dezembro 26, 2022

[Ebook] A Filha das Flores - Vanessa da Mata

Título: 
A Filha das Flores
Ano da edição original: 2013
Autor: Vanessa da Mata
Editora: Quetzal Editores

"Neste romance de estreia, Vanessa da Mata demonstra uma incrível destreza linguística e a capacidade de criar uma história atmosférica e magnética.
Giza cresce numa pequena cidade brasileira e ajuda, com o seu trabalho, num negócio de flores muito especial gerido por Florinda e Margarida que a tratam como irmã.
Aos 18 anos, Giza apaixona-se por Tito, mas Florinda apressa-se a pôr um fim à sua paixão.
À medida que Giza vai crescendo, a vila parece ir diminuindo, o que faz com que ela comece a procurar novos territórios e encontre a "Vila" - um bairro periférico, detestado pela população em geral. Aí faz novos amigos que a iniciam na história secreta daquele lugar que se revela estar ligada à sua própria origem."

Da Vanessa da Mata conhecia apenas a música e tinha alguma curiosidade em ler A Filha das Flores, o primeiro, e acho que até à data o único, livro que escreveu.

A sinopse resume bem a história. Giza é uma menina, pré-adolescente, que cresce numa cidade pequena, e vive com duas irmãs, Florinda e Margarida, a quem trata por Titias, embora não saiba o verdadeiro grau de parentesco que tem com elas. Giza é desajeitada, tem pouca auto-estima, acha-se feia e pouco interessante. Embora não saiba explicar porquê, sente que há qualquer coisa na vida dela e na sua história que não consegue encaixar. Sente-se deslocada, olhada de lado por toda a gente na cidade, como se todos lhes escondessem alguma coisa e sente-se pouco amada pelas duas irmãs com quem vive, algo que se vai tornando cada vez mais evidente, à medida que Giza vai crescendo e começa a despertar a atenção do sexo oposto.

As pessoas na pequena cidade, começa a reparar Giza, são invejosas, mentirosas e maldosas, escondendo o que verdadeiramente sentem. Em público são simpáticas e sorridentes, como se tudo estivesse bem, mas revelam-se no que fazem e dizem quando pensam que ninguém as está a ver ou a ouvir.

Tudo se precipita na vida de Giza quando, no dia em que faz 18 anos, conhece e se apaixona perdidamente por Tito. E quando vai, pela primeira vez à "Vila", um bairro nos arredores da pequena cidade e que é o oposto da cidade. Na "Vila" as pessoas são francas e alegres, não escondem os seus defeitos e vivem como querem sem qualquer preconceito. São afáveis e acolhedoras.
A cidade e a "Vila" vivem de costas voltadas uma para a outra. Os habitantes da "Vila" não descem à cidade e os habitantes da cidade não sobem à "Vila", pelo menos, não de forma a que todos saibam. 
Giza, que não sabia da existência da "Vila", não percebe como é possível que, em toda a sua vida nunca ninguém lhe tenha falado daquele local? Sem que consiga perceber porquê sente-se em casa na "Vila", algo que nunca sentiu na cidade onde sempre viveu.
Giza vai perceber que sempre esteve ligada aquele lugar, que todos os seus desconfortos, todas as suas impressões tinham um fundo de verdade. Giza vai descobrir quem é e de onde veio e, sabendo tudo isso, está preparada para conhecer o mundo.

Gostei do início e do meio da história, para o fim achei que ela se perdeu um bocadinho e depois acabou por se encontrar novamente. Acho que se nota que a Vanessa da Mata não é uma escritora profissional. Percebe-se em alguns diálogos e em alguns acontecimentos menos interligados, no entanto, acho que acabou por resultar num livro interessante, com passagens muito bonitas e bem escritas e, com uma história diferente, que se lê muito bem. Gostei especialmente das personagens que me pareceram todas muito bem desenvolvidas e com quem conseguimos criar empatia.

Gostei e recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras!


Excerto:
"Havias duas buganvílias entrelaçadas que cruzavam a casa, foram plantadas de modo a agradar as vistas das titias. Cada uma de uma cor, ordenadas desde filhotes a passar de um lado ao outro e acimas das janelas dos quartos, eram de copas cheias e, quando floriam, pintavam a casa inteira de pequeninas formas. Infinitos pontos avermelhados e alaranjados causando nos olhos um furta-cor, como se fossem flores de papel - o começo de uma no final da outra, origamis de seda que se misturavam.
Percebi então, com os rasgos da parte nova da minha maioridade que quebrou, o que eu nunca quis tornar consciente: jamais tive uma grama da atenção delas. Antes achando que era pelo motivo da ignorância da infância, mas depois, crescida, vendo que era porque o que elas podiam me dar era, somente ou o bastante, um comportamento educado. Nada de dar beijo suado, exagerado e abraço demorado. Conversar o desnecessário ou chorar perto delas - isso era coisa de fracos, de impulsivos, mas entre elas havia o insuportável, elas estavam dispostas a essas manifestações humanas dentro de ambientes fechados, cuidadosamente controláveis.
Fui tomada por uma dor no peito que nem na época em que os meus seios irromperam sobre as costelas eu havia sentido, jamais achei que existia algum problema físico sério - a não ser a morte, é claro - que trouxesse uma dor tão insuportável. Pensei que poderia com todas elas, que era maior, e as dominaria se fosse necessário, mas entendi que aquela era a dor mais imponente, impiedosa, severa, indigesta e impossível de lidar para mim. Desnorteou toda a minha base, deixando descomandado o meu pensamento, desmantelado o resto do meu corpo. A dor que eu sentia não dava trégua, era permanente e me tomava da fronte aos pés, me envolvendo em um manto de chumbo de todos os sem-rumo e trazendo à tona os tristes e as tristezas do mundo inteiro. Tudo deitado em mim, como se ser adulto fosse isso: se encontrar, dentro de um feioso caixão, com a perda da infância e com o disparate da sua morte. A decepção é mesmo senhora do demônio, ainda mais quando o demônio está do nosso lado e se revela dissimulado durante tantos anos, dentro de um vestido bordado de bondade e amizade. Era muito tempo me construindo dentro de uma casa onde eu me inventava amada e querida e tudo se desmoronava, eu não me tinha mais. Me mastigava compulsivamente e, mesmo assim, não sentia um ínfimo gosto agradável depois de tidas as unhas arruinadas, restava apenas o fel no fundo do paladar.
Era possível ser de alguém, não sendo?"

O Prisioneiro do Céu - Carlos Ruiz Zafón

Título original: El Prisionero del Cielo
Ano da edição original: 2011
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Tradução: Sérgio Coelho
Editora: Editorial Planeta

"Barcelona, 1957, Daniel Sempere e o amigo Fermín, os heróis de A Sombra do Vento, regressam à aventura, para enfrentar o maior desafio das suas vidas.

Quando tudo lhes começava a sorrir, uma inquietante personagem visita a livraria Sempere e ameaça revelar um terrível segredo, enterrado há duas décadas na obscura memória da cidade. Ao conhecer a verdade, Daniel vai concluir que o seu destino o arrasta inexoravelmente a confrontar-se com a maior das sombras: a que está a crescer dentro de si.

Transbordante de intriga e de emoção, O Prisioneiro do Céu é um romance magistral, que o vai emocionar como da primeira vez, onde os fios de A Sombra do Vento e de O Jogo do Anjo convergem através do feitiço da literatura e nos conduzem ao enigma que se esconde no coração do Cemitério dos Livros Esquecidos. Este romance de Carlos Ruiz Zafón é um verdadeira promessa de felicidade."

Livro lido nas férias de Verão de há uns dois anos atrás. Os pormenores já se desvaneceram na memória, é certo mas, conservo a mística de Barcelona e as personagens que Carlos Ruiz Zafón tão bem sabia criar. Misteriosas e assustadoras.

O Prisioneiro do Céu, traz-nos Daniel Sempere, à frente da livraria, casado, com um filho e feliz. Os dias passam sem grandes sobressaltos, para além dos que atormentam todos os donos de livrarias. Não serão os negócios mais rentáveis e estáveis do mundo. :)
Um dia, um estranho homem, entra na vida do casal e, com ele traz a dúvida e o medo. Daniel Sempere descobre dentro dele sentimentos que não sabia serem possíveis. Torna-se um homem inseguro, desconfiado e agressivo. Fica obcecado por este homem que de repente tornou a sua vida num inferno.

