junho 29, 2010

Nana - Émile Zola

"Nana é uma das obras mais conhecidas do célebre romancista francês Émile Zola. A personagem central, que dá nome ao romance, chama-se precisamente Nana. Filha de pai alcoólico e de uma lavadeira, Nana, medíocre artista de teatro, mas com um corpo de Vénus e uma sexualidade desequilibrada e vulcânica, torna-se no tipo perfeito da prostituta de luxo, da cortesã da sociedade francesa dos tempos do Segundo Império. Personalidade contraditória, atinge a riqueza à custa do comércio carnal, sobretudo na alta-roda da aristocracia e da finança, e reina, no seu palacete da Avenida de Villiers, entre móveis de laca branca e no meio de um «perfume perturbante», como a força voluptuosa e brutal, sem inteligência e sem amor (embora não totalmente deserta de sentimentos humanos), que irresistivelmente atraí, corrompe e arruína, até morrer, como um destroço, numa decomposição antecipada. Zola supera, no entanto, o âmbito da história individual, para nos apresentar, num quadro profundamente realista, a corrupção dourada das classes francesas mais elevadas da época de Napoleão III."

Desde que li o Germinal (já opinado aqui), também escrito por Émile Zola, que fiquei muito curiosa de ler mais livros deste autor francês. Nana, embora diferente do que estava à espera, não deixou de ser uma leitura interessante. :)

Nana é um mulher surpreendentemente bela, fisicamente irresistível cujo menear de ancas incendeia a plateia do Variedades, sala de teatro onde representa de forma sofrível Vénus, a Deusa do Amor e da Beleza. Não existe homem que lhe consiga resistir e são poucas as mulheres que não a invejam. Desta forma, Nana torna-se na prostituta de luxo mais requisitada de Paris. Vive à custa dos seus amantes, enganando-os com o seu rosto de anjo emoldurado por uns cabelos doirados como o sol, quando lhes promete fidelidade e exclusividade, assim o façam por merecer, pagando de forma exuberante pelos seus serviços.
Nana é uma mulher infantil, temperamental, com súbitos ataques de fúria e frustração seguidos de enternecimentos sinceros, mas breves, pelos problemas dos que a rodeiam. Sente um desprezo enorme por todos os homens que rastejam aos seus pés e, por isso humilha-os de todas as formas que consegue. Nem assim eles a abandonam, completamente dependentes dos seus carinhos e da atenção que esta lhes dispensa. Enfeitiçados pela sua beleza, esbanjam as suas fortunas com ela, comprando-lhe palacetes ricamente decorados, roupas luxuosas, pagando todas as suas despesas e satisfazendo todos os seus caprichos.
Os homens neste livro são dos seres mais desprezíveis que já vi descritos na literatura. Não escapa nem um, são animais com cio, sem qualquer amor próprio, irresponsáveis e burros. Nana, embora não deva nada à inteligência, faz deles o que quer, gritando e exigindo, outras vezes ronronando e iludindo. É uma personagem irritante, por ser emocionalmente tão inconstante e por me fazer lembrar tanto uma criança insuportável e birrenta que consegue sempre o que quer. Mas embora seja irritante, é uma personagem fortíssima de quem cheguei a sentir alguma pena, porque me parecia que ela estava presa numa rede da qual não conseguia escapar, embora o tenha tentado mais que uma vez.

Embora tenha sido diferente do que estava à espera, estava à espera de algo mais parecido com o Germinal, talvez algo mais revolucionário, gostei do livro. Gostei principalmente mais para o fim, onde finalmente reconheci a escrita de Zola, com as suas descrições espantosamente realistas, nomeadamente na descrição da corrida de cavalos, o Grande Prémio de Paris e porque, mais para o fim, há um ritmo alucinante onde todos os que rodeiam Nana começam a ser destruídos, consequência de todos os seus actos irreflectidos na ânsia de cair nas boas graças da cortesã. E Nana exulta com esta destruição à sua volta, como que sentido-se vingada pois, uma rapariga, filha de pai alcoólico e mãe lavadeira, pôs a alta sociedade a rastejar aos seus pés, destruindo-os, ou melhor, deixando que se destruíssem a si próprios, deixando que chafurdassem na sua imoralidade e falta de princípios.

Recomendo, mais que não seja por ser do Zola. :p

junho 21, 2010

Relíquia - Douglas Preston & Lincoln Child

"Quando uma equipa de arqueólogos é selvaticamente massacrada na bacia do Amazonas, tudo o que resta da expedição são algumas caixas contendo amostras de plantas e a estátua de um deus misterioso. Viajando de barco e de porto para porto, as caixas acabam por chegar ao Museu de História Natural de Nova Iorque, apenas para serem fechadas numa cave e esquecidas. Mas o coração negro da Amazónia nunca esquece. Algum tempo depois, quando o museu decide expôr a arrepiante estátua, alguém ou algo começa a vaguear pelos corredores e galerias poeirentos do museu. E é então que se dão as mortes brutais. Mas quem será o responsável? Um louco... ou algo muito mais inexplicável? Relíquia é um romance arrepiante onde se entrelaça o dia a dia de um enorme museu com factos científicos, personagens poderosas e um enredo que arrebata o leitor da primeira página até à reviravolta final."

