Título original: Autópsia de um Mar em Ruínas
Ano da edição original: 1984
Autor: João de Melo
Editora: Círculo de Leitores
Ano da edição original: 1984
Autor: João de Melo
Editora: Círculo de Leitores
"«(...) João de Melo oferece-nos um romance cuidadosamente elaborado, o arado da sua escrita revolve bem fundo no chão onde pisamos as palavras do quotidiano, a autópsia proposta talvez não se circunscreva ao cadáver de uma guerra morta à nascença, mais morta que a maior parte das guerras, porquanto até para matar, trucidar, exterminar é preciso ter objectivos e motivações - por egoístas ou irracionais que sejam (são-no sempre) uns e outros - não se chacina pelo simples prazer de sentir o cheiro do sangue ou verificar se a cor do plasma vital que corre nas veias dos Negros é igual à do que circula nas artérias dos Brancos. Ora, ao povo português faltava, felizmente, essa sanha de ferocidade mórbida que só a irracionalidade «justifica», cabendo-nos viver no limiar de um misterioso ritual selvático de que desconhecíamos as fórmulas litúrgicas e as palavras mágicas despoletadas do transe exaltador. (...)» João de Melo pega-nos pela mão e põe-nos «a andar às arrecuas no lodo que o nosso imaginário acumulou, numa regressão psicológica até às vísceras de nós mesmos, porquanto esse pesadelo de vinte e três anos nos salpicou a todos de dor, e sangue, e vergonha. Quem se atreverá a invocar a neutralidade para não ser engolido pela mancha da desonra colectiva? (...)»"
Esta é uma obra incontornável sobre a guerra colonial. É um relato emocionado e fortíssimo sobre o que foram, para os militares portugueses e para o povo angolano, os duros tempos de uma guerra que uns se viram obrigados a fazer e os outros obrigados a viver.
João de Melo conheceu de perto o que de forma tão dura relata nesta autópsia de um mar em ruínas. Cumpriu o serviço militar em Angola, em Calambata uma zona do interior, experiência essa que por certo serviu para que este seja um livro de cortar a respiração de tão realista, de tão sujo, de tão duro e feio, de tão vergonhosamente real e genuíno. Aliada a esta dureza, está a escrita poética de João de Melo que nos permite afastar um pouco do que é descrito.
Autópsia de um Mar em Ruínas é contado a muitas vozes, mas duas destacam-se claramente, a do alferes Renato e a da negra Natália, uma das muitas mulheres que vivem na Sanzala da Paz. A história é, portanto contada sob dois pontos de vista que, ao contrário do que poderíamos achar, são muito mais coincidente que divergentes.
Do lado dos militares portugueses conhecemos homens de olhar perdido, de corpos exaustos, afectados física e psicologicamente pelo que já viveram na guerra, pelos companheiros mortos e pela certeza de que a sua hora não tardará a chegar. Não compreendem a guerra, não a querem fazer, não querem matar ninguém, só não querem morrer sem poderem abraçar uma última vez as namoradas, as mulheres, os filhos ou os pais. Acreditam que a forma mais rápida de acabar com a guerra é a apatia, é miná-la por dentro. Afinal não existe guerra se ninguém estiver disposto a combater. Na messe do quartel de Calambata mantinha-se a seguinte frase escrita numa das paredes:
É PROIBIDO DIZER QUE HÁ GUERRA.
Em Calambata os militares seguem convictamente esta máxima, vivem os dias em contagem decrescente para o fim da comissão em Angola, passando os dias a beber, a jogar às cartas, ou a pensar nas namoradas que deixaram em Portugal. Até que uma emboscada os põe frente a frente com os horrores de uma guerra que ainda não tinham conhecido e a partir desse dia nada mais pode voltar a ser o que era.
Do lado dos negros, que vivem na sanzala da paz, assistimos à miséria a que estavam sujeitos. Deslocados da sua terra natal, viviam como prisioneiros, trabalhando praticamente de graça para os colonos da região. Tratados como animais e brutalizados pelos brancos, são homens e mulheres resignados à miséria, sem força ou armas para lutar. Desejam secretamente que os seus patrícios na mata acabem de vez com a presença dos brancos em Angola. As crianças são a única referência positiva naquele lugar. Mesmo mal-nutridas, são inúmeras as vezes que se referem as barrigas arredondadas com o umbigo pontiagudo destes meninos (curiosamente não falam das meninas, apenas dos meninos), é nas crianças que surge o sorriso da esperança, da alegria de viver. As mulheres surgem como o pilar da pequena comunidade, desesperadas pela resignação dos maridos que gastam tudo em bebida, todos eles precocemente envelhecidos e derrotados.