E quem será este homem misterioso que parece trazer a desgraça para os Sempere? O que vamos conhecendo desta personagem e a sua história foi o que mais me cativou no livro. As descrições, o mistério, a dualidade - será bom? será mau?, foi o que mais me manteve interessada na leitura.
Julgo que não é novidade que a personagem do Daniel Sempere, sempre me irritou um bocadinho. Essa impressão não se alterou, agora que é um homem adulto. :)
Com a ajuda de Fermín, o amigo de sempre, e que parece estar, de alguma forma envolvido na história que o homem misterioso está a querer desenterrar, Daniel vai percorrendo as ruas e ruelas de Barcelona para tentar descobrir o que trouxe aquela personagem para a sua vida.

A história está bem escrita, outra coisa não seria de esperar do Carlos Ruiz Zafón. Consegue manter uma aura de mistério, quase terror, que nos mantém em suspenso até ao fim. Foi muto bom voltar a estar com Fermín. Acho que é uma das personagens mais bem conseguidas deste universo do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Para quem gosta de Carlos Ruiz Zafón e deste universo, O Prisioneiro do Céu é um livro que não podem não ler. 

Recomendo sem reservas.

Boas leituras!

Excerto (pág. 95):

"A cela era um rectângulo escuro e húmido, com um pequeno orifício aberto na rocha, por onde entrava ar frio. As paredes estavam cobertas de mossas e marcas gravadas pelos inquilinos anteriores. Alguns gravavam os seu nomes, datas ou deixavam algum indício de que haviam existido. (...)
Fermín estava ali há meio hora, quando reparou, no outro extremo da cela, num vulto na sombra. Levantou-se e aproximou-se devagar, acabando por descobrir tratar-se de uma saca de serapilheira suja. O frio e a humidade haviam começado a penetrar-lhe nos ossos e, por mais que o cheiro emanado daquele fardo salpicado de manchas escuras não augurasse agradáveis conjecturas, Fermín pensou que talvez a saca tivesse uma farda de prisioneiro, que ninguém se dera ao trabalho de lhe entregar e, com um pouco de sorte, um cobertor para se aquecer. Ajoelhou-se em frente à saca e desatou o nó que atava uma das extremidades.
Ao abri-la, a iluminação das candeias que cintilavam trémulas no corredor revelou o que, por momentos, julgou tratar-se do rosto de um boneco, de um manequim como os que os alfaiates colocavam nas montras para exporem os fatos. O fedor e a náusea fizeram-no compreender que não se tratava de um boneco. Cobrindo o nariz e a boca com uma das mãos, retirou o resto do tecido e atirou-se para trás, contra a parede da cela.
O cadáver parecia ser de um adulto de idade indeterminada, entre os quarenta e os setenta e cinco anos, que não deveria pesar mais do que cinquenta quilos. Os cabelos compridos e a barba branca cobriam-lhe uma boa parte do tronco esquelético. As mãos ossudas, de unhas compridas e retorcidas, assemelhavam-se às garras de uma ave. Tinhas os olhos abertos e as córneas pareciam ter-se-lhe enrugado, como frutos maduros. A boca estava entreaberta e a língua, inchada e enegrecida, ficara presa entre os dentes apodrecidos.
- Tire-lhe a roupa antes que o levem - entoou uma voz de uma cela do outro lado do corredor. - A si, ninguém lhe vai dar outras roupas até ao próximo mês."

dezembro 18, 2022

[Ebook] Um Detalhe Menor - Adania Shibli

Título original: تفصيل ثانوي
Ano da edição original: 2020
Autor: Adania Shibli
Tradução: Hugo Maia
Editora: Publicações D, Quixote

"No verão de 1949 - um ano depois da Nakba, a catástrofe que expulsou mais de 700 mil palestinianos das suas terras, e que os israelitas celebram como a Guerra da Independência -, uma unidade de soldados israelitas, ataca um grupo de beduínos no deserto do Negueve, dizimando-o. Entre as vítimas encontra-se uma adolescente que sobrevive ao massacre. É capturada e violada, e depois assassinada e enterrada na areia. É a manhã de 13 de agosto de 1949.
Muitos anos mais tarde, quase na atualidade, uma jovem mulher em Ramallah descobre acidentalmente uma breve menção a esse crime brutal. Obcecada com o assunto, não só devido à natureza macabra do caso, mas também devido ao detalhe menor de ter acontecido precisamente vinte e cinco anos antes de ela nascer, irá embarcar numa viagem para tentar desvendar alguns dos detalhes que envolvem o crime.
Adania Shibli sobrepõe magistralmente estas duas narrativas translúcidas para evocar um presente para sempre assombrado pelo passado. Com uma prosa inquietante e precisa, Um Detalhe Menor evoca a experiência palestiniana do apagamento, da expropriação e da vida sob a ocupação, ao mesmo tempo que revela a complexidade permanente de se juntar as peças de uma narrativa ocultada por fragmentos de linguagem."

O livro está dividido em duas partes. A primeira parte passa-se em 1949, quando uma unidade de soldados israelitas ataca um grupo de beduínos no deserto do Negueve. Uma adolescente sobrevive e é trazida pelos soldados para o acampamento, onde é violada por praticamente todos os soldados daquela unidade. A rapariga nunca baixa os braços, grita e luta até ao fim. Talvez por isso, porque percebem que ela nunca vai ser submissa e vergar-se às suas vontades, acaba por ser levada de volta para o deserto, onde é abatida e enterrada, sem qualquer demonstração de compaixão por parte dos seus carrascos.

O relato destes dois, três dias é de certa forma sufocante e ao mesmo tempo entediante. Adania Shibli centra o relato na personagem do comandante da unidade e descreve, julgo que de forma propositada, de forma repetitiva, as rotinas do comandante, desde a higiene às saídas para patrulhar as áreas circundantes. Pelo meio, uma jovem é violada, o cão que nunca a deixou sozinha ladra incessantemente, a rapariga é arrastada para o deserto, é abatida a tiro e o comandante regressa para a sua tenda, lava o rosto, desinfeta a ferida que tem na perna, muda de camisa e segue com os seus deveres. 
Esta forma de nos contar o que se passou tem um efeito entorpecedor, como se o que é relatado não devesse afetar-nos. De certa forma desumaniza o que aconteceu e isso foi algo que me deixou, naturalmente desconfortável, porque eu deveria estar horrorizada mas, na verdade o que eu sentia era alguma indiferença. Aquela espécie de cantilena deixou-me adormecida. Faz sentido?

A segunda parte, passa-se muitos anos depois. Em Ramallah, no Estado da Palestina, uma jovem mulher lê uma referência ao que aconteceu a esta rapariga em 1949 e, quando percebe que a rapariga foi morta no dia do seu aniversário, precisamente 25 anos antes de ela nascer, fica obcecada com o assunto. Sem conseguir esquecer a rapariga e com a certeza de que o que leu não é o mais fiel retrato do que se passou, porque foi escrito por um jornalista israelita, decide investigar ela própria o que aconteceu. Para isso tem de entrar em território de Israel. Não tem os documentos necessários para o fazer mas, acaba por ser ajudada por colegas de trabalho. Uma colega entrega-lhe o seu passe pessoal que lhe permite circular pelos territórios ocupados por Israel e um outro colega aluga-lhe o carro para a viagem.

Nesta segunda parte, mantém-se o mesmo ritmo de escrita, embora a cantilena seja menos evidente. 

Impressiona a referência aos dois mapas que ela utiliza para se orientar, um pré-ocupação e o oficial de Israel. No primeiro faz-se referência a localidades, aldeias inteiras, que no segundo mapa pura e simplesmente não existem ou que foram destruídas e substituídas por colonatos. Embora as aldeias já não existam de facto, porque foram forçadas a deixar de existir, o não serem sequer mencionadas, é como se nunca tivessem existido. É como se todas as pessoas que lá nasceram, viveram e morreram, nunca tivessem existido.