Dizer que andava para ler este livro há anos não será exagero. Desde que me vi nas mãos com um daqueles livrinhos promocionais, que distribuem na rua, com as primeiras páginas, que fiquei com este livro debaixo de olho. Como não sou muito de policiais, thrillers ou que quer que se chame a livros deste género, fui adiando a leitura. Finalmente chegou a hora dele! :) E, embora não seja um livro arrebatador, como diz a sinopse, é um livro que cumpre na perfeição aquilo a que se propõe: intrigar, assustar q.b. e entreter. :)
Vou tentar não revelar demais sobre a história, porque neste caso poderia ser fatal, e a Saída de Emergência poderia perder uma possível venda. Não quero isso, porque gosto da editora e quero que continue por muitos e muitos anos. ;)

O livro começa na bacia do Amazonas, onde Whittlesey, um antropólogo, acabou de encontrar uma estatueta assustadora que, ele acredita ser uma representação de Mbwun, a entidade adorada pelos Kothoga, uma tribo sanguinária e feroz, considerada um mito até então. Whittlesey veio inserido numa expedição com outros cientistas do Museu de História Natural mas, devido a desentendimentos com o outro líder da expedição, Maxwell, acabou por ficar para trás com Crocker, Carlos e dois guias, enquanto os restantes membros da expedição partiram, terminando desta forma a viagem. Nas primeiras páginas do livro, Whittlesey encontra-se sozinho com Carlos, os guias há muito desertaram, a encaixotar as suas descobertas e a pedir a Carlos que as faça chegar ao destino, pois ele não pode partir sem encontrar Crocker, desaparecido desde a noite anterior. Carlos parte e Whittlesey fica sozinho na floresta...
Anos depois, no Museu de História Natural, está a ser preparada a Exposição sobre Superstições e a peça de destaque é a estatueta do Mbwun enviada por Whittlesey. Uns dias antes da inauguração da exposição, duas crianças são encontradas brutalmente assassinadas dentro do museu. O que liga estes dois acontecimentos? Será a maldição da estatueta verdadeira? Uma coisa é certa, uma criatura, humana ou não, anda à solta no museu e é extremamente perigosa.

Neste livro, escrito por um dupla de escritores, Douglas Preston e Lincoln Child, temos um pouco de tudo. Temos perseguições por túneis escuros e mal cheirosos, mortes violentas, umas inesperadas outras mais previsíveis, temos heróis e cobardes ambos previsíveis, temos planos diabólicos para acabar com a ameaça e temos um fim, previsível e imprevisível. ;) Para além disso, temos como bónus a oportunidade de aprendermos alguma coisa sobre antropologia e genética e sobre a vida e rotinas de um museu gigante como parece ser o Museu de História Natural, em Nova Iorque.
No entanto houve algumas coisas das quais não gostei, não gostei da descrição confusa das áreas que constituem o museu, da maneira como é descrito parece que o museu é um labirinto sem fim, e isso torna difícil localizar a acção e ter uma percepção correcta do espaço físico. Mesmo que tenha sido feito de forma propositada, talvez o museu seja mesmo assim labiríntico, achei confuso demais, quebrando o ritmo da leitura. Também achei que, por vezes, se perdiam demais com explicações científicas e, não me senti muito envolvida pela história e pelo desenrolar dos acontecimentos e isto, acho que se deveu ao facto de a maioria das personagens serem um pouco chatas e previsíveis.

Este não é definitivamente o tipo de literatura que mais me preenche enquanto leitora, é raro o livro deste género que me provoque arrepios e verdadeira apreensão, excepção feita aos da Mo Hayder, talvez por falarem de coisas mais reais, como a maldade humana e os horrores de que somos capazes. Livros que metem monstros, criaturas fantasiosas, vampiros, etc a mim não dizem lá muito, excepção para alguns do Stephen King, porque ele consegue descrever as cenas de uma forma especial. :)
Posto isto, por não ser o meu género de livro mas sendo um género ao qual gosto de ir dando espreitadelas, a ver se me surpreendo, acho que é um livro que vale a pena ler, embora não tenha ficado particularmente curiosa para ler outros desta dupla de sucesso.

