o que sente não está programado e, por isso, Bruna é tão Replicante como os seus semelhantes?
Até que ponto, nós humanos, não estamos também pré-programados? Até que ponto não somos apenas química e o que sentimos, não são apenas reações químicas, balanços energéticos que podem ser replicados num laboratório?
É um livro que é mais do que a investigação, o entretenimento e a ação. Levanta algumas questões sobre as quais devemos todos refletir, que nos assustam, mas das quais não devemos fugir. 

Este é o terceiro livro que li de Rosa Montero, e acho-os a todos muito diferentes uns dos outros e todos eles são muito bons e surpreendentes. Gosto muito da escrita dela, da forma como desenvolve as histórias e gosto dos temas. Gosto mesmo muito de Rosa Montero. Para além do conteúdo dos livros, acho que têm dos títulos mais originais e bonitos e, adoro todas as capas que circulam por cá. É o pacote completo! :)

Recomendo sem qualquer hesitação.

Boas leituras! :)

Excerto (pág. 9)
"Os humanos são paquidermes, lentos e pesados, ao passo que os Replicantes são tigres rápidos e desesperados, pensou Bruna Husky, consumida pela impaciência de ter de esperar na fila. Recordou uma vez mais a frase de um autor antigo que, um dia, o seu amigo arquivista citara: «As ininterruptas idas e vindas do tigre diante dos barrotes da jaula para que não se lhe e escape o único e brevíssimo instante da salvação.» Impressionada, Bruna decorara-a. Ela era esse tigre, preso no minúsculo cárcere que era a sua vida. Os humanos, com as suas existências longuíssimas e velhice intermináveis, costumavam glorificar com vaidade as vantagens da aprendizagem; até das mas experiências, defendiam, se podiam tirar lições. Husky é que não tinha tempo a perder com tais tontices; como qualquer androide, só vivia uma década, que terminaria dentro de três anos, dez meses e vinte e um dias, e tinha a certeza de que havia saberes que não valia a pena interiorizar. Por exemplo, teria vivido feliz sem conhecer a imundície das Zonas Zero; no entanto ali estava ela no que parecia agora ser uma viagem inútil à miséria."

junho 03, 2023

A Breve Vida das Flores - Valérie Perrin

Título: 
Changer l'eau des Fleurs
Ano da edição original: 2018
Autor: Valérie Perrin
Tradução: Maria de Fátima Carmo
Editora: Editorial Presença

"Íntimo, poético e luminoso.
O romance protagonizado por uma mulher que, contra tudo e contra todos, nunca deixa de acreditar na felicidade.
Violette Toussaint é guarda de cemitério numa pequena vila da Borgonha. A sua vida é preenchida pelas confidências - comoventes, trágicas, cómicas - dos visitantes do cemitério e pelos seus colegas: três coveiros, três agentes funerários e um padre. E os seus dias pareciam ser assim para sempre. Até à chegada do chefe de polícia Julien Seul, que quer deixar as cinzas da mãe na campa de um desconhecido.
A história de amor clandestino da mãe daquele homem afeta de tal forma Violette, que toda a dor que tentou calar vem ao de cima. É tempo de descobrir o responsável pela tragédia que afetou a sua vida.
Atmosférico, tocante e - tantas vezes - hilariante, este é um romance de vida: dos que partiram e vivem em nós, da luz que se pode revelar mesmo na mais plena escuridão. Porque às vezes basta a simplicidade de um gesto, basta a frescura da água viva para nos devolver ao mundo, a nós mesmos e aos outros."

A Breve Vida das Flores é um livro que tem andado nas bocas do mundo literário e do qual toda a gente fala. 

Não quero alongar-me muito sobre a história porque teria dificuldade em não contar demais. Corro o risco de estragar a vossa viagem pela vida de Violette Toussaint. Por isso, digo apenas que é um romance, cheio de tristezas, desgostos, lágrimas, desespero, de raiva e de dor mas, que ao mesmo tempo, está cheio de esperança, de bondade, amizade, aromas reconfortantes e cor. 
Tudo isto, tendo como pano de fundo, uma passagem de nível e um cemitério. Digamos que são os sítios menos prováveis para servirem de abrigo a todos estes sentimentos e, muito menos para serem os sítios onde há encontros e desencontros e onde se iniciam verdadeiras histórias de amor, que é o que este A Breve Vidas das Flores acaba por ser. Dos vários tipos de amor e não apenas o amor romântico.