Impressiona a paisagem que parece sempre igual, deserta, sem gente. Locais de onde as pessoas foram forçadas a sair mas que não foram reocupados, apenas destruídos e, todo e qualquer vestígio dos anteriores habitantes foi eliminado, literalmente eclipsado do mapa.

E porquê? É a pergunta que me vai passando pela cabeça. Porquê?
Não tenho reposta, nem capacidade para procurar a resposta.

Impressiona o carrossel emocional desta mulher, entre o medo de ser apanhada e a vontade, incompreensível, que tem de conhecer melhor a rapariga e as circunstâncias que levaram à sua morte em 1949.

Impressiona toda esta viagem, e o seu fim é, infelizmente, o único fim que fazia sentido. 

Há uma pergunta que não me deixa em paz desde que li este livro. Não consigo entender a relação que os Israelitas, povo que já habitava o território que acabou por ser oficialmente reconhecido como Estado de Israel, depois do fim da 2ª Guerra Mundial, têm ou tinham com os Judeus perseguidos pelos Nazis? Tenho dificuldade em aceitar que estão relacionados. Como é que, um povo que passou pelo que passou, que foi dizimado e perseguido, consegue ocupar, de forma ilegal, território que não lhe pertence, e continuar, há décadas, a alimentar um conflito desigual, injusto e desumano. Não consigo perceber...
Sei que tudo isto não é simples e que as coisas não são pretas ou brancas. Sei, no entanto que, muitas vezes as coisas são tão complexas quanto nós, ou alguém, por nós, quer que sejam. Simples, complexas é tudo uma questão de perspetiva.

Gostei muito. É um livro pequeno que se lê muito rápido e que, julgo que vai ficar na minha cabeça por algum tempo.

Recomendo sem hesitações.

Boas leituras!

Excerto:
"Não sei se já terei percorrido esta estrada anteriormente, como me pareceu ao início, ou não. A estrada que me era familiar até há uns anos era estreita e repleta de curvas, enquanto está é demasiado larga e reta. Além disso, o muro com cinco metros de altura que emerge de ambos os lados, é sucedido por imensos novos edifícios agrupados em colonatos, que não existiam antigamente ou quase que não se viam, enquanto a maioria das aldeias palestinianas que aqui havia desapareceram. 
De cabeça erguida e olhos bem abertos, procuro quaisquer vestígios dessas aldeias e das suas casas que se enxameavam espontaneamente, à semelhança das rochas sobre as colinas, ligadas entre si por estreitos caminhos que vagarosamente serpenteavam. Mas em vão. Já não é possível avistar nenhuma. E quanto mais avanço, menos sei onde estou! Até que vislumbro, à esquerda da estrada, um outro caminho bloqueado, e é aí então que tenho a certeza de que já passei nesta estrada dezenas de vezes, pois este caminho secundário, que agora está barrado por uma pilha de terra e alguns vultos os blocos de betão, conduz até às aldeias de al-Jib. Paro o carro no entroncamento desse caminho, apeio-me e aproximo-me do monte de terra e betão que o bloqueia para me certificar que ele existe mesmo e que é impossível movê-lo, assim como é também impossível atravessá-lo com o meu carro ou com outro qualquer. É belo este caminho, que ziguezagueia ora para a direita, ora para a esquerda, passando por entre as colinas pontilhadas com oliveiras e pequenas aldeias envoltas em silêncio, até Beit Iksa. (...) Examino a zona junto à autoestrada n°1, que parece, de acordo com o que o mapa mostra, povoada principalmente de colonatos. As únicas duas  aldeias palestinianas que aparecem são Abu Ghosh e Ein Rafá. Abro o mapa que reproduz a Palestina antes de 1948 e deixo o meu olhar percorrê-lo, movendo-se entre os numerosos nomes de aldeias palestinianas, que foram destruídas depois da expulsão dos seus habitantes nesse ano. Reconheço o nome de algumas, de onde alguns colegas meus e conhecidos são provinientes, como, por exemplo, Lifta, al-Qastal, Ein Kárim, al-Maliha, Jimzu e Deir Tarif. Mas a maioria são nomes que me parecem desconhecidos, a ponto de me causarem um estranho sentimento de melancolia. (...) Olho de novo para o mapa israelita. Um enorme parque, chamado Parque Canadá, cobre agora a área de todas estas aldeias. Fecho o mapa, ligo o motor do carro, e arranco pela autoestrada n°50, desta vez sem encontrar nenhum obstáculo, até que acabo por chegar à longa autoestrada."

dezembro 17, 2022

Essa Puta Tão Distinta - Juan Marsé

Título original: Esa Puta tan Distinguida
Ano da edição original: 2015
Autor: Juan Marsé
Tradução: Maria Manuel Viana
Editora: Publicações D. Quixote

"Embora deteste a filmografia do realizador e produtor que contrata os seus serviços, um escritor célebre por retratar nos seus romances a ruína moral dos anos do pós-guerra aceita com relutância a encomenda para escrever um guião cinematográfico sobre um caso real da Barcelona dos anos 40. Trata-se de um crime que teve lugar no cinema Delícias, em cuja sala de projeção foi assassinada  uma prostituta, estrangulada com uma tira de película de filme enquanto o público assistia à estreia de Gilda. Durante o processo de pesquisa o escritor irá verificar como, por vezes, na vida real os crimes carecem de sentido e os seus protagonistas nem sempre são heróis ou anti-heróis, algo que, na ficção, nem todos parecem dispostos a tolerar.
Neste magnífico romance, Juan Marsé, transmutado num escritor descrente e incapaz de se levar a sério, reflete sobre as armadilhas da memória e os limites da ficção, enquanto ajusta contas com aqueles que manipulam o nosso passado para gerar produtos de simples entretenimento, que pervertem a memoria histórica e banalizam a dor e a miséria de toda uma geração."

Um escritor é contratado para escrever uma espécie de guião tendo como base a história real de um assassinato que ocorreu na cabine de projeção do cinema Delícias, nos anos 40.
Uma prostituta, Carol, foi assassinada pelo projeccionista, Sicart, enquanto na tela passa Gilda, com a sensual Rita Hayworth, um filme polémico devido a algumas cenas mais quentes, pelo menos para a época. 
Sicart, confessou o crime e cumpriu a pena que lhe foi imposta,  mas nunca conseguiu explicar porque é que o fez. Não se lembra do motivo.

Para tentar perceber melhor o que se passou, conhecer as pessoas envolvidas para além do que consta na documentação de investigação, da impressa da altura e do processo judicial, decide contratar o próprio Sicart. 
Sicart já saiu da prisão e vive agora como um homem livre, e aceita contar a sua história, ou, pelo menos aquilo de que se lembra.

E é pelas memórias de Sicart que visitamos e conhecemos a Barcelona dos anos 40, a Encarnita, a Puta cega e amiga de Carol Bruil, Ramon Mirt o franquista que as explora e, o próprio Sicart, um jovem de vinte e poucos anos que trabalha na cabine de projeção do Delícias e que gostava de ter companhia na cabine enquanto os filmes eram projetados na sala. 

Paralelamente o escritor vai percebendo que a história que Sicart conta tem interesse apenas para si, porque o produtor e o novo realizador, não estão interessados em histórias mais ou menos profundas sobre política, sobre relações e até sobre o próprio crime e as possíveis motivações de Sicart. Ficam antes fascinados com o facto de Encarnita ser uma puta cega. :)

Gostei muito. A escrita de Juan Marsé é natural e bem-disposta, o que torna a leitura muito fluida. Gosto das personagens e da ironia subjacente em todo o livro.

Recomendo sem quaisquer reservas. Juan Marsé é para continuar a conhecer.

Boas leituras!