Boas leituras! :)

junho 18, 2010

A Maior Flor do Mundo - José Saramago

Foi feita uma curta-metragem baseada no livro infantil, A Maior Flor do Mundo, escrito por José Saramago.
Esta curta, produzida em 2007, ganhou o prémio de melhor animação do Anchorage Internacional Film Festival e foi nomeado para os Goya de 2008 na categoria de melhor curta-metragem.

Realizada por Juan Pablo Etcheberry com voz de José Saramago

José Saramago (1922 - 2010)

Morreu José Saramago, para mim um dos maiores escritores portugueses.

Quando ele ficou doente, o ano passado, apercebi-me, com algum pânico, que ele iria morrer um dia pois tinha mais idade do que eu pensava. Quando ele melhorou, afastei com alívio estes pensamentos funestos da minha cabeça e enfiei-a na terra, como a avestruz, murmurando para mim mesma que o Saramago não vai morrer nunca. Foi por isso que duvidei, por alguns segundos, que a notícia da sua morte fosse verdadeira.
Rendendo-me às evidências, estou a braços com a sensação de que perdi alguém meu e por isso encontro-me a lidar com sentimentos que nunca senti por nenhuma das figuras públicas que nos foram deixando ao longo destes anos. Estou triste e angustiada...


Nesta foto, tirada no Avante em 2007, estava ele a assinar o meu Memorial do Convento. Fiquei contente por ter percebido o meu nome à primeira e por o ter escrito bem, sem ter tido dúvidas. :)
Estava um calor desumano dentro da tenda dedicada aos livros, e custou-me imenso esperar pela minha vez. Acho que só o consegui porque olhava para o José Saramago, magro e debilitado, visivelmente exausto e incomodado pelo calor excessivo, mas sempre com um sorriso para todos os que aguardavam pelo autógrafo. Por mais incomodado que estivesse, não despachou os autógrafos de forma mecânica e, dava-se mesmo ao trabalho de acrescentar um desenho ao autografar o livro infantil, A Maior Flor do Mundo, da sua autoria, que algumas mães compravam para os filhos.

As letras e a cultura mundial, ficaram definitivamente mais pobres.

Obrigada Saramago pela companhia, pelos sorrisos e pela aprendizagem que todos os teus livros me fizeram, provocaram e proporcionaram.

junho 17, 2010

Filme - O Segredo dos Seus Olhos

Título Original: El Secreto de Sus Ojos
Realização: Juan José Campanella
Duração: 2h07mins
Origem: Argentina

Sinopse: O detective Benjamin Esposito depois de retirado da polícia decide retomar a investigação de um crime de violação e homicídio com vinte cinco anos e ainda por resolver, acabando por revisitar as suas próprias memorias de amizade, paixões e mortes. Este novo olhar sobre o passado acaba por acrescentar novos dados e alterar definitivamente o seu futuro.




Apenas e só para dizer que este filme é dos filmes mais bonitos que eu já vi! :)

Vejam o trailer aqui: http://www.trailers.com.pt/el-secreto-de-sus-ojos/

junho 16, 2010

O Rabi - Noah Gordon

"Corajoso e intrépido, Michael Kind já era Rabi, quando se apaixonou por Leslie, filha de um pastor protestante, e se casou com ela. Esta é a história de ambos, um drama impetuoso de amor e conflito de identidades, de compaixão e crueldade, a história de um homem e de uma mulher que têm de aprender a lidar com as complicações de uma vida pouco comum num mundo onde Judeus e Cristãos não se apaixonam - e muito menos se casam..."


As minhas expectativas para este livro eram praticamente nulas. Comprei-o porque Noah Gordon é o autor de O Físico, livro cuja leitura ando a adiar porque as minhas expectativas estão muito elevadas. Quando me deparei com o primeiro livro que Noah Gordon escreveu, achei que seria uma boa ideia ler qualquer coisa dele antes de embarcar na leitura do O Físico. A minha intenção era baixar as expectativas e... resultou! :) O livro não é mau, mas também não é lá grande coisa. :p

Primeiro que tudo, convém dizer que a sinopse induz em erro, pois o livro não é de todo sobre as dificuldades que surgem num casamento inter-religioso. Na verdade, Leslie, filha de um pastor protestante, não era propriamente muito chegada à religião e encontrava-se até um pouco afastada desta e do pai. Foi sem grandes pudores, mas com a devida convicção, que se converteu ao judaísmo para poder casar com Michael Kind, um jovem rabi. A partir do momento em que se casam o assunto raramente volta a ser abordado, a não ser de forma breve, de cada vez que mudavam de congregação e, consequentemente de cidade. Mesmo antes de se casarem, as dúvidas que assolam o Rabi Kind ocupam, não mais que dois ou três parágrafos. Por isso, quem vai à espera de encontrar um romance arrebatador, com famílias desavindas do tipo Romeu e Julieta, desengane-se porque não é por aí. :)
Retirando os factores famílias desavindas e possíveis dúvidas do par romântico, que não existem, da equação, o livro acaba por ser, basicamente sobre o judaísmo, os seus rituais e os homens que representam a religião, os rabis (espero não estar a cometer uma gafe, pois no plural a palavra soa estranha). Sendo o tema que é, naturalmente também se fala de relações humanas, as familiares e as que se desenvolvem no seio da comunidade.