O livro está bem escrito, lê-se bem, não obstante ser um livro grande, lê-se rápido porque a escrita é fluida. A história é interessante e foge ao típico romance de mulher conhece homem perfeito, enfrentam desafios pelo meio e depois, vivem felizes para sempre. Achei que ia ser algo deste género e não é de todo esse tipo de romance.
Agora que penso sobre o livro, acho que está mais para o drama, uma daquelas histórias da vida real, ficcionada, para ser mais comercial.
Ou seja, Violette Toussaint, a ser real, poderia ser a convidada, de um qualquer programas das tardes televisivas, onde iria partilhar a sua história de superação e onde todos iríamos chorar muito. E acho que é por isso que, embora reconheça qualidades no livro, até alguma originalidade, não consegui gostar assim tanto dele. 
A verdade é que não me identifico com o género de história e, para além disso achei que às tantas, a história se tornou repetitiva.

Não tinha grandes expectativas, por isso, não me sinto defraudada e não dou por perdido o tempo que passei a lê-lo. De todo. Como disse, lê-se bem, está bem escrito e é suficientemente interessante para que continuasse a passar à página seguinte.
É um livro que me vai ficar na memória? Provavelmente não. Mas se tudo o que lêssemos nos ficasse gravado na memória, não teríamos espaço para mais nada. :)

Recomendo, porque dentro do género me pareceu bastante interessante e original.

Boas leituras!

Excerto (pág.10):

"Chamo-me Violette Toussaint, Era guarda de passagem de nível, agora sou guarda de cemitério.
Saboreio a vida, bebo-a em que pequenos goles como chá de jasmim com mel. E quando chega o final de tarde e os portões do meu cemitério se fecham e a chave se pendura à porta da minha casa de banho, fico no paraíso.
Não o paraíso dos meus vizinhos da frente, Não.
O paraíso dos vivos; um trago de porto - colheita de 1983 -, que me traz José-Luís Fernandez todos os dias 1 de setembro. Um resto de férias vertido num cálice de cristal, uma espécie de verão extemporâneo que desarrolho por volta das sete da tarde, faça chuva, neve ou vento.
Dois dedais de líquido rúbi. O sangue das vinhas do Porto. Fecho os olhos. E saboreio. Um único trago basta para me alegrar o serão. Dois dedais porque adoro a embriaguez, mas não o álcool.
José-Luís Fernandez põe flores na campa de Maria Pinto, nome de casada Fernandez (1956-2007), uma vez por semana, exceto em julho, que é quando faço eu o turno. Daí o porto, para me agradecer.
O meu presente é um presente do céu. É o que digo a mim mesma todas as manhãs, quando abro os olhos.
Eu estava muito infeliz; aniquilada, mesmo. Inexistente. Vazia. Estava como os meus vizinhos, mas para pior. As minhas funções vitais mantinham-se, mas sem que eu estivesse no interior. Sem o peso da alma, que pesa, ao que parece, quer sejamos gordos ou magros, altos ou baixos, jovens ou velhos, vinte e um gramas.
Contudo, como nunca tive gosto pela infelicidade, decidi que isso não iria durar. É necessário que a infelicidade acabe, um dia."

junho 02, 2023

Vinte e Quatro Horas da Vida de uma Mulher - Stefan Zweig

Título: Vierundzwanzig Stunden aus dem Leben einer Frau
Ano da edição original: 1927
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Alice Ogando
Editora: Publicações Europa-América

"A rotina de um hotel na Riviera é abalada por uma notícia escandalosa. Uma mulher abandona o marido e as duas filhas, em nome de uma paixão por um jovem que havia acabado de conhecer. Este episódio despoleta uma acesa discussão entre os hóspedes do hotel e leva a Senhora C., uma aristocrata inglesa de sessenta e sete anos, a recordar um episódio secreto da sua vida que a tortura há mais de duas décadas. Vinte e quatro horas na vida de uma mulher é um relato apaixonante e intimista sobre a vida de uma mulher que se liberta das correntes do pudor e do preconceito social em nome de uma paixão avassaladora."

