Título: Sua Excelência, de Corpo Presente
Ano da edição original: 2018
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote
Ano da edição original: 2018
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote
"Num enorme salão deitado num caixão jaz um ditador africano. Está morto, mas vê, ouve e pensa. Assim estirado, aprisionado num corpo sem vida, mas na posse das suas faculdades intelectuais, só lhe resta entreter-se a recordar as peripécias vividas com muitos dos que lhe vieram dizer adeus, entre os quais se encontram diversos familiares, a primeira-dama (e as outras mulheres e namoradas), os numerosos filhos e as altas dignidades do Estado. Ao relembrar a sua vida, o percurso que o levou a presidente e os muitos anos como chefe de Estado, vai-nos revelando os meandros do poder político, o nepotismo que o corrói e os vários abusos permitidos a quem o detém.
E, como percebe tudo o que se passa à sua volta, e é muito difícil a um ditador deixar de o ser, Sua Excelência não só vai tecendo considerações sobre os presentes e os seus interesses políticos, como tenta adivinhar os seus pensamentos e maquinações. Pois, mesmo morto, não deixará a sua sucessão em mãos alheias, e nela tentará imiscuir-se através do seu espião-de-um-olho-só, que lhe é tão fiel na morte como era em vida."
O ditador de um país africano morre. O ditador, por algum motivo desconhecido por todos os envolvidos, embora esteja morto e não existam dúvidas relativamente a isso, permanece numa espécie de limbo, e consegue ver e ouvir tudo o que se passa à sua volta. Tem consciência de quem foi, de que morreu e de que está a assistir ao seu próprio funeral. Não está assustado mas sim divertido e muito curioso para saber o que realmente pensam sobre ele. Quem apareceu e, principalmente quem está ausente.
Enquanto decorrem as cerimónias, relembra a sua vida e todos os que se cruzaram consigo. Os aliados de sempre, os muitos amores, os filhos, os amigos e os inimigos. Recorda a forma como chegou à posição de Chefe de Estado e como se manteve por lá tantos anos.
Pepetela não desilude. Este é um tema de que o escritor gosta. Caminha pelos meandros do poder, de homens que governam para si e não para quem os elege. Homens que utilizam o seu poder para enriquecer, sabendo que não pode ser de outra maneira. Se não fossem eles seriam outros a fazer exatamente o mesmo. O sistema está podre e ninguém está interessado em torná-lo melhor e mais justo.
Protegem-se a si e aos seus, derrubando todos os que sintam que os podem atraiçoar.
Não sendo o meu livro favorito de Pepela, é um livro divertido e que se lê bem.
Recomendo sem qualquer ressalva.
Boas leituras!
Excerto (pág. 9):
"Estou morto.
Estou morto, de olhos cerrados, mas percebo tudo (ou quase) do que acontece à minha volta. Sei, estou deitado dentro de um caixão, num salão cheio de flores, as quais, em vida, me fariam espirrar. As pessoas não sabem que flores de velório cheiram mal? Sabem, mas a tradição é mais forte e velório sem flores é para pobre.
Ora, não somos pobres, dominamos uma nação.
Estou morto, no entanto, posso escutar, entender os dizeres, mesmo os sussurros e, em alguns casos, adivinhar pensamentos.
Um grupo cochicha lá atrás na multidão. A distância e outros sons e ideias partilhando o éter não permitem perceber a razão das piadas em surdina, ou estarão a conspirar governos e lideranças, ou a prever o futuro. Esses são inimigos há muito camuflados, pois se divertem ao me verem estirado em fato preto no caixão. É cedo para revelar nomes, mas conheço todos e nenhum me surpreenderá. Sempre os avaliei como hostis, ou a minha polícia política não valeria os altos salários sempre providos a tempo e alguns presentes caros pelo Natal. Deixei-os intrigarem durante anos, eram inócuos. Sem mim na tribuna, talvez ganhem alguma força, daí a alegria deles. Ou o que virá para o meu lugar dá cabo do seu pescoço com um assopro. Uma coisa é certa, no momento do meu enterro, também se prostrarão em soluços, alguns até se ajoelharão, em gesto de orfãos desamparados. E cantarão saudades antecipadas. De preferência diante de jornalistas e televisões.
É a natureza das coisas."