Embora o livro não seja muito interessante, pelo tema e pela forma como está escrito - não sei que idade tinha Noah Gordon quando o escreveu, mas senti alguma imaturidade, não só na escrita como na descrição de sentimentos e emoções - isso não significa que não tenha gostado de algumas coisas. Fiquei a saber umas quantas coisas sobre o judaísmo que não sabia e sobre a forma como os judeus vivem a religião. Embora, hoje em dia, me considere ateia, fui educada na religião católica e, por isso, achei curiosa as diferenças que existem entre os padres e os rabis, na forma como se relacionam com a comunidade mas, também, na forma como vivem a vocação. Um ponto comum entre as duas religiões, que na verdade não serão assim tão diferentes, é mesmo o desinteresse que as pessoas demonstram por tudo aquilo que lhe rouba tempo de lazer e por isso, não comparecem aos serviços religiosos e não cumprem todos os rituais, compensando depois com uma contribuição maior.
A pouca profundidade com que se a maioria vive a religião hoje em dia é algo que sempre me fez alguma confusão. As pessoas sabem tão pouco sobre o que estão a professar e fazem as coisas apenas e só porque foram ensinados dessa forma, não questionando o porquê ou a origem de alguns rituais. Não conhecem e não querem conhecer a história da religião que seguem. Falo apenas da minha experiência, que cheguei a fazer a 1ª comunhão e a memória que tenho da catequese dos sábados à tarde é de que eram uma seca e que me roubava horas preciosas ao fim-de-semana. Não me lembro de ter aprendido o que quer que seja sobre a religião católica e o pouco que provavelmente aprendi ficou perdido num qualquer canto da memória. Na missa nenhuma das palavras ditas me tocava de forma especial, para mim eram apenas palavras e nunca percebi a emoção que muitos experimentam em sítios e cerimónias como estas. Culpa minha ou do catequista e padres que fui encontrando? Talvez de todos, porque a verdade é nunca senti qualquer ligação com o divino. Na verdade acho que sou demasiado terra-a-terra, porque não me lembro sequer de alguma vez ter acreditado no Pai Natal... :) No entanto, compreendo o que as pessoas procuram na religião e convivo bem com isso e, confesso que não vou ficar nada chateada se quando morrer perceber que estive errada toda a minha vida, principalmente, se isso me der a oportunidade de voltar a estar com aqueles que nos deixam cedo demais, sem que tenhamos tido a oportunidade de lhes dizer o quanto os amamos... O meu ateísmo vive bem com esta secreta vontade que tenho de estar errada! ;)

Concluindo e voltando ao livro, posso dizer que o que aprendi, e o facto de me ter baixado as expectativas para O Físico, foram os pontos positivos deste livro. Como pontos negativos aponto o facto de falar demasiado de religião, com demasiados termos em hebraico que exigem um maior conhecimento sobre o assunto para que se compreenda melhor do que se está a falar e, por fim, a história em si, que achei pouco envolvente, sem-sal e, por isso, pouco interessante.

Boas leituras!

junho 14, 2010

O Navegado Solitário - João Aguiar

"Esta é a história de um rapaz chamado Solitão Fernandes. Solitão Fernandes nasceu em Giestal dos Frades, filho de gente desonrada e trabalhadora. Além de ter um nome que mais ninguém tem, possui ainda uma madrinha que é médium e um avô já defunto que, do outro mundo, lhe envia mensagens revestidas de sólida imoralidade e escrupulosa sem-vergonha. Guiado por tão sábios ensinamentos, Solitão navega com êxito no oceano revolto que é a sociedade deste nosso fim de século e aprende rapidamente a vencer na vida. Só que, de repente, algo de imprevisto lhe acontece... O relato das navegações de Solitão Fernandes no mar português contemporâneo desenrola-se em paisagens pintadas com ácido e adornadas com sorrisos torcidos, mas também com algum humor inocente. Nas margens desse mar, esconde-se até um pouco de ternura envergonhada."