Num hotel na Riveira, quando uma mulher abandona o marido e as filhas para fugir com um homem que tinha acabado de conhecer, todos ficam chocados e todos os hóspedes têm uma opinião sobre o assunto, sendo que a maioria é bastante crítica e intolerante com a mulher fugitiva. Nenhum deles a conhece, no entanto, todos eles não hesitam em classificar como inaceitável e vergonhoso o comportamento desta mulher.
Apenas um jovem homem parece sentir necessidade de, de certa forma, apoiar a mulher fugitiva, tentando trazer para a discussão pontos de vista que vão para além dos argumentos do socialmente aceitável, para uma mulher casada e com filhos.

A Senhora C., sexagenária, e uma das hóspedes, fica impressionada com a atitude deste jovem na defesa da mulher fugitiva. Talvez por isso julga ter encontrado, neste total desconhecido, o ouvinte perfeito para a sua história. Uma história, que aconteceu há vinte anos atrás, e que nunca partilhou com ninguém. Talvez se a partilhar, se a contar em voz alta, a alguém que não a julgue, consiga expurgar todos os sentimentos de culpa e de vergonha que a atormentam desde então.

Há vinte anos atrás, a Senhora C., recentemente enviuvada e devastada por ter perdido o companheiro de uma vida inteira, sente-se perdida, por não saber como viver sem o marido, e solitária, com os filhos crescidos e ocupados nos seus afazeres. Decide, por isso, sair da cidade onde vive e ir até ao casino passar algum tempo entre desconhecidos. Foi algo que sempre gostou de fazer e o objetivo nunca foi jogar. O que a atrai é poder observar os jogadores, mais precisamente as suas mãos. É fascinada por mãos e, é impressionante aquilo que se consegue saber sobre desconhecidos, quando estes não se sabem observados, principalmente quando se encontram mais vulneráveis, como acontece num casino, a apostar muitas vezes tudo o que têm e o que não têm.
É no casino que a Senhora C. repara num par de mãos como nunca tinha visto até então. Umas mãos delicadas, nervosas e agitadas e que espelham o turbilhão de emoções que habitam o homem a quem pertencem.
Fascinada pelo que observa, quando o homem sai do casino, arruinado e claramente perturbado, a Senhora C., é incapaz de não sair atrás dele.

Toda a história começa aqui, na interação desta viúva, nos seus quarentas, com um desconhecido com metade da idade dela, que não consegue abandonar à sua sorte, embora não perceba muito bem porquê. Não percebe, ou não quer perceber, porque teria de admitir que o interesse que o homem desperta nela e parece ir além do instinto maternal. 
A vergonha e a perplexidade não a abandonam ao longo daquelas vinte e quatro horas mas, ao mesmo tempo não a retraem ou impedem de continuar e de não abandonar o homem.
A vergonha e a perplexidade nunca a abandonaram durante os vinte anos que separam aquelas vinte quatro horas e a noite no hotel da Riviera em que decide partilhar a sua história com mais um desconhecido.

É um livro pequeno, que se lê num instante mas que está cheio de conteúdo e, está muito bem escrito, num tom meio irónico e leve. 

Não conhecia Stefan Zweig, não me recordo porque entrou na minha lista de autores a conhecer. O mais provável é ter sido sugerido por alguém cujas opiniões valorizo mas, o que importa é que fiquei agradavelmente surpreendida e vou querer ler mais livros dele.

Recomendo sem qualquer hesitação.

Aproveitem a Feira do Livro de Lisboa para encontrarem os livros dele a preços mais convidativos.

Boas leituras!