Excerto (pág. 112):
" - Foi informadora da polícia, não se esqueça.
 - Ó homem, será que não percebe?! Foi tudo uma invenção daqueles malparidos da Brigada Social! - Acalmou-se, logo a seguir. - Bom, e se alguma vez fez uma coisa desse tipo, foi obrigada por aquele cabrão. Equivocada ou não, tudo o que a Carol fez, primeiro pelo marido, depois pelo filhinho doente e por ela mesma, foi sempre com a melhor das intenções...
 - Eu percebo. Mas diga-me uma coisa. Parece-lhe lógico que depois do que ocorreu mantivesse uma relação com o Mir, um tipo repugnante?
 - Não sei que dizer. Nunca me atrevi a perguntar-lho.
 - Acha que pode tê-lo feito como... uma forma de expiação?
Sicart abanou a cabeça, confuso.
 - O que é que quer dizer? Ouça, eram tempos muito difíceis e era preciso aguentar de qualquer maneira. Se fosse preciso vender a alma para sair da miséria, vendia-se. Se a Carol acabou por ter uma ligação com aquele filho da puta, fê-lo para sair da miséria. E pelo filho. Tenho a certeza. Foi sempre o que pensei.
Eu tinha muitas dúvidas, mas não lhe disse nada, porque percebi que a suspeita também o angustiava. Com toda a certeza, no coração daquela mulher só podia haver restos amargos de sexo e remorso. Quanto a falangista Mir, estaria a viver com ela uma panóplia de amores furtivos e luzeiros apagados..."

novembro 19, 2022

Índice Médio de Felicidade - David Machado

Título: Índice Médio de Felicidade
Ano da edição original: 2013
Autor: David Machado
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Daniel tinha um plano, uma espécie de diário do futuro, escrito num caderno. Às vezes voltava atrás para corrigir pequenas coisas mas, ainda assim, a vida parecia fácil - e a felicidade também.
De repente, porém, tudo se complicou: Portugal entrou em colapso e Daniel perdeu o emprego, deixando de poder pagar a prestação da casa; a mulher, também desempregada, foi-se embora com os filhos à procura de melhores oportunidades; os seus dois melhores amigos encontram-se ausentes: um, Xavier, está trancado em casa há doze anos, obcecado com estatísticas e profundamente deprimido com o facto de o site que criaram para as pessoas se entreajudarem se ter revelado um completo fracasso; o outro, Almodôvar, foi preso numa tentativa desesperada de remendar a vida. Quando pensa nos seus filhos e no filho de Almodôvar, Daniel procura perceber que tipo de esperança resta às gerações que se lhe seguem.
E não quer desistir. Apesar dos escombros em que se transformou a sua vida, a sua vontade de refazer tudo parece inabalável. Porque, sem futuro, o presente não faz sentido.

Índice Médio de Felicidade é um romance admirável e extremamente actual sobre um optimista que luta até ao fim pela sua vida e pela felicidade daqueles que ama. Dramático e realista, mas com momentos hilariantes, confirma o talento de David Machado como um dos melhores ficcionistas da sua geração."

Daniel é um a agente turístico e é muito bom naquilo que faz. É um homem feliz, ama a mulher e os filhos, ama o trabalho e tem um caderno onde escreveu uma espécie de Plano de vida. Nada de megalómano, apenas pequenas coisas que o ajudam a manter o foco naquilo que ele acha importante.
No Plano não existia nada sobre ficar desempregado aos 37 anos, no meio de uma das maiores crises que Portugal já atravessou e, onde arranjar um novo emprego na mesma área parece tarefa impossível.
Em dificuldades, a mulher e os filhos saem de Lisboa, e vão viver para perto dos sogros, onde não pagam casa e ela consegue trabalhar. Ele fica, não está pronto pata desistir do Plano que tinha traçado para todos. Acha que vai conseguir um emprego novamente e, quando isso acontecer voltam a estar todos juntos, e felizes como antes. É o que pensa e é o que lhes diz quando se despede deles. Daniel acha que se partir com eles está a desistir, que nunca mais voltarão a estar juntos na casa de todos e que ele nunca mais trabalhará na área que gosta e na qual sente que é mesmo bom. É só um contratempo, pensa, tudo vai acabar por correr bem.
Tem de se manter focado no Plano, mesmo que já tenha entregue a casa ao banco, viva atualmente no seu carro e não haja qualquer perspetiva de conseguir um emprego nos próximos tempos. Mesmo assim continua otimista. 

Ao mesmo tempo um dos seus melhores amigos, Almodôvar está preso por ter assaltado um estação de serviço e, desde que foi preso que se recusa a falar com toda a gente. Não recebe visitas, não atende as chamadas. Almodôvar deixou a mulher e o filho adolescente completamente desamparados e Daniel acaba por ser arrastado para a vida do miúdo, que começa a envolver-se com as pessoas erradas. Este é,  para Daniel mais um motivo para não poder sair de Lisboa e juntar-se à família. 

O outro amigo dos tempos de escola, Xavier, não sai de casa há anos e, com a prisão de Almodôvar que era quem acompanhava Xavier e apaziguava as suas tendências suicidas, Daniel sente-se, agora ainda mais responsável por Xavier. Xavier, o amigo que Daniel nunca compreendeu e que de certa forma nunca conheceu realmente.

Com todas estas responsabilidades e enredado numa teia de acontecimentos bizarros, alguns cómicos, Daniel acaba por ir ajudando todos à sua volta. Muitas vezes parece que o faz contrariado, apenas por sentir que é a sua obrigação. Como se o mundo fosse desabar se ele parasse dois segundos para pensar em si, na sua vida e nas suas necessidades. Sente que é indispensável na vida de todas aquelas pessoas que o rodeiam e que não pode abandoná-los e aos seus problemas.

De peripécia em peripécia, Daniel vai descobrindo o seu número que representa o seu grau de satisfação com a sua vida e que é refletido no índice médio de felicidade. Este número começa estranhamento alto, tendo em conta a confusão em que estava a sua vida, e vai descendo para níveis mais baixos, mas de certa forma mais realistas. O que nos parece é que, um nível mais baixo, no caso de Daniel, não é necessariamente pior, só o torna mais sintonizado com a sua realidade e melhor preparado para mudar a sua vida e subir na Índice Médio de Felicidade.

Daniel faz parte daquele grupo de pessoas que são otimistas inveterados. O mundo pode estar a desabar mas ele consegue sempre ver o copo meio cheio. Mas, será que é mesmo assim? Na verdade depois de conhecer Daniel, acho que ele é mais teimoso do que otimista. Acho até que o que ele tem é medo de não saber o que o espera, de não conseguir colocar no seu caderno quais os passos que se seguem. Refazer todos os seus planos de vida é assustador e é por isso que acho que ele resiste tanto em desistir do que estava escrito no seu caderno e começar do zero, junto da mulher e dos filhos. Uma nova carreira, uma nova cidade, um futuro cheio de possibilidades e de imprevistos. Acho que Daniel não é um otimista. Acho que ele é humano e está cheio de medo do desconhecido. Escuda-se nos outros para não ter de pensar na merda em que a sua vida se tornou. Habituado a ser o pilar, o homem que tinha sempre a solução, sente-se perdido por precisar de ajuda, por não estar a conseguir olhar para o Plano no caderno e delinear um caminho alternativo.

David Machado tem uma escrita que é muito empática. É clara, concisa, divertida e muito oral. Gosto muito dos livros que li, até agora dele. São livros que podem ser lidos por quase todos. São histórias para adultos e adolescentes sem que ninguém sinta que está deslocado e, há sempre uma lição subjacente, uma oportunidade para pensarmos no mundo que nos rodeia. No entanto, não é de todo um livro com lições de moral ou condescendente do tipo, já que aqui está, vamos lá ensinar-te alguma coisa. 

Índice Médio de Felicidade não é a exceção que confirma a regra. Tem alguma passagens um pouco inverosímeis, mas que não me fizeram perder o gosto pela leitura. É divertido, está bem escrito e gostei muito da história, das personagens, do Daniel claro, mas de todas as outras.

Recomendo David Machado quase de olhos fechados. Sou capaz de recomendar um livro mesmo sem o ter lido, acho que não é possível odiá-lo porque da escrita e das histórias dele emanam muito boas vibrações e a boa disposição é uma garantia. :)

Boas leituras!