Já há algum tempo que andava com vontade de escrever aqui sobre este livro do escritor João Aguiar. A sua recente morte veio avivar esta minha vontade e lá peguei eu novamente no O Navegador Solitário para uma leitura feita, julgava eu na diagonal, apenas para relembrar pormenores da história. A verdade é que acabei por ler o livro de ponta a ponta porque na realidade é impossível não nos sentirmos fascinados pela vida "lixada" de Solitão Francisco Fernandes, nome escolhido pela sua madrinha médium e que ele odeia, o nome , e a madrinha também. ;)

O livro está escrito sobre a forma de um diário, mas não é um diário convencional, com datas e afins. Nele acompanhamos a vida de Solitão desde os 15 anos, altura em que o avô Aquelino, já falecido, o intima a escrever todos os dias, mesmo quando não tem nada para dizer para que, desta forma, ele possa, a partir da dimensão em que se encontra, dar orientações para a vida do neto, inspirando-o e ensinando-o através da escrita. Até aqui tudo bem, não fosse dar-se o caso de este avô Aquelino ter sido, em vida, uma pessoa de moral duvidosa e a passagem para outra dimensão não pareceu alterar a sua visão sobre o mundo e a forma como deve ser vivido pelos "seres superiores", grupo no qual se inclui e ao qual crê que o neto Solitão também poderá vir a pertencer.
E assim começa o diário da vida de Solitão, mais tarde Francisco e, por fim, novamente Solitão. Não parece um começo de história muito promissor, pois não? Mas a verdade é que é, não só pela história caricata mas principalmente pela forma como está escrita, pelo sentido de humor e pela crítica social forte e certeira. No entanto, o que mais gosto neste livro e mesmo do Solitão e da sua inocência.
Começamos por nos deparar com um adolescente de 15 anos, que no seu diário assassina sem dó nem piedade a língua portuguesa, escreve com esforço e apenas porque sente medo das possíveis represálias do defunto avô. Vai despejando para o diário, as suas preocupações de adolescente e os embaraços que as hormonas lhe provocam. :)
Com o diário vamos crescendo com ele, acompanhamos a sua vida, as suas escolhas, as boas e as más. Rimos das situações caricatas que lhe acontecem, sentimos angústia quando o vemos desviar-se do seu caminho e emocionamo-nos quando finalmente "regressa a casa".
No fim temos um Solitão, agora com vinte e tal anos, mais maduro, quase Doutor, tranquilo com as suas escolhas e em paz com o passado, sem a inocência dos 15 anos mas mantendo a ternura e a capacidade de acreditar nos outros.
O Solitão é uma personagem fascinante... :)

É um livro muito bom, que recomendo porque João Aguiar tem aqui um trabalho fabuloso que, não sendo uma obra-prima, é uma leitura que nos provoca sorrisos e que, principalmente no final, nos deixa com um brilhozinho nos olhos. Consegue equilibrar muito bem a crítica que faz à sociedade, à política e às promiscuidades que a rodeiam, com o crescimento do Solitão como ser humano. Como qualquer ser humano, Solitão está exposto a tentações a que por vezes cede e das quais tira proveitos mas que, no caminho, luta para não perder o rumo e continuar íntegro, à sua maneira. No final percebe que o mais importante já ele tinha, mas percebe também que o caminho que percorreu até chegar a esse ponto foi essencial para que soubesse apreciar o que já tinha.

Não deixem de ler este livro, se tiverem oportunidade de o fazer, garanto-vos que será tempo bem passado, ou não fosse o João Aguiar um dos melhores escritores portugueses. :)

junho 09, 2010

Revolutionary Road - Richard Yates

"Corre o Verão de 1955 e Frank e April Wheeler vivem com um cinismo distanciado o que para muitos dos seus contemporâneos representa o sonho americano: uma ampla vivenda nos subúrbios, duas crianças loiras e risonhas, uns vizinhos simpáticos e, para Frank um emprego em Manhattan bem pago e sem responsabilidades. No entanto, o abismo entre o que pensam das suas vidas e a forma como em realidade as vivem acabará por tornar o seu quotidiano insuportável. Quando April concebe um plano que lhes permitirá finalmente sair da situação em que se encontram, as tensões entre o comodismo e a necessidade de mudança provocarão uma crise mais grave do que poderiam ter imaginado."

Primeira coisa que me ocorre dizer é: como este livro teria sido maravilhoso se eu não tivesse visto o filme! É que, ainda por cima, o filme está bastante fiel ao livro... :/ Porque é que a minha má memória me abandonou neste caso?! Talvez porque o filme é ele também muito bom e, tendo em conta a história que relata, tem cenas muito fortes que não se apagam com facilidade da memória.
O livro é muito, muito bom, um dos melhores que ali até hoje. Não tenho qualquer dúvida em afirmá-lo. A escrita de Richard Yates é de uma clareza e fluidez impressionantes e estou muito curiosa para ler outros livros dele. Tenho até algum receio que este Revolutionary Road tenha sido um rasgo de génio único e irrepetível. Espero que não seja esse o caso. :)

Não posso contar muito da história porque seria mau da minha parte "spoilar" e, desta forma, roubar-vos o prazer de viver a história sem saber o que vem a seguir.
Sendo assim o que posso dizer? Bem, posso dizer que é uma história sobre um casal jovem, Frank e April Wheeler, que apesar de ambicionarem algo grande para as suas vidas acabam a viver nos subúrbios, numa casinha acolhedora e simpática e com dois filhos perfeitos.