Excerto (pág. 63)
"Nunca, até esse momento (não me canso de o repetir), vira um rosto onde a paixão brotasse tanto a descoberto, tão bestial na sua impudica nudez, e fiquei para ali completamente entregue à contemplação fixa desse rosto... tão fascinada, tão hipnotizada pela sua loucura, como estava o seu olhar pelos movimentos palpitantes da bola em rotação.
A partir desse momento, não vi mais nada na sala, tudo me parecia apagado, embaciado, tudo se me afigurava obscuro em comparação com o fogo que brotava daquele rosto; e, sem dar atenção a mais ninguém, observei, talvez durante uma hora, apenas aquele homem e cada um dos seus gestos. Um luz brutal iluminou-lhe os olhos, o novelo convulso das mãos foi bruscamente desfeito como por uma explosão, e os dedos alargaram-se com violência, frementes, mal o croupier empurrou, em sua direcção, vinte moedas de ouro.
Nesse momento, o seu rosto iluminou-se e rejuvenesceu por completo; as rugas desfizeram-se lentamente; os olhos começaram a brilhar; o corpo antes contraído, endireitou-se, tornou-se leve como um cavaleiro impelido pelo entusiasmo do triunfo; os dedos faziam tilintar com amor e vaidade as moedas redondas, obrigando-as a escorregar umas de encontro às outras, fazendo-as dançar e tinir como numa brincadeira. Depois, voltou de novo a cabeça com inquietação, percorreu o pano verde com as narinas dilatadas como um cãozinho de caça farejando a boa pista, e, a seguir, num gesto rápido e nervoso, atirou todas as suas moedas de ouro para um dos quadros.
E logo começou a mesma atitude de expectativa, a mesma hipertensão."

maio 07, 2023

Um Dia Diferente - John Steinbeck

Título original: Sweet Thursday
Ano da edição original: 1954
Autor: John Steinbeck
Tradução: João Belchior Viegas
Editora: Livros do Brasil

"Com o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, o biólogo marinho que todos conhecem por Doutor é mobilizado. Não é exatamente o mesmo homem que volta a Cannery Row um par de anos mais tarde, mas Cannery Row não é também o mesmo bairro.

O Laboratório Biológico tem a porta empenada pela humidade e o interior repleto de pó e bolor. Dora, a madame, morreu durante o sono, deixando o bordel nas mãos da sua irmã Fauna. Henri, o pintor, abandonou a cidade intempestivamente, e não foi o único.

Parece que só Mack ficou onde estava, procurando pôr as coisas em ordem. Em Um Dia Diferente, Steinbeck regressa ao Bairro da Lata e aos dramas quotidianos daquelas personagens unidas por um destino sem esperança, no centro das quais se encontra o Doutor. Após o absurdo da guerra, ele procura retomar a normalidade da vida dedicando-se à recolha e venda de animais marinhos. Até que da água lhe surge uma outra imagem de salvação: na figura da linda e impulsiva Suzy."

Regressar a Cannery Row é à comunidade de Bairro da Lata (a minha opinião aqui) é quase como saber notícias de velhos conhecidos dos quais guardamos boas memórias e por quem temos carinho. São assim estes livros de John SteinbeckBairro da Lata e agora este Um Dia Diferente e, que foi companhia certa nas férias de Verão do ano passado. Estes dois são muito parecidos com O Milagre de São Francisco (a minha opinião aqui) que também aconselho a lerem.

Como é dito na sinopse o Doutor é mobilizado para a 2ª Grande Guerra e, quando regressa, todo o bairro lhe parece diferente. A guerra acabou por afetar, mesmo que de forma indireta, todos e, sem o Doutor para os orientar, todos parecem estar meio à deriva.
Não é só o bairro e as suas gentes que lhe parecem diferentes, o próprio Doutor se sente cansado, desiludido com a vida e cada vez mais sozinho.

O regresso do Doutor é festejado por todos mas todos se apercebem que o homem que voltou não é o mesmo que partiu e ficam preocupados com o desalento que sentem ter tomado conta dos dias do homem que tanto admiram. É por isso que Mack e o seu grupo de inadaptados decidem que têm de fazer alguma coisa para animar e ajudar o Doutor.