Excerto (pág.23):
"Quero responder ao questionário.
Força, desafiou o Xavier. E acendeu outro cigarro.
Como é que é a pergunta?
Numa escala de 0 a 10, quão satisfeito se sente com a vida no seu todo? Depois acrescentou: Não sejas precipitado a responder, Daniel.
Eu tentei pensar em tudo: a Marta e os miúdos, o meu desemprego, o dinheiro que se acabava, o meu Plano, a minha imagem refletida no espelho nessa manhã. Por fim, disse: 8.
O Xavier olhou para mim surpreendido. Perguntou:
O que é isso?
A minha resposta. 8.0.
Eu disse para não te precipitares.
Não me precipitei.
Estiveste calado três minutos e depois disparaste um número que, supostamente, representa o teu grau de satisfação com a vida.
É o meu número.
E, em três minutos, passaste em revista toda a tua existência, contabilizaste tudo, ponderaste todas as variáveis?
Sim. Acho que sim. Quanto tempo é que tu demoraste?
Foda-se, Daniel, eu estou nisto há duas semanas e mesmo assim ainda sinto que não estou a pensar em tudo.
Duas semanas, Xavier? Isto não é um problema de matemática.
Na verdade, até é. Mas, antes disso, é a tua vida. Não podes resolvê-la em três minutos. Repito: a maior parte das pessoas não percebe nada de felicidade.
A tua resposta é 4,4 e eu é que não percebo nada de felicidade.
Estás a interpretar-me mal. Eu não disse que não sentias felicidade. Sentes, apenas não a percebes.
E tu percebes?
Eu percebo a minha felicidade. É uma equação como outra qualquer que tive de preencher com variáveis e constantes e ponderadores e depois ligar tudo com os sinais certos.
Variáveis? Quais variáveis?
Amigos. Amor. Tempo. Sonhos. Sede. Dores de barriga. Esperança. Inveja. O sabor da comida. Esse género de merdas.
Eu ri-me.
Não podes quantificar isso, disse-lhe.
Se podes quantificar a felicidade, podes muito bem quantificar as saudades que tens de teres oito anos ou o medo de beijares alguém. Claro que algumas dessa variáveis só poderão ser encontradas resolvendo outras equações primeiro. É um sistema, na verdade. É complicado. Mas a vida é complicada, Daniel.
A sério, Almodôvar, a lata daquele cabrão."

setembro 06, 2022

A Morte de Jesus - J. M. Coetzee

Título original: 
The Death of Jesus
Ano da edição original: 2019
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Editora: Publicações D. Quixote

"Em Estrella, David cresceu, tornando-se um rapaz de dez anos com um talento inato para o futebol e que adora jogar à bola com os amigos. O seu pai, Simón, e Bolívar, o cão, assistem habitualmente aos jogos, enquanto a mãe, Inés, trabalha numa boutique. David continua a fazer muitas perguntas, desafiando os pais e qualquer figura de autoridade que surja na sua vida. Nas aulas de dança da Academia de Música, David dança a seu bel-prazer. Recusando-se a fazer somas e não lê livros algum a não ser o Dom Quixote. 
Um dia, Julio Fabricante, o diretor de um orfanato, convida David e os amigos para formarem uma equipa de futebol a sério. David decide deixar Simón e Inés para ir viver com Julio no orfanato, mas passado pouco tempo sucumbe a uma misteriosa doença.
Depois de A Infância de Jesus e Jesus na Escola, J. M. Coetzee completa a sua inquietante trilogia com uma nova obra-prima, A Morte de Jesus, onde continua a explorar o significado de um mundo destituído de memória mas transbordante de perguntas."

E chegamos ao último livro desta trilogia. Em A Morte de Jesus, após todo o drama vivido em Jesus na Escola, vamos reencontrar David, agora com dez anos, basicamente igual a si próprio. Cheio de perguntas, obsessões e com muita dificuldade em perceber quem é, porque está ali e de onde veio.

Parece, no entanto mais bem integrado. Joga à bola com os amigos e todos parecem ter por ele uma admiração muito grande. David é um líder nato, chega a parecer-nos uma espécie de Messias infantil, que todos adoram e seguem sem grandes questões ou reservas. Simón parece ser o único que o vê apenas como uma criança de dez anos, inteligente, é verdade, mas apenas uma criança.
 
É nos jogos com os amigos que conhece Julio Fabricante, o dono de um orfanato, que o convida a fazer parte da equipa de futebol do orfanato. Já sabemos que David tem uma tendência para gravitar junto de personagens meios estranhas e de cuja bondade muitas vezes duvidamos e, neste caso, não é muito diferente. De um dia para outro, e porque parece nunca estar bem junto de Simón e Inés, decide ir viver para o orfanato para junto de Julio Fabricante. Simón e Inés não o conseguem contrariar e permitem que ele fique no orfanato.

Um dia David adoece e ninguém consegue perceber que doença o afeta. Fica internado enquanto os médicos tentam perceber o que se passa com ele e, à medida que o tempo passa, David vai definhando e tem muitas conversas com Simón sobre a morte, sobre vidas passadas e vidas futuras.
Simón e Inés ficam desesperados com a situação de David, frustrados por não conseguirem fazer nada por ele, incapazes de proteger David dos males do mundo e das pessoas que gravitam junto dele e que, embora digam que querem o bem dele, temos dificuldade em perceber quais as suas reais intenções. Põem em causa a parentalidade de Simón e Inés, que na verdade não são os pais de David, por forma a isolá-lo cada vez mais da "normalidade" que só Simón e Inés lhe podem dar. Os únicos que o amam sem esperar nada em troca.
 
A Morte de Jesus é um livro mais triste que os outros dois, com uma maior profundidade emocional nos diálogos. É o livro mais pequeno, dos três, tem poucas páginas e lê-se muito rápido.
 
Podemos ler A Infância de Jesus e não lermos Jesus na Escola e A Morte de Jesus, o livro vale por si e não necessita propriamente de continuação para fazer sentido. No entanto, acho que a leitura dos outros dois é importante para efetivamente conhecermos David e os seus pais adotivos.

Gostei bastante desta trilogia. São livros muito curiosos, peculiares e que nos deixam a pensar. Há uma permanente estranheza em todos eles que me agrada muito. 

Gostei muito e recomendo!

Boas leituras! :)


Excerto (pág.115):

"- O Juan Sebastián disse-me que o David tem estado doente, de modo que vim ver com os meus próprios olhos - diz Alma. - Trouxe fruta da quinta, Há tanto tempo que não te via, David! Temos saudades tuas. Tens de nos fazer uma visita assim que estiveres melhor.
 - Vou morrer, de modo que não posso ir visitar-vos.
 - Não me parece que devas morrer, meu rapaz. Será um desgosto para demasiadas pessoas. Será um desgosto para mim, e para Simón, tenho a certeza, e para a tua mãe, e para Juan Sebastián, e isso será apenas o princípio. Além disso, não te lembras da mensagem de que me falaste, da mensagem importante? Se morreres, não poderás transmiti-la, e nenhum de nós saberá alguma vez o que era a mensagem. Portanto acho que deves dedicar toda a tua energia a restabeleceres-te.
 - O Simón diz que eu sou o número cem, e o número cem tem de morrer.
Ele, Simón, intervém.
 - Eu estava a falar de estatísticas, David. Estava a falar de percentagens. As percentagens não são a vida real. Tu não vais morrer, mas mesmo que fosses morrer não seria por seres o número cem ou o número noventa e nove ou qualquer outro número.
David ignora-o.
 - O Simón diz que na próxima vida eu posso ser outra pessoa, que não tenho de ser este rapaz e não tenho de ter uma mensagem.
 - Não gostaste de ser este rapaz?
 - Não.
 - Se não gostaste de ser este rapaz, quem preferias ser, David, na próxima vida?
 - Preferia ser normal.
 - Que desperdício seria! - Ela poisa-lhe a mão na cabeça. Ele fecha os olhos; o seu rosto assume uma expressão de intensa concentração. - Quem me dera que na próxima vida tu e eu nos pudéssemos encontrar de novo e continuar estas nossas conversas! Mas, como tu dizes, na próxima vida seremos provavelmente outras pessoas. Que pena! Bem, está na altura de me despedir. Tenho de apanhar o autocarro. Adeus, jovem. Não vou certamente esquecer-te, nesta vida."

setembro 05, 2022

Jesus na Escola - J. M. Coetzee

Título original: The Schooldays of Jesus
Ano da edição original: 2016
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Editora: Publicações D. Quixote

"David é um rapazinho que está sempre a fazer perguntas. Simón e Inés ficam encarregados dele na nova cidade em que vão habitar, Estrella. O rapaz está a aprender a língua e começou a fazer amizades. Tem o seu grande cão Bolívar para olhar por ele. Mas vai fazer sete anos e tem se ir para a escola. Assim, tendo em conta as indicações das três irmãs proprietárias da quinta onde Simón e Inés trabalham, David é matriculado a Academia de Dança. É aí, com as suas novas sapatilhas de dança douradas, que aprende a chamar os números do céu. Mas é também aí que vai fazer descobertas perturbantes sobre aquilo de que os adultos são capazes. Nesta hipnotizante história alegórica, Coetzee lida habilmente com as grandes questões do crescimento e do que significa ser "pai", com a batalha constante entre o intelecto e a emoção, e com a maneira como optamos por viver as nossas vidas.
Jesus na Escola é a inquietante sequela de A Infância de Jesus, dando continuidade à jornada de David, Simón e Inés."