É um livro que fala do casamento, de relações e das pressões que a sociedade exerce sobre as nossas vidas, condicionando as nossas escolhas. Fala sobre a dificuldade em crescer e em assumir responsabilidades. Fala sobre a cobardia e o medo que temos de tomar as decisões que nos tirarão de uma situação que já não nos faz felizes. Fala de sonhos desfeitos, ou será que fala de sonhos que são propositadamente inalcançáveis porque sabemos não ter a energia necessária para grandes mudanças e decisões? Fala de infâncias desestruturadas e cheias de desilusões, que nos marcam emocionalmente de formas inimagináveis e que condicionarão os adultos que seremos.
É um livro duro, tenso e angustiante, porque o autor entra bem dentro da cabeça das personagens e, por isso, nós sentimos todo o peso que eles carregam e sabemos de todos os pensamentos que lhes ocorrem, incluindo aqueles que não se verbalizam porque a educação e a sociedade não o permitem e, porque se os verbalizássemos sabe-se lá que estragos seriam capazes de provocar.

O que mais me impressionou na narrativa foi o desapego que ambos tinham aos filhos, a forma teatral como Frank fazia tudo, ensaiando posturas, discursos e quem sabe até sentimentos, e a futilidade de April. Mais ainda, porque ambos se achavam superiores a todos, demasiado inteligentes e interessantes para os subúrbios desprezando todos aqueles que sucumbiam ao "sonho americano". Tão desfasados da realidade que não souberam apreciar o que tinham. Demasiado snobes para admitir que poderiam apreciar aquele tipo de vida ou, para admitir que lhes faltava a coragem para mudar e perseguirem aquilo que desejavam.
Enfim, dizer mais do que isto é desnecessário, até porque este é daqueles livros para os quais devemos ir como uma página em branco, sem grandes expectativas e sem saber muito sobre a história.

Resumindo e baralhando, leiam porque não será tempo deitado fora. Adorei a escrita do Richard Yates e a forma como a história se foi desenrolando e, este foi o seu primeiro romance! Inacreditável... bem, vou tentar conter o meu entusiasmo, respirar fundo e acabar dizendo: leiam e leiam e leiam! :)
Se não estiverem para aí virados (não sei como, mas poderá acontecer...) vejam o filme que também é muito bom, com o Leornardo DiCaprio no papel de Frank e a Kate Winslet no papel de April Wheeler.

Boas leituras! ;)

junho 06, 2010

A Leste do Paraíso (Vol.II) - John Steinbeck

" A Leste do Paraíso, vasto fresco levantado a partir do relato da vida de várias gerações de duas famílias norte-americanas, os Trask e os Hamilton, num período crucial da história dos Estados Unidos (1860. Guerra da Secessão - 1920, anos imediatos à Primeira Grande Guerra), proporcionou ao malogrado James Dean talvez o mais importante papel da sua carreira."

E acabei o segundo volume (primeiro volume comentado aqui) desta obra magnífica do John Steinbeck. Para mim, é neste segundo volume que se encontra o mais importante do livro e o mais interessante da história.

Neste segundo volume, os gémeos, Caleb e Aaron, filhos de Adam e Cathy, cresceram, a família Trask abandonou o rancho e mudou-se para Salinas.
Aaron é loiro e de olhos claros e é fisicamente muito parecido com a mãe mas, em termos de personalidade será mais parecido com o pai, é um sonhador e idealiza demasiado as pessoas que ama, não conseguindo apreender a verdadeira essência de quem o rodeia. Todos gostam de Aaron, todos se sentem atraídos por ele, como se ele necessitasse de protecção, por causa da aparência frágil que exibe. No entanto, é um miúdo que quando se irrita ou quando se sente ameaçado se torna extremamente violento, ficando mais parecido com o seu tio Charles do que com o pai, que é completamente avesso a qualquer tipo de violência.
Criou uma história para si: casará com Abra, uma criatura pura e perfeita, e faz questão de acreditar que a mãe morreu sendo ela também pura e perfeita. Vive numa bolha, fora da realidade e, no dia em que alguém o força a sair do mundo que criou, lida mal com a descoberta de que no sangue dele correm o pecado e a perversão.