Suzy é uma jovem mulher que aparece em Cannery Row, sozinha, à procura de algo que a faça feliz. Quer mudar de vida e vem de braços abertos, preparada para abraçar todos os desafios que a possam esperar. É inteligente e aguerrida e é por isso que chama a atenção de todos, sendo unânime para todos que Suzy é a mulher perfeita para acabar com a solidão do Doutor.
Mack e todos em Cannery Row vão fazer tudo para que os dois se apaixonem e vivam felizes para sempre.

E é mais ou menos isto, uma história de amor, de preconceitos e de desencontros e, mais uma vez, uma história de amizades improváveis, com gente boa, cheia de boas intenções.

É um livro divertido e bem escrito, com a qualidade certificada de John Steinbeck. :)

E foi bom voltar a estas personagens e ao ambiente de Cannery Row.

Recomendo sem hesitações. Aconselho, no entanto a que leiam primeiro o Bairro da Lata para conhecerem as personagens melhor e este não vos pareça meio desenquadrado.

Boas leituras!

Excerto (pág. 11)
"Quando a guerra chegou a Monterey e a Cannery Row todos lutaram mais ou menos, duma maneira ou doutra. Quando as hostilidades cessaram todos tinham as suas cicatrizes.
As fábricas de conservas lutaram também a seu modo, desprezando as limitações impostas e pescando todo o peixe possível. Tudo por razões patrióticas, se bem que isso não voltasse a dar vida aos peixes. Exatamente como as ostras da Alice no País das Maravilhas, «comeram tudo». De resto, o mesmo nobre impulso devastou as florestas do Oeste e levou a que hoje em dia  a água seja puxada à bomba das profundezas do subsolo da Califórnia em quantidades nunca comparáveis às que chovem do céu. Se o deserto alastrar, toda a gente ficará triste, tão triste como Cannery Row quando todas as sardinhas foram pescadas, enlatadas e comidas. As fábricas de chapa ondulada de um cinzento-pérola estavam envoltas em silêncio e toda a vida que tinham era a dum pacífico guarda. A rua, que estremecera com camiões, estava sossegada e deserta.
De facto a guerra tocara a todos. O Doutro fora mobilizado. Deixara como encarregado do Laboratório Biológico Ocidental o seu amigo Old Jingleballicks e cumprira o seu serviço como sargento num posto antivenéreo.
O Doutor encarou a situação com filosofia. Entretinhas as horas livres com uma quantidade apreciável de álcool fornecido pelo Governo, arranjou amizades e evitou ser promovido. Quando a guerra acabou foi mantido no serviço por gratidão do Governo a fim de destrinçar certos problemas menos claros de inventário, tarefa que lhe incumbia, aliás, por a ele se dever em grande parte a sua pouca clareza. Dois anos após a vitória, o Doutor foi finalmente desmobilizado com todas as honras."

abril 30, 2023

[Ebook] Born a Crime - Trevor Noah

Título original: 
Born a Crime
Ano da edição original: 2016
Autor: Trevor Noah
Editora: John Murray (Ebook ISBN: 9781473635319)

"The compelling, inspiring, (often comic) coming-of-age story of Trevor Noah, set during the twilight of apartheid and the tumultuous days of freedom that followed.
One of the comedy world's brightest new voices, Trevor Noah is a light-footed but sharp-minded observer of the absurdities of politics, race and identity, sharing jokes and insights drawn from the wealth of experience acquired in his relatively young life. As host of the US hit show The Daily Show with Trevor Noah, he provides viewers around the globe with their nightly dose of biting satire, but here Noah turns his focus inward, giving readers a deeply personal, heartfelt and humorous look at the world that shaped him. 
Noah was born a crime, son of a white Swiss father and a black Xhosa mother, at a time when such a union was punishable by five years in prison. Living proof of his parents' indiscretion, Trevor was kept mostly indoors for the first years of his life, bound by the extreme and often absurd measures his mother took to hide him from a government that could, at any moment, take him away.
A collection of eighteen personal stories, Born a Crime tells the story of a mischievous young boy growing into a restless young man as he struggles to find his place in a world where he was never supposed to exist. Born a Crime is equally the story of that young man's fearless, rebellious and fervently religious mother - a woman determined to save her son from the cycle of poverty, violence and abuse that ultimately threatens her own life.
Whether subsisting on caterpillars for dinner during hard times, being thrown from a moving car during an attempted kidnapping, or just trying to survive the life-and-death pitfalls of dating in high school, Noah illuminates his curious world with an incisive wit and an unflinching honesty. His stories weave together to form a personal portrait of an unlikely childhood in a dangerous time, as moving and unforgettable as the very best memoirs and as funny as Noah's own hilarious stand-up. Born a Crime is a must read."