O primeiro volume - A Infância de Jesus (opinião aqui) - acabou com Simón e Inés, a saírem da cidade com David para que o menino não fosse obrigado a ir para a escola oficial e convencional que ensina os números, a fazer contas, ensina as letras e a ler. David diz que já sabe ler porque aprendeu com o livro de Dom Quixote de La Mancha, o livro que traz sempre consigo.

Na nova cidade, Estrella, é cada vez mais evidente que David necessita de algum tipo de educação para além da que Simón e Inés conseguem dar. A criança está a tornar-se cada vez mais desobediente e cada vez é mais difícil para os dois responder a todas as perguntas do miúdo.

Depois de muito ponderarem acabam por inscrevê-lo na Academia de Dança. Embora o currículo não seja convencional, não aprendem a ler nem a contar de forma convencional, a verdade é que David não é uma criança convencional. 
Simón não é grande fã da Academia, convive mal com coisas que não sejam concretas e palpáveis e tenta contrariar David, sempre que pode, para que a criança tenha uma visão mais normal do que o rodeia. Inés vive angustiada com a ideia de que David  não goste dela e não a reconheça como sua mãe. Não tem, dentro dela, a capacidade de fazer melhor e isso frustra-a.
Embora tenham ambos muita dificuldade em perceber o que se ensina na Academia e se aquilo é positivo ou não para o futuro de David, para Simón e Inés, o importante é que David se sinta feliz.

David, por seu lado, parece encontrar na Academia coisas que o mantêm interessado, embora nem sempre o que interessa David seja necessariamente positivo. Desenvolve uma paixão pela dona da Academia e professora de dança, Ana Magadlena e vive fascinado por Dimitri, o contínuo da Academia, uma personagem sinistra que parece ter hipnotizado David.

Neste segundo volume, David aparece-nos ainda mais estranho que no volume anterior. É claramente uma criança muito inteligente mas, ao mesmo tempo é altamente desajustada, a roçar a sociopatia. É mimado, obcecado, pouco empático e narcisista, tudo isto embrulhado na candura natural de uma criança de sete anos.

Jesus na Escola é um livro por vezes perturbador, onde Coetzee aprofunda, de uma forma alegórica, os meandros obscuros do crescimento e as dificuldades que se encontram na educação das crianças.

Gostei bastante, como seria de esperar de um livro de J. M. Coetzee e recomendo a leitura da trilogia. Não se fiquem apenas pelo primeiro volume, A Infância de Jesus, que podendo ser lido por si só, ganha se completarmos a história de David com os segundo e terceiro volumes - Jesus na Escola e A Morte de Jesus. Estes dois últimos só fazem sentido se tivermos lido o primeiro.

Boas leituras!

Excerto (pág. 43):

"- Deviam inventar uma máquina para colher azeitonas. Nessa altura tu e a Inés não teriam de trabalhar.
 - Isso é verdade. Mas se inventassem uma máquina para colher azeitonas, os apanhadores de azeitonas como nós não teriam trabalho e por conseguinte não teriam dinheiro. É uma velha discussão. Há pessoas que estão do lado das máquinas e outras que estão do lado dos apanhadores manuais.
 - Eu não gosto do trabalho. O trabalho é aborrecido.
 - Nesse caso, tens sorte em ter pais que não se importam de trabalhar. Porque sem nós morrerias à fome, e não havias de gostar disso.
 - Eu não vou morrer à fome. A Roberta há-de dar-me comida.
 - Sim, sem dúvida... Como tem bom coração, há-de dar-te comida, Mas queres mesmo viver assim, da caridade dos outros?
 - O que é a caridade?
 - A caridade é a bondade dos outros, a generosidade dos outros.
O rapaz olha para ele de uma maneira estranha.
 - Não se pode depender eternamente da bondade dos outros - prossegue ele. - Tem de se dar e receber, senão não há igualdade, nem justiça. Que género de pessoa queres tu ser: o género que dá ou o género que recebe? Qual é o melhor?
 - O género que recebe.
 - Palavra? Acreditas mesmo nisso? Não será melhor dar do que receber?
 - Os leões não dão. Os tigres não dão.
 - E tu queres ser um tigre?
 - Eu não quer ser um tigre. Estou só a dizer-te. Os tigres não são maus.
 - E também não são bons. Não são humanos, de maneira que estão fora da bondade e da maldade.
 - Bem, eu também não quero ser humano.
Eu também não quero ser humano.
Relata a conversa a Inés.
 - Incomoda-me quando ele fala assim - diz ele. - Teremos cometido um grande erro ao tirá-lo da escola, ao educá-lo fora da sociedade, ao deixá-lo correr por aí à solta com outras crianças?
 - Ele gosta de animais - volve Inés. - Não quer ser como nós, que ficamos para aqui a apoquentar-nos com o futuro. Quer ser livre.
 - Não me parece que seja isso que ele quer dizer quando diz que não quer ser humano - retruca ele. Mas Inés não está interessada."

setembro 04, 2022

[Ebook] A Minha Avó Pede Desculpa - Fredrik Backman

Título original: Min Mormor Hälsar Och Säger Förlat
Ano da edição original: 2013
Autor: Fredrik Backman
Tradução: Elsa T. S. Vieira
Editora: Porto Editora

"Elsa tem sete anos de idade, quase oito, e é diferente. Para já, tem como melhor - e única - amiga a avó de setenta e sete anos de idade, que é doida: não levemente taralhoca, mas doida varrida a sério, capaz de se pôr à varanda a tentar atingir pessoas que querem falar sobre Jesus com uma arma de paintball, ou assaltar um jardim zoológico porque a neta está triste. Todas as noites, Elsa refugia-se nas histórias da Avozinha, cujo cenário é o reino de Miamas, na Terra-de-Quase-Acordar, um reino mágico onde o normal é ser diferente.
Quando a Avozinha morre de repente e deixa uma série de cartas a pedir desculpa às pessoas que prejudicou, tem início a maior aventura de Elsa. As cartas levam-na a descobrir o que se esconde por detrás das vidas de cada um dos estranhíssimos moradores de um prédio muito especial, mas também à verdade sobre contos de fadas, reinos encantados e a forma como as escolhas do passado de uma mulher ímpar criam raízes no futuro dos que a conheceram.

A minha avó pede desculpa é uma belíssima história, contada com o mesmo sentido de humor e a mesma emoção que o romance de estreia de Fredrik Backman, o bestseller internacional Um homem chamado Ove."

Esta é a história de Elsa, uma menina de quase oito anos, que tem na avó, Avozinha, a sua única amiga. É uma criança diferente dos meninos da sua idade. Gosta das palavras e de ler, é muito inteligente e tem uma imaginação muito fértil. Não deixa, no entanto, de ser uma menina com sete anos, quase oito, que se sente desenquadrada do mundo.

A Avozinha, por seu lado, é... meio louca. É desbocada e destemida, e não gosta lá muito de cumprir regras. Anda com a neta para todo o lado, envolve-a nas suas aventuras e partilha com a criança um mundo inventado, o reino de Miamas, cheio de personagens estranhas, que parecem ter passado, não se sabe bem como, para o mundo real. Vamos percebendo ao longo da história que a avó só quer a neta seja feliz e que perceba que ser diferente não é ser pior é só sermos quem somos sem vergonha.