Caleb é muito diferente do irmão, moreno com uma atitude de constante desafio que esconde a necessidade enorme que tem de ser amado e acarinhado. Fisicamente é mais parecido com o tio Charles, mas tem uma personalidade muito vincada, é muito inteligente e conhece a fundo todos os que o rodeiam. No entanto, sofre com a maldade que sente dentro dele, que luta para reprimir mas que por vezes não consegue. Quando descobre quem é a mãe, julga estar condenado a ser como ela, pois só a hereditariedade poderá explicar o ódio e o ciúme que sempre o acompanharam. Ama o irmão, mas tem ciúmes dele e ama o pai, procurando sempre a sua aprovação. É um miúdo extremamente carente, que para se proteger constrói um muro à sua volta, passando por arrogante e perigoso.
É o responsável pelos acontecimentos mais dramáticos da história mas o que sentimos é sempre uma vontade enorme de o confortar e aliviar-lhe o sofrimento em que vive. Chegamos a odiar a fraqueza de Adam por ser desatento às necessidades dos filhos e por se ter deixado morrer por dentro quando a mulher o abandonou. Chegamos a odiar Aaron, por ser tão egoísta e tão desligado da realidade e do irmão. Sofremos com Caleb os conflitos interiores que o atormentam e com a inevitabilidade do que acaba por acontecer.
Caleb e Abra acabam por ser as personagens mais reais deste livro, são humanos, comentem erros, têm defeitos e aprendem a viver com isso. São as personagens mais fortes da história.

John Steinbeck faz no A Leste do Paraíso uma construção de personagens notável. Estas diferenças entre dois irmãos, gémeos, criados da mesma forma mas que se apresentam tão diferentes um do outro. A influência que a genética tem na nossa vida, mas particularmente a enorme importância que a educação tem na formação da nossa personalidade.
Uma das palavras mais importantes da história que está presente, implicitamente, em todas as acções é a palavra hebraica Timshel, que surge no quarto capítulo do Génesis, a passagem de Abel e Caim. Deus, quando condena Caim a vaguear pela terra, diz-lhe, segundo a versão hebraica, que ele pode (timshel) dominar sobre o pecado, o que significa liberdade de escolha entre o bem e o mal. Embora todos nós, segundo a Bíblia, descendamos de Caim, um fratricida, todos nós somos responsáveis pelas nossas escolhas e não podemos desculpar as nossas acções com os erros cometidos pelos nossos antepassados. É uma mensagem muito forte ao longo de todo o livro.
A referência à passagem de Abel e Caim não é inocente, porque esta passagem é discutida por Adam, Lee e Samuel, no primeiro volume, quando procuravam na Bíblia nomes para os gémeos. A semelhança entre a histórias dos irmãos da Bíblia e os irmãos do livro de Steinbeck é muita. E a verdade é que, tal como na Bíblia, um dos irmãos acaba por ser indirectamente responsável pela morte do outro.
Não posso esquecer a família Hamilton, tão caricata, com todos os irmãos tão diferentes uns dos outros. O que me fica desta família é, ao contrário dos Trask, que nunca foram uma família na verdadeira acepção da palavra, é a solidariedade e o amor verdadeiro que todos os membros dos Hamilton sentem uns pelos outros, mesmo tendo personalidades tão distintas. Fiquei triste com o fim trágico e prematuro de alguns dos seus membros.
Por último, a mãe dos gémeos, Cathy, a tal que Steinbeck apelidou de monstro. Gostei muito da maneira como ela é descrita no livro, gostei do rumo que a vida dela toma e gostei da forma como acaba. É uma personagem fascinante, como todos os monstros podem ser. :)

Mais uma nota, num post que já vai longo, aconselho verem o filme East Of Eden com o malogrado James Dean no papel de Caleb Trask e o Richard Davalos no papel de Aaron Trask. Quando dei de caras com o filme no meu vídeo-clube fiz questão de o ver, e eu não sou nada dada a filmes antigos. É para verem quanto gosto desta história! :)

Leiam que vale a pena! :)

João Aguiar

Foi com tristeza que soube, só hoje, da morte do escritor e jornalista João Aguiar no passado dia 3 Junho. Estive ausente estes dias e não sabia de nada...

Gostei muito dos livros que li dele. O primeiro que li dele foi O Dragão de Fumo, já há muitos anos e gostei imenso. O último foi o Navegador Solitário que me surpreendeu por ser tão diferente do O Dragão de Fumo e de outros que já tinha lido dele. Um livro que me deixou com um sorriso no rosto. Um dia destes escreverei sobre ele aqui.
Sempre pensei nele como um escritor muito versátil, imaginativo e com uma escrita muito próxima. Era também o autor da série juvenil O Bando dos Quatro que nunca li mas que demonstram a versatilidade deste senhor na escrita.

