julho 12, 2012

Terra Sonâmbula - Mia Couto

Título original: Terra Sonâmbula
Ano de edição: 1992
Autor: Mia Couto
Editora: Editorial Caminho

"Primeiro romance do moçambicano Mia Couto, já bem conhecido e apreciado pelo público português, Terra Sonâmbula tem como pano de fundo os recentes tempos de guerra em Moçambique, da qual traça um quadro de um realismo forte e brutal.
Dentro deste cenário de pesadelo movimentam-se personagens de uma profunda humanidade, por vezes com uma dimensão mágica e mítica, todos vagueando pela terra destroçada, entre o desespero mais pungente e uma esperança que se recusa a morrer. 
Terra Sonâmbula é um romance admirável, sem dúvida uma das melhores obras literárias que nos últimos anos se escreveram em português."

Li este livro pela primeira vez há uns largos anos. Na altura, pouco percebi, no entanto gostei.
Porque é que gostamos de coisas que não percebemos? Talvez aquilo que não percebemos nos intrigue, nos desperte para o desconhecido e nos ajude a alargar horizontes e a sair da nossa zona de conforto.
Terra Sonâmbula, deve ter sido o primeiro livro "estranho" que li. Estranho na escrita, com personagens difíceis de conceber mas com uma linguagem que, embora não conseguisse captar na sua totalidade, não me era tão estranha assim. Um livro cheio de palavras inventadas que mostrou que uma história não tem de ser regrada e cheia de barreiras gramaticais. Quando se conseguem quebrar barreiras e ultrapassar preconceitos, a linguagem deixa de ser rígida e é possível reinventar toda a língua e as palavras tem o significado que lhe queremos dar. Não deixa de ser reconfortante que nem tudo na vida tenha de fazer sentido. Sabendo isso é mais fácil apreciar as coisas que realmente importam e a beleza de uma nova linguagem, a linguagem dos sonhos, dos sentimentos, a linguagem mais próxima da primeira palavra proferida pelo Homem há milhares de anos atrás.

Mia Couto é irrepreensível na forma como nos conta uma parte da história de Moçambique, apoderando-se dos sonhos dos dois jovens Muidinga e Kindzu. É um livro cuja beleza reside na forma como está escrito e nos sentimentos nobres que o escritor tão bem descreve. Tudo o resto é feio e angustiante, igual a todas as guerras.

Este é um livro difícil de descrever e de comentar porque embora fale de assuntos muito concretos e muito reais, fá-lo de uma forma pouco palpável e qualquer tentativa, da minha parte, para tentar fazer ver o porquê de este ser um livro especial e que não devem deixar de ler, seria uma tentativa inútil de chegar perto da qualidade literária de Mia Couto.
Por isso vou-me limitar aquilo que consigo transmitir por palavras "normais".


Em Terra Sonâmbula, Mia Couto fala-nos de um país destruído pela guerra, onde as pessoas se sentem perdidas e desenraizadas. Todos são órfãos de alguma espécie, todos perderam e têm a certeza de que vão continuar a perder. Muidinga é um rapaz, de idade um pouco indefinida, é jovem mas não consegui perceber quão jovem seria, que foi salvo por Tuhair. Sem qualquer memória do que lhe aconteceu, o rapaz tem como única referência este homem que foge de algo ou de alguém que não identifica. Encontram abrigo num machimbombo incendiado à beira da estrada, uma estrada que parece ela própria deslocar-se. Toda a paisagem envolvente parece mudar, como se não fossem só as pessoas a deslocarem-se, fugindo da guerra, de um conflito que não conseguem perceber. Como se toda a terra fosse sonâmbula e caminhasse sem destino certo.
Perto do machimbombo Muidinga encontra uns cadernos, junto a um cadáver. Estes cadernos foram escritos por Kindzu, mais um jovem sem idade, porque as crianças da guerra parecem-nos sempre mais velhas, precocemente envelhecidas. Nos seus cadernos Kindzu registou a viagem que iniciou com o objectivo de se tornar um naparama, figuras temidas pela população por serem uma espécie de exército de almas guerreiras, abençoadas pelos feiticeiros e que lutavam contra a guerra. O relato da aventura de Kindzu passa a ser uma parte importante na vida de Muidinga e Tuhair, permitindo-lhes evadir-se da vida triste e temerosa que levam no machimbombo destruído. Com os cadernos de Kinzu a capacidade de sonhar e a esperança de um futuro mais risonho mantêm-se vivas!

Terra Sonâmbula foi o primeiro livro de Mia Couto e a "brincriação" com as palavras é genial e refrescante. É curioso voltar a uma obra mais antiga de um escritor que têm evoluído na forma como escreve, tornando-se mais maduro. As últimas obras dele são mais "normais" mas igualmente boas. São apenas uma outra vertente de um escritor que acredito, escreveria novamente e com a mesma qualidade Terra Sonâmbula.
O livro para além da guerra e das pessoas que nela se vêm envolvidas, fala nas tradições, nas crenças de uma sociedade fechada e muitas vezes preconceituosa.
Com este livro veio-me à memória um dos pouco poemas que conheço e recordo (não sou dada à poesia) do tempo da escola, "Pedra Filosofal" de António Gedeão:

"Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."


Obra de leitura obrigatória!

Boas leituras!

Excerto (um dos infinitos possíveis de escolher):
"Na realidade, eu já desistira de escutar. Pensava sobre as semelhanças entre mim e Farida. Entendia o que me unia àquela mulher: nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E, sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África. Mas uma diferença nos marcava: eu não tinha a força que ela ainda guardava. Não seria nunca capaz de me retirar, virar costas. Eu tinha a doença da baleia que morre na praia, com os olhos postos no mar."

Deixo-vos ainda o trailer do filme Terra Sonâmbula, de Teresa Prata, baseado neste livro de Mia Couto:


7 comentários:

  1. Excelente análise. Já o li e também gostei muito.

    :)

    Olinda

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  2. Olinda Melo: Obrigada! É mesmo um livro de leitura obrigatória. :)

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  3. gostei mt do teu blog!
    quando puderes: http://palavrassoltas-carol.blogspot.pt/

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  4. Gostei muito de ler este texto. Fez-me recuar imensos anos, até à altura em que li Mia Couto. Foi bom voltar :)

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  5. É um dos que ainda quero ler do autor! :)

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  6. Carol: Obrigada! Vou espreitar o teu blogue. :)

    Pedro: Ainda bem que gostou e que as lembranças são boas! :)

    tonsdeazul: Acho que vais gostar muito deste. :)

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