Demorei algum tempo a sentir-me envolvida, talvez porque as descrições do Reino de Miama e dos outros reinos e costumes me distraiam e, honestamente, achei a Avozinha um bocado irritante. A verdade é que o livro estará, provavelmente, direcionado para leitores mais jovens. :)
No entanto, dei por mim, ao fim algum tempo a sentir-me mais próxima de todas aquelas pessoas e a achar normal toda aquela esquisitice.
Há qualquer coisa na forma como Fredrik Backman escreve que torna os livros dele muito... aconchegantes. Será a palavra certa? Toca-nos no coração sem que haja lamechice. Não sei se tem a ver com o humor ou com o facto de as personagens serem todas muito fora da caixa. Não sei, só sei que é o que acontece. São personagens que ficam connosco para além da última página e ficam não porque são marcantes, ou porque fazem parte de uma história extraordinária que não conseguimos esquecer. Ficam porque são personagens que gostaríamos que existissem de facto e que fossem todos nossos vizinhos. Porque são pessoas boas, divertidas e que fazem falta ao mundo! Acho que é por isso, queríamos tê-los a todos nas nossas vidas.

Embora tenha gostado, não achei tão interessante como o Um Homem Chamado Ove (opinião aqui). Acho que não me identifiquei tanto com a temática e este pareceu-me mais para um público mais juvenil. Não destronou Ove (que continua a fazer-me sorrir só de pensar nele) mas deu para perceber que vou ler todos os que já tem escrito e todos os que vier a escrever.

Recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras!


Excerto
"Todas as crianças de sete anos merecem ter um super-herói. É mesmo assim. Quem não concordar precisa de um exame à cabeça.
Pelo menos, é o que acha a Avozinha de Elsa.
Elsa tem sete anos, a caminho dos oito. Sabe que não é lá muito boa nisto de ter sete anos de idade. Sabe que é diferente. O diretor da escola diz que ela tem de «entrar na linha» para poder alcançar «uma melhor integração com os seus pares». Alguns adultos descrevem-na como sendo «muito madura para a idade». Elsa considera que isso é apenas outra maneira de lhe chamar « terrivelmente chata para a idade»: regra geral, só lho dizem quando ela os corrige por pronunciarem mal déjá vu ou por não saberem a diferença entre «há» e «à». Isto costuma acontecer normalmente com os que têm a mania de que são espertos e daí o comentário «madura para a idade» acompanhado do sorriso forçado na direção dos pais dela. Como se Elsa tivesse uma deficiência mental ou os humilhasse por não ser completamente burra aos sete anos. É por isso que não tem amigos além da Avozinha - todas as outras crianças de sete anos da sua escola são tão idiotas como as crianças dessa idade costumam ser. Na escola, Elsa é a única criança diferente."

julho 02, 2022

O Meças - J. Rentes de Carvalho

Título: 
O Meças
Ano da edição original: 2016
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal Editores

"Romance inédito que conta a história de António Roque, homem atormentado, possesso do demónio de funestas memórias. As imagens do passado que regularmente se apoderam dele transformam-no num monstro capaz dos piores actos. Mas a obscura história da irmã e do homem abastado que se servia dela e que, apesar de morto, continua a instigar-lhe um ódio devastador não é exatamente como ele pensa que se lembra.
Depois de anos emigrado na Alemanha, o Meças regressa à sua aldeia de origem. Com ele vivem o filho (a quem detesta) e a nora (a quem deseja, mas inferniza a vida), atemorizando de resto a todos os que com ele se cruzam.
Uma história de violência, em que a progressiva definição dos contornos da memória revelará novas e dolorosas verdades."

O Meças não esquece o passado, vive com ele diariamente. Regressado da Alemanha depois de anos emigrado, à aldeia onde nasceu e cresceu e onde o passado lhe parece estar ainda mais presente.
O Meças é um homem violento, de fraco carácter, que sentimos ser muito revoltado, com tudo e com todos. Odeia o filho que, entretanto veio viver com ele. Aparentemente odeia a nora, mas tem com ela uma relação doentia, com comportamentos completamente inadmissíveis.

Tudo em Meças é desrespeito, possessão, chantagem, violência, agressividade e raiva. 
Quando conhecemos o passado do Meças, conseguimos contextualizar, de alguma forma, estas atitudes, no entanto, nada justifica aquilo em que Meças se transformou.

O Meças é um livro violento em muitos aspetos e tem muito do que é comum a outros livros de J. Rentes de Carvalho, a crítica social, a forma de viver em Portugal, num Portugal rural, pouco instruído e com alguma tendência para a violência.
Mais uma vez J. Rentes de Carvalho leva-nos para uma pequena localidade onde toda a gente se conhece e onde, toda a gente sabe da vida de toda a gente mas ninguém se mete na vida de ninguém. 

Estranhei um pouco a forma como está escrito, que me deixou confusa no início, mas gostei bastante embora não seja um livro muito fácil de ler.

Recomendo! 

Boas leituras! 

Excerto (pág. 66):

"A história alheia pode ser agradável leitura, à leitura da minha só me dou quando como agora as circunstâncias obrigam, pois me faz encarar o que prefiro esquecer e leva a juízos que, sei-o de antemão, apenas servem para tornar mais espessa a carapaça com que me guardo dos outros.
Não é caso de que vá alargar-me em confidências ou detalhes, pois nem os factos são sempre como se contam ou o que parecem, e dentro da família, nas relações que mantemos, o que sentimos e mostramos ou não, as palavras que nos saem da boca, tudo é sujeito a incompreensíveis mudanças. A realidade de hoje vemo-la amanhã como tonta fantasia, mostra-se de pechisbeque o que pareceu genuíno.
Talvez parte da tragédia da vida se deva a que nenhum artista iguala o tempo no mudar de ângulos e perspectivas, no fundir dos coloridos, nenhum como ele nos leva por tão enganosos bastidores ou cria máscaras de perfeição igual."

maio 29, 2022

Se o Passado Não Tivesse Asas - Pepetela

Título: 
Se o Passado Não Tivesse Asas
Ano da edição original: 2016
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote

“A terrível luta diária pela sobrevivência dos meninos de rua, em plena guerra, contrasta com a fartura desmesurada dos jovens da nova burguesia de Luanda.
Himba, treze anos acabados de fazer, durante a fuga do Planalto Central para Luanda, motivada pela guerra, perde-se do resto da família, vendo-se de repente sozinha no mundo. Sem outros meios que não sejam a sua inteligência, consegue chegar à capital, onde conhece Kassule, um menino de dez anos que perdeu uma perna devido a estilhaços de uma mina. Ambos órfãos vítimas da guerra, sem teto e dependendo do lixo dos restaurantes, unem-se para conseguirem subsistir, lutando pela sobrevivência dia a dia. Assim nasce uma bela amizade.
Sofia, que há muito aguarda uma oportunidade para mudar de vida, descobre que tem um sentido muito apurado do gosto. Numa aposta arriscada, aceita gerir um restaurante, onde dá conselhos sobre temperos. À medida que o restaurante vai ganhando clientes da classe alta de Luanda, também a ambição de Sofia vai sendo alimentada. E está disposta a agarrar todas as oportunidades que lhe garantam uma vida melhor, a ela e ao irmão Diego, um artista de rua que sonha expor em galerias.

Se o Passado não Tivesse Asas cruza duas histórias, duas grandes personagens femininas, numa narrativa original com um desfecho imprevisível, que retrata os últimos vinte anos da história de Angola.”

Se o Passado Não Tivesse Asas é um livro duro, sobre a infância num país em guerra, num país pobre e desigual e sobre os adultos que são o resultado de crescer nestas circunstâncias.