Enfim, as letras portuguesas ficaram mais pobres e é sempre muito triste quando alguém por quem sentimos estima nos deixa.

junho 01, 2010

Parábola do Cágado Velho - Pepetela

"Falo de um amor e de uma transgressão.
Quem sabe, talvez a transgressão nunca fosse possível. Mas a granada existiu, essa granada que traçou no ar espantado do planalto a figura da mulher amada.
Mas uma granada, mesmo com tal magia, pode materializar um mundo?"


Pepetela começa a figurar-se como um dos meus escritores favoritos. Fala de temas sérios de uma forma encantadora, com aquela característica que os escritores africanos parecem ter de nos falarem de assuntos tão sérios, como a guerra, como se de um conto de fadas se tratasse. O melhor é que as personagens pouco têm de princesas ou príncipes, são reais e credíveis como não o são muitas "personagens" que se cruzam connosco no dia-a-dia. :)

Segundo o dicionário:
Parábola é uma "narração alegórica que encerra algum preceito de moral ou verdade importante".
Alegoria é a "representação de uma realidade abstracta através de uma realidade concreta, por meio de analogias, metáforas, imagens e comparações".

Parábola do Cágado Velho é assim: uma parábola sobre a guerra mas, sobretudo sobre as pessoas que convivem com ela, que nada fizeram para a despoletar e que nem sequer compreendem porque se luta.

Ulume (homem na língua Umbundu) sobe todos os fins de tarde ao alto do morro junto à gruta de onde todos os dias sai um cágado, mais velho que o mundo, para beber água da fonte. Todos os fins de tarde Ulume sente que o tempo pára, só existe ele e o cágado velho e Ulume fica apenas vazio, numa grande paz intranquila.
Ulume é casado com Muari (a primeira mulher na língua Kimbundu e outras línguas) e tem dois filhos, Luzolo e Kanda. Toma para sua segunda mulher Munakazi (a mulher na língua Mbunda), uma rapariga mais nova por quem se apaixona, primeiro pelos seus pés que parecia se olhavam, com os dedos grandes levantados, depois pelos seus olhos grandes e melancólicos.
Um dia os filhos vão-se embora para fazer a guerra, lutando de lados diferentes, um contra o outro. Esta guerra, que ninguém na aldeia de Ulume percebe e da qual não conhecem as razões, apenas traz desgraça à aldeia onde vivem. Soldados que invadem a aldeia e levam tudo o que encontram, homens em idade de lutar, mulheres e toda a comida que conseguem carregar. Os habitantes da aldeia são obrigados a recomeçar sempre que os soldados passam por lá, num ciclo vicioso, de prosperidade e pobreza. Decidem, por isso, mudar-se para um sitio mais isolado ao qual chamam de Vale da Paz, acreditando que os soldados não chegarão lá. Até ao dia em que chegam e, por causa de uma querela insignificante destroem o Vale da Paz partindo novamente como se nada mais lhes importasse.
Esta é uma das passagens mais irónicas do livro, porque a guerra não tinha acabado estava-se, antes numa espécie de tréguas: os soldados disseram não é bem assim, ainda não há paz, só se anda à procura dela, mas é difícil de encontrar neste caminhos e descaminhos das montanhas e Ulume achou eles tinham razão, a paz era uma pomba branca com lhe tinham explicado de outra vez e como seria possível encontrar uma pomba naquele matagal (...)
Por causa de uma mal-entendido o Vale da Paz é destruído e Ulume acreditou ver, por volta do meio-dia, um pássaro escuro sair lá de baixo e voar por cima deles em direcção ao sol. Seria a tal pomba mágica? Se fosse, deixara de ser branca, toda chamuscada. E com esta ligeireza de destrói a paz e a vida de todos aqueles que ali viviam.
Muitos haviam já partido para o Lago da Última Esperança, pois achavam que já muita gente conhecia o Vale da Paz e receavam o regresso dos homens armados. Os que ficaram e sobreviveram acabaram também eles por partir para o Lago da Última Esperança, um local ainda mais para dentro da Munda (montanha) onde esperavam reconstruir mais uma vez a vida destruída.

É um livro muito bem conseguido, sobre a guerra e o pós-guerra. É um perspectiva muito interessante sobre a guerra civil de Angola, porque penso ser essa parte da história angolana que Pepetela retrata, onde as populações mais afastadas dos centros urbanos não faziam ideia dos porquês da guerra e, é quando olhamos a guerra desta perspectiva que nos apercebemos de quão injusta esta pode ser, pois foram estes os que mais perderam, materialmente e emocionalmente.

Fala também do eterno conflito geracional entre os mais velhos, presos a costumes e tradições que os mais novos consideram ultrapassadas e ridículas. O medo que os mais velhos sentem de perder o controle sobre a juventude, que eles desistam de trabalhar a terra, que os esqueçam e não os respeitem, no fundo, o medo do desconhecido.

Por isto tudo que aqui disse e também pelo que não disse, leiam este livro porque vale a pena, é muito bonito! :)