Título: Se o Passado Não Tivesse Asas Ano da edição original: 2016
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote
“A terrível luta diária pela sobrevivência dos meninos de rua, em plena guerra, contrasta com a fartura desmesurada dos jovens da nova burguesia de Luanda.
Himba, treze anos acabados de fazer, durante a fuga do Planalto Central para Luanda, motivada pela guerra, perde-se do resto da família, vendo-se de repente sozinha no mundo. Sem outros meios que não sejam a sua inteligência, consegue chegar à capital, onde conhece Kassule, um menino de dez anos que perdeu uma perna devido a estilhaços de uma mina. Ambos órfãos vítimas da guerra, sem teto e dependendo do lixo dos restaurantes, unem-se para conseguirem subsistir, lutando pela sobrevivência dia a dia. Assim nasce uma bela amizade.
Sofia, que há muito aguarda uma oportunidade para mudar de vida, descobre que tem um sentido muito apurado do gosto. Numa aposta arriscada, aceita gerir um restaurante, onde dá conselhos sobre temperos. À medida que o restaurante vai ganhando clientes da classe alta de Luanda, também a ambição de Sofia vai sendo alimentada. E está disposta a agarrar todas as oportunidades que lhe garantam uma vida melhor, a ela e ao irmão Diego, um artista de rua que sonha expor em galerias.
Se o Passado não Tivesse Asas cruza duas histórias, duas grandes personagens femininas, numa narrativa original com um desfecho imprevisível, que retrata os últimos vinte anos da história de Angola.”
Se o Passado Não Tivesse Asas é um livro duro, sobre a infância num país em guerra, num país pobre e desigual e sobre os adultos que são o resultado de crescer nestas circunstâncias.
Quando a guerra se aproximou da povoação onde Himba vivia, a família decidiu que estava na altura de fugirem. Himba tinha treze anos quando se viu, na fuga e após um ataque ao autocarro onde seguia com a família, perdida e sozinha. Com o ataque, afastou-se dos pais e nunca mais os conseguiu encontrar. Com algum esforço conseguiu chegar à cidade, na esperança de que os pais lá estivessem à espera dela, tão desesperados por encontrá-la como ela estava por voltar a vê-los.
No entanto, o que Himba encontra na cidade grande é barulho, confusão, indiferença e mais miséria. Vê-se obrigada a dormir na rua, junto de outras crianças, também elas vítimas da guerra, perdidos das suas famílias, vagueiam pelas ruas a pedir, a roubar a fazer o que é necessário para sobreviverem mais um dia.
É lá que conhece Kassule, um menino mais novo que ela e que está na rua há mais tempo que Himba. Kassule não tem uma perna, perdeu-a quando pisou uma mina, no entanto, é um miúdo cheio de energia, com boa disposição e muito honesto. Percebendo que ela está com dificuldades em adaptar-se à nova realidade, acolhe-a sob a sua alçada e os dois acabam por se tornar inseparáveis.
Pouco tempo depois, os dois decidem, deixar a cidade e partem para uma zona costeira, onde a competição por comida, na teoria, será menor. E é lá que vivem o melhor e o pior das suas curtas vidas. Conhecem o amor e o ódio, a paz e a violência, riem e choram.
Paralelamente conhecemos a história de Sofia e Diego, dois irmãos a viver em Luanda, num país que já não está em guerra.
Sofia trabalha num restaurante, onde é responsável principalmente pela cozinha e por toda a comida que é servida aos clientes. Tem um dom inigualável para os temperos e uma intuição que vai tornando o restaurante, pouco a pouco, numa referência, que começa a atrair a atenção da classe mais alta de Luanda. É inteligente e ambiciosa e, embora não seja de todo uma má pessoa, é uma sobrevivente que tem uma visão, por vezes um pouco distorcida do que é correto ou não fazer para se atingirem determinados objetivos.
Diego, por outro lado, é um artista. Pinta quadros e ganha algum dinheiro a vendê-los na rua aos turistas. Tem a noção de que não é muito bom naquilo que faz, mas vive uma vida despreocupada. Não é ambicioso e parece ter até alguma aversão ao dinheiro. Quer ganhar apenas o suficiente para viver o dia-a-dia.
Os dois vivem juntos e, embora sejam muito diferentes um do outro, a vida vai correndo com alguma normalidade.
Se o Passado Não Tivesse Asas talvez fosse possível deixar para trás aquilo que nos tornou em adultos menos simpáticos, menos capazes e menos seguros. Se fosse possível apagar da nossa história aquilo que nos prende, que não nos permite avançar, voar e sermos mais felizes, aposto que muito pouca gente escolheria manter esse passado presente nas suas vidas. Por vezes o passado torna-nos melhores pessoas, outras vezes só nos torna menos capazes.
Gostei muito deste livro, porque está muito bem escrito e porque as personagens são difíceis de esquecer. Este foi leitura das férias de Verão do ano passado (estou muito atrasada nas minhas opiniões aqui no blogue, eu sei) e, tendo passado quase um ano, ainda guardo na memória, com carinho a Himba, o Kassule, a Sofia e o Diego. A minha memória não é grande coisa, por isso, para mim, o facto de ainda os ter tão presentes diz muito sobre o livro.
Pepetela, mais uma vez, a não desiludir. Acho até que este está no meu top três dos livros do
Pepetela.
Recomendo sem qualquer reserva.
Boas leituras.
Excerto (pág.246):
“Não sentia dores, mesmo se o sangue não parava de sair do nariz por causa das chapadas. O corpo estava feito para ser torturado, por isso era indiferente doer ou não doer, qual era a diferença? Quando a dor é constante, deixa de ser sentida. E assim queria ficar, imune à dor, física e à outra, a da perda. Já tinha perdido tudo ou quase, pois lhe restava Kassule. Era pouco?
Era imenso.
Mas também queria mais. Mentira. Agora já não desejava mais nada, ficava satisfeita com o que tivesse, só tinha de andar, andar, evitar pensar, evitar fazer comparações com outras vidas, o passado se enterrava automaticamente, inútil fazê-lo ressuscitar, pois só trazia sofrimento, saudade, angústia. Devia agradecer cada minuto de vida e viver assim, cada minuto de sua vez.
O futuro não existe para gente como nós, só o minuto em que ainda cá estamos.”