Quando a guerra se aproximou da povoação onde Himba vivia, a família decidiu que estava na altura de fugirem. Himba tinha treze anos quando se viu, na fuga e após um ataque ao autocarro onde seguia com a família, perdida e sozinha. Com o ataque, afastou-se dos pais e nunca mais os conseguiu encontrar. Com algum esforço conseguiu chegar à cidade, na esperança de que os pais lá estivessem à espera dela, tão desesperados por encontrá-la como ela estava por voltar a vê-los. 
No entanto, o que Himba encontra na cidade grande é barulho, confusão, indiferença e mais miséria. Vê-se obrigada a dormir na rua, junto de outras crianças, também elas vítimas da guerra, perdidos das suas famílias, vagueiam pelas ruas a pedir, a roubar a fazer o que é necessário para sobreviverem mais um dia.
É lá que conhece Kassule, um menino mais novo que ela e que está na rua há mais tempo que Himba. Kassule não tem uma perna, perdeu-a quando pisou uma mina, no entanto, é um miúdo cheio de energia, com boa disposição e muito honesto. Percebendo que ela está com dificuldades em adaptar-se à nova realidade, acolhe-a sob a sua alçada e os dois acabam por se tornar inseparáveis.
Pouco tempo depois, os dois decidem, deixar a cidade e partem para uma zona costeira, onde a competição por comida, na teoria, será menor. E é lá que vivem o melhor e o pior das suas curtas vidas. Conhecem o amor e o ódio, a paz e a violência, riem e choram. 

Paralelamente conhecemos a história de Sofia e Diego, dois irmãos a viver em Luanda, num país que já não está em guerra. 
Sofia trabalha num restaurante, onde é responsável principalmente pela cozinha e por toda a comida que é servida aos clientes. Tem um dom inigualável para os temperos e uma intuição que vai tornando o restaurante, pouco a pouco, numa referência, que começa a atrair a atenção da classe mais alta de Luanda. É inteligente e ambiciosa e, embora não seja de todo uma má pessoa, é uma sobrevivente que tem uma visão, por vezes um pouco distorcida do que é correto ou não fazer para se atingirem determinados objetivos.
Diego, por outro lado, é um artista. Pinta quadros e ganha algum dinheiro a vendê-los na rua aos turistas. Tem a noção de que não é muito bom naquilo que faz, mas vive uma vida despreocupada. Não é ambicioso e parece ter até alguma aversão ao dinheiro. Quer ganhar apenas o suficiente para viver o dia-a-dia. 
Os dois vivem juntos e, embora sejam muito diferentes um do outro, a vida vai correndo com alguma normalidade.

Se o Passado Não Tivesse Asas talvez fosse possível deixar para trás aquilo que nos tornou em adultos menos simpáticos, menos capazes e menos seguros. Se fosse possível apagar da nossa história aquilo que nos prende, que não nos permite avançar, voar e sermos mais felizes, aposto que muito pouca gente escolheria manter esse passado presente nas suas vidas. Por vezes o passado torna-nos melhores pessoas, outras vezes só nos torna menos capazes.

Gostei muito deste livro, porque está muito bem escrito e porque as personagens são difíceis de esquecer. Este foi leitura das férias de Verão do ano passado (estou muito atrasada nas minhas opiniões aqui no blogue, eu sei) e, tendo passado quase um ano, ainda guardo na memória, com carinho a Himba, o Kassule, a Sofia e o Diego. A minha memória não é grande coisa, por isso, para mim, o facto de ainda os ter tão presentes diz muito sobre o livro.

Pepetela, mais uma vez, a não desiludir. Acho até que este está no meu top três dos livros do Pepetela.

Recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras.


Excerto (pág.246):

“Não sentia dores, mesmo se o sangue não parava de sair do nariz por causa das chapadas. O corpo estava feito para ser torturado, por isso era indiferente doer ou não doer, qual era a diferença? Quando a dor é constante, deixa de ser sentida. E assim queria ficar, imune à dor, física e à outra, a da perda. Já tinha perdido tudo ou quase, pois lhe restava Kassule. Era pouco?
Era imenso.
Mas também queria mais. Mentira. Agora já não desejava mais nada, ficava satisfeita com o que tivesse, só tinha de andar, andar, evitar pensar, evitar fazer comparações com outras vidas, o passado se enterrava automaticamente, inútil fazê-lo ressuscitar, pois só trazia sofrimento, saudade, angústia. Devia agradecer cada minuto de vida e viver assim, cada minuto de sua vez.
O futuro não existe para gente como nós, só o minuto em que ainda cá estamos.”

[Kindle] Cinco Esquinas - Mario Vargas Llosa

Título original: Cinco Esquinas
Ano da edição original: 2016
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora: Quetzal Editores

"À conversa, sem os maridos, e desatentas da hora do recolher obrigatório, Chabela e Marisa terão de pernoitar juntas. O que aconteceu na cama nessa noite passará a ser um grande e saboroso segredo. Chabela é mulher de um advogado de renome; Marisa, de uma das figuras cimeiras da exploração mineira. O mundo perfeito em que vivem - não fora a constante ameaça dos guerrilheiros e sequestros - será fortemente abalado por um escândalo. Após tentativa de chantagem por parte de Rolando Garro, diretor do pasquim Destapes, a participação do engenheiro Enrique Cárdenas numa orgia será tornada pública em todos os seus pormenores mais sórdidos. Segue-se um assassínio brutal. Mas a relação de tudo isto com o poder político, nomeadamente com o homem que na verdade governa de forma corrupta e autoritária o país, o Doutor, braço direito do presidente, será trazida à luz: curiosamente pela coragem e fibra da redatora principal do referido tabloide que usa o nom de plume «La Retaquita»."

Cinco Esquinas daria uma boa novela. Tem tudo aquilo que é comum encontrar neste tipo de produto televisivo: dinheiro, sexo, crime e gente famosa. Temos gente muito rica, bonita e bem-sucedida; temos gente pobre, remediada e outros que fazem de tudo para subir na escala social. Pessoas sem escrúpulos que acabam por fazer algumas coisas bem, mesmo que pelos motivos errados. Como pano de fundo, mas com um papel muito ativo na vida de todas as nossas personagens, temos um governo autoritário e repressor que controla todo o enredo e todas estas personagens, mesmo que elas achem que não.

De forma muito resumida é isto. :)

Não conhecia a veia erótica de Vargas Llosa, porque nenhum dos livros que já tinha lido dele era deste género. Confesso, por isso que, durante uma boa parte do livro, me senti confusa. 
Com muita pena minha, a confusão não se deveu apenas às descrições das cenas de sexo, mas sim pela qualidade, duvidosa, das mesmas e porque a escrita, em geral, me pareceu muito menos bem conseguida. Tenho memória de ter gostado bastante dos outros livros que li dele (A Festa do Chibo; Lituma nos Andes; O Falador) e este pareceu-me francamente inferior. Talvez a história possa não ser tão interessante. Não sei, mas não fiquei particularmente impressionada e, se não tivesse já lido outras coisas de Vargas Llosa, muito provavelmente não regressaria a ele.

Cinco Esquinas acaba por ser um romance mais levezinho e, não há nada de errado com isso. Sou da opinião de que os escritores devem escrever sobre o que lhes apetecer, da forma que quiserem. Sinto, no entanto que, este Cinco Esquinas e outros que Vargas Llosa tenha escrito do mesmo género, quase merecem um pseudónimo, para que, facilmente eu conseguisse distinguir que tipo de Vargas Llosa tenho entre as mãos. :)

Não sendo um livro mau, não faz o meu género e quando decido ler Vargas Llosa procuro outro tipo de histórias e de personagens e, por isso, com este tenho alguma dificuldade em dizer se recomendo ou não. Ficam por vossa conta e risco. ;)

Excerto:
"Quando os seus olhos se acostumaram à escuridão do compartimento, entre as figuras que a povoavam avistou numa das paredes pintalgadas uma inscrição a giz, em letras grandes, onde pôde ler:

«E quando esperava o bem,
Sobreveio o mal;
Quando esperava a luz, veio
A escuridão.»

Era uma inscrição bíblica? Estava encolhido de terror, mas, isso sim, muito consciente de que aquele recinto estava impregnado por uma pestilência que o enjoava - fedia a muitas coisas, mas, sobretudo, a excremento, suor e urina - e que fervilhava de homens, alguns seminus, uns sentados no tosco poial de cimentos e outros acocorados ou deitados no chão.
Ninguém falava, mas Quique intuía que, das sombras que o rodeavam, dezenas de olhos estavam cravados nele, o último recém-chegado àquela cave, calabouço, quarto de torturas ou fosse lá o que fosse."