Contam-se pelos dedos de uma mão as biografias que li. Não é um género que me suscite curiosidade e não é o género em que penso quando penso em livros. Porquê então este Born a Crime de Trevor Noah? Porque gosto da pessoa pública Trevor Noah, porque gosto do profissional Trevor Noah, porque fiquei curiosa com a história que ele tinha para contar e porque sou atraída para a temática do racismo. 🙂

Em Born a Crime, Trevor conta-nos a sua história e a história da mãe, que mais não é do que a história do Apartheid na África do Sul. A segregação e a discriminação racial e o que permaneceu, com o fim deste regime. 
Achei curiosa a imagem que ele passa de haver uma série de medidas que eram só muitos estúpidas, levadas a cabo por pessoas pouco inteligentes cuja única qualificação era terem nascido brancas. Temos tendência para pensar nestas coisas como sendo fruto de algo mais organizado e estruturado e por vezes o que acontece é que as coisas se mantêm por inércia, por hábito, por gerações e gerações que cresceram com alguém a dizer quem eram, o que podiam ou não ser ou fazer.

Born a Crime é, entre outras coisas, uma homenagem que Trevor Noah faz à mãe. A mãe de Trevor é fascinante. Pela forma como conseguiu sobreviver e prosperar contra todas as probabilidades. Desde a forma como escolheu quem seria o pai do seu primeiro filho, consciente de que iria dar à luz um mestiço, até à forma disruptiva como o educou. Educou-o para ser o que quisesse, preparando-o para um mundo que não tinha forma de saber que iria ser o mundo do filho, um mundo mais tolerante e justo. Ela só queria que ele estivesse preparado quando as oportunidades chegassem e que ele tivesse as ferramentas para quebrar o ciclo de pobreza e discriminação. 
É uma mulher inteligente e independente, cheia de defeitos e de incoerências. É, de acordo com o que o filho nos conta dela, uma mulher por inteiro com todas as suas qualidades e defeitos e que vive de acordo com todas as suas boas e más decisões.

Gostei muito do livro. Gostei da forma honesta como ele expõe a sua história, não escondendo as coisas más e sem se vangloriar das boas.
Gostei da escrita, simples e direta, do sentido de humor mas, sobretudo gostei da história, contada na perspetiva de uma criança e adolescente, que olha para o mundo à volta e tenta retirar algum sentido de tudo o que vê.

Recomendo sem reservas. 

Boas leituras! 

Excerto:
"During apartheid, one of the worst crimes you could commit was having sexual relations with a person of another race. Needless to say, my parents committed that crime. (...) 
Humans being humans and sex being sex, that prohibition never stopped anyone. There were mixed kids in South Africa nine months after the first Dutch boats hit the beach in Table Bay. Just like in America, the colonists here had their way with the native women, as colonists so often do. Unlike in America, where anyone with one drop of black blood automatically became black, in South Africa mixed people came to be classified as their own separate group, neither black nor white but what we call "colored". Colored people, black people, white people, and Indian people were forced to register their race with the government. Based on those classifications, millions of people were uprooted and relocated. Indian areas were segregated from colored areas, which were segregated from black areas - all of them segregated from white areas and separated from one another by buffer zones of empty land. Laws were passed prohibiting sex between Europeans and native, laws that were later amended to prohibit sex between whites and all nonwhites."