outubro 08, 2017

O Pecado de Porto Negro - Norberto Morais

Título original: O Pecado de Porto Negro
Ano de edição: 2014
Autor: Norberto Morais
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Conhecida entre os marinheiros do mundo como a Cidade do Amor Vadio, Porto Negro é um lugar remoto, plantado no coração dos trópicos que durante o dia, dizem, cheira ao suor dos homens e, à noite, ao perfume das mulheres da vida. Em Porto Negro vive Santiago Cardamomo, um jovem estivador que divide o tempo entre os bares do porto e a cama das mulheres, e também Ducélia Trajero, a filha donzela do açougueiro da terra, em quem o pai deposita todas as esperanças mas que sonha com Santiago desde o primeiro dia em que o viu. Só que em Porto Negro vive ainda Rolindo Face, o mesquinho empregado do açougue que jurou a si mesmo que a filha do patrão haveria de ser sua.
Amor, ódio, ciúme e vingança misturam-se numa trama que atravessa mais de meio século e envolve personagens tão distintas quanto uma antiga escrava que aguarda num palacete em ruínas o regresso do seu amo, um foragido da justiça, ou um mulato adamado que nas desertas horas da madrugada se perde pelo porto à procura de afecto."

Não sabia o que esperar deste livro. Tinha lido uma boa crítica, já não sei onde, e o nome ficou na lista de livros a comprar. 
Norberto Morais traz-nos uma história surpreendente com personagens inesperadas e foi, por isso, uma boa surpresa e um autor a manter debaixo de olho. 

Numa cidade costeira de um país da América do Sul, pelo menos assim parece, o calor torna os homens atrevidos e as mulheres disinibidas. Santiago Cardamomo é o solteiro mais cobiçado de Porto Negro. Não por ser rico, mas por ser especialmente habilidoso com as mulheres e o mais bonito de toda a cidade e arredores. :)
É um D. Juan e nenhuma mulher, nova ou velha, lhe consegue dizer que não. 

Ducélia Trajero é a única filha do dono do açougue de Porto Negro. É a menina dos olhos do pai, que a protege de todos o olhares para afastar os menos bem intencionados. Não muito bonita nem muito feia, Ducélia não chama a atenção, paira por Porto Negro sem virar muitas cabeças. É uma miúda tímida, dedicada ao pai, sem nada que a destaque da multidão. 
Vive perto de Santiago, que nunca olhou para ela duas vezes. Ela, no entanto, vive apaixonada por ele, desde que o viu pela primeira vez. Sabe que não é correspondida, e na sua inocência acha que o seu sentimento lhe basta para ser feliz. 

Todos os dias ao fim do dia, quando os trabalhadores do Porto regressam a casa, Ducélia vai varrer para a frente do açougue, de onde consegue ver Santiago chegar todos os dias. Todos os dias Santiago chega e nunca repara nela, até que, um dia, olha e repara. Um dia Santiago repara em Ducélia. E ao reparar nela, não pode deixá-la escapar. Nesse primeiro olhar não existe amor por parte de Santiago. E quando Santiago consegue o que quer, não tem qualquer intenção de continuar a ver Ducélia. Nunca se apaixonou por ninguém e não tem qualquer desejo disso. Ducélia, desiludida, sem perceber o que se passou, não volta a sair para varrer a frente do açougue e não procura mais Santiago. O silêncio de Ducélia começa a perturbar Santiago e quando dá por ela é ele que a procura, é ele que vai atrás dela. E quando dá por ela, está completamente apaixonado por Ducélia, pela ternura, pela paciência, pela compreensão, pelo seu silêncio e pelo amor que ela lhe dedica. 

Um amor assim, improvável, mas sincero e eterno, nunca pode correr bem nos livros. Este não é excepção. Ninguém sabe dos dois, o pai de Ducélia não pode sequer sonhar com o que se passa, é certo que matará Santiago, ou mesmo os dois.
Tudo poderia correr bem, não fosse a existência do ciúme. Rolindo Face é o empregado do açougue e é, desde que se lembra apaixonado pela filha do patrão. Prepara-se para pedi-la em casamento quando se apercebe de que se passa alguma coisa com a doce Ducélia e decide segui-la. O que vê deixa-o completamente louco. E louco de ciúme, por despeito, decide vingar-se dos dois. E é por causa de Rolindo que uma bonita história de amor, se torna num banho de sangue e vingança. 

Gostei muito da escrita de Norberto Morais e da forma como nos vai contando a história. 
Só não me agradou a forma como refere alguma coisa sobre alguma personagem e diz que se houver oportunidade nos conta. É claro que acaba por não contar nada e às tantas torna-se irritante. Tirando a utilização exagerada desta espécie de "bengala", gostei muito da escrita e as personagens estão bem construídas. É fácil criarmos empatia com elas. Senti verdadeiro asco por Rolindo, nada do que foi contado sobre a vida miserável que levava me leva a sentir alguma pena dele, só mesmo asco. 

Norberto Morais é para repetir e recomendo sem qualquer hesitação. Leiam que vale bem a pena. 

Boas leituras! 


Excerto (pág. 179)
"Agora às voltas na enxerga, batia-lhe a raiva em ondas revoltas contra o penhasco do peito. Tinha vontade de espernear, de gritar, de berrar, de esguichar, de se rasgar e sair de dentro de si. Sufocava. A imagem daquele sonho, daquela tarde, corroíam-lhe as entranhas com a violência de um ácido. Odiava-os! Odiava-os tanto! Em especial a ela. Tão recatadinha, tão acanhada, tão púdica... Estava confirmada a saúde, o brilho, a concretude dos gestos. Odiava-a! Odiava-a, odiava-a, odiava-a... Vadia! Fingida! Puta! Mais puta que a puta mestra de um vespeiro de putas! Ah, maldito fosse pela eternidade o Criador das mulheres! Tinha dores, Rolindo Face. Tinha dores. Sofria como um cão desdentado sobre uma montanha de ossos. Queria morrer, queria matar, queria nunca ter nascido; ter-se fingido de morto no dia em que veio à luz e arrefecer, arrefecer até gelar por completo, e apodrecer, como agora, naquela febre húmida e regélida que o queimava e desfazia de tão pantanosa e tão fria. Estragara tudo. Burra! Burra, burra, burra, rangia os dentes Rolindo Face. Odiava-a tanto! Tanto, tanto, tanto... Odiava-a tanto!
E ali, no canto escuro da cozinha - único canto permitido do mundo -, ali, onde a coragem se agigantava agora, que debaixo da estopa qualquer rato pelado é um colosso destemido; ali, onde não haveria de pregar olho até o Sol nascer, jurou a si mesmo que os haveria de matar."

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