Quando João de Melo refere os maus-tratos por parte dos brancos, estes quase nunca envolviam os militares, que desempenhavam, neste caso, um papel mais neutro. Convém também referir que os colonos da região não aceitavam muito bem a presença militar na zona. Diziam-se capazes de dar caça aos "turras" e ensinar-lhes uma lição que os ia colocar nos seus devidos lugares e terminarem com o conflito num piscar de olhos.
Na mata escondem-se autênticos fantasmas, um pesadelo para os militares portugueses, incapazes de se protegerem de um inimigo que simplesmente não conseguiam vislumbrar. Expostos às inúmeras emboscadas, os militares faziam o melhor que sabiam para sobreviver, para adiar o dia em que iriam morrer.
As descrições dos ataques é tremenda, no sentido em que, por diversas vezes, quis fechar os olhos e não ler... Tamanha violência e irracionalidade é muito difícil de conceber para quem, felizmente, nunca a sentiu de perto, mas julgo que o relato de João de Melo nos consegue fazer chegar bem perto. O mesmo se aplica à violência física sobre os negros, essa sim, completamente irracional e arbitrária, que me fez sentir vergonha. Como é que sentimentos destes se continuam a perpetuar pelas gerações mais novas?
É um livro imenso, imensamente triste, violento, real e um documento que não pode nunca ser esquecido. Este é daqueles que deveria ter lugar no "Cemitério dos Livros Esquecidos" de Carlos Ruiz Zafón. :)
Todos nós sabemos o final desta história. O que gostaria de frisar é que Autópsia de um Mar de Ruínas não é só mais um livro sobre a guerra colonial, é muito mais do que isso. João de Melo é sem dúvida um escritor extraordinário, com uma enorme capacidade de expor as emoções e deixa-nos, enquanto leitores, completamente desprotegidos.
Recomendo sem qualquer hesitação! Mesmo os mais sensíveis deveriam fazer um esforço... :)
Boas leituras!
Excerto:
" Agora, pensei, tem de haver um músculo. Vai ter de abrir-se um músculo no meu olhar. A memória fechar-se-á logo de seguida sobre tudo isto, fechar-se-á de fora para dentro e talvez para sempre - e então eu jamais esquecerei aquele dia. (...) O músculo da minha memória estava-me devolvendo agora um cheiro a chamusco de porco, porque toalhas de fumo se agitavam ao longo da picada e havia tudo: havia nela o tal solo de emboscada com crateras de sonhos mortos à granada, havia o silêncio translúcido dos cemitérios da minha noite de toda a vida; havia tudo, tudo, desde o espanto daqueles náufragos cujo olhar acreditava ainda na possibilidade de uma ilha deserta, até à completa destruição dos olhos gelados onde o sol dava de chapa e também morria. Nenhuma respiração agitava a lâmina daquele dia, nem sopro algum faria estremecer a manhã sem horas da sua eternidade."
Que bom ler um artigo desenvolvido sobre esse romance de grande qualidade, mas tão pouco explorado :) De facto, tenho um sincero carinho por ele, sendo que, como tema de estudo na dissertação de mestrado, escolhi a Guerra Colonial e, mais especificamente, decidi tratar de Autópsia de um Mar de Ruínas, obra polifónica intensa, violenta, por vezes complicada de encarrar, mas, no entanto, repleta de emoções e de sensibilidade. Aqui, temos a verdadeira dicotomia da obra: é, pois, intensamente triste, mas é igualmente magistral.
ResponderEliminarO final tenta silenciar a tragédia do lado angolano e português. Porém, a escrita de J.de Melo é tão expressiva e real que algo de pungente é transmitido. Realmente, tem de mexer connosco... Deste modo, o leitor fica agarrado às páginas e acabamos por pensar que soube a pouco ;)
Parabéns e obrigada pelo bom artigo :)
Obrigada eu pelo comentário. :) A minha descoberta do João de Melo é muito recente, mas tem sido uma surpresa constante. O Autópsia de um Mar em Ruínas surpreendeu-me pela humanidade que transparece em cada frase, e por ser completamente imparcial, no sentido de apenas tomar partido pelas pessoas, independentemente da cor ou nacionalidade. Foi muito difícil de ler, mas são estes os livros que acabam por deixar alguma coisa em nós, leitores.
Eliminar