março 05, 2019

Em Teu Ventre - José Luís Peixoto

Título original: Em Teu Ventre
Ano da edição original: 2015
Autor: José Luís Peixoto
Editora: Quetzal Editores

"A partir de um ponto de vista inteiramente novo, Em Teu Ventre retrata um dos episódios mais marcantes do sécula XX português: as aparições de Nossa Senhora a três crianças, entre maio e outubro de 1917.

Cruzando o rigor da sua dimensão histórica com a riqueza de uma galeria de personagens surpreendentes, este livro propõe uma reflexão acerca de Portugal, naquilo que tem de mais subtil e profundo.

Tanto na aparente simplicidade como no abismo dos seu mistério, a maternidade é também um dos temas marcantes de Em Teu Ventre.

O sereno prodígio destas páginas, atravessado por inúmeros instantes de assombro e milagre, constrói aqui um mundo que permanecerá na memória dos leitores por muito tempo."

Tinha alguma curiosidade para ler este livro do José Luís Peixoto, embora soubesse muito pouco sobre o que era, gostava do título e pronto. Por vezes é o que basta. Não fazia ideia que estava relacionado com as aparições de Nossa Senhora aos três pastorinhos de Fátima. Confesso que quando li a sinopse, torci o nariz. Livros sobre temas religiosos... não estava para aí virada. Depois pensei, é José Luís Peixoto, de certeza que vai ser diferente. E não me enganei. :)

Tendo como ponto de partida a 1ª aparição de Nossa Senhora aos três primos, vamos conhecendo os portugueses do início do século XX. A forma como viviam, fora das grandes cidades, e o que pensavam, em que acreditavam.
É um livro surpreendente, na forma como retrata a família de Lúcia, a mais velha das crianças, e a reação da mãe à história das aparições. Não estava à espera que a resistência desta fosse tão grande, que tivesse tantas dúvidas sobre a veracidade do que as crianças relatavam. Um misto de não acreditar e ser ríspida com a filha enquanto, ao mesmo tempo a tentava proteger das consequências que um acontecimento como aquele iria trazer para a vida de todos. É talvez a personagem mais marcante e que mais me deixou com sentimentos ambíguos, não só pela forma como geriu a questão das aparições, como pela forma como José Luís Peixoto descreve o tratamento dado à órfã que vive com eles.

De forma inconsciente, todos esperamos que as mães nos livros sejam carinhosas, ternurentas e sábias. Perfeitas e sem falhas. É um desejo estranho tendo em conta que nenhum de nós conhece uma mãe assim, perfeita. A única perfeição que lhes conhecemos é a capacidade de amar e perdoar. E, na realidade é a única perfeição de que necessitamos. Em tudo o resto podem e devem ser humanas, o mais possível. :)
Talvez pelo título, Em Teu Ventre, estava à espera de um livro sobre a beleza da maternidade. Estava à espera de uma espécie de poema às mães. Não sei onde fui buscar esta ideia sobre o livro, se li alguma coisa sobre ele ou se foi apenas uma ideia pré-concebida na minha cabeça. De facto, acaba por ser um livro sobre a maternidade, mas num sentido menos poético e mais lato. Não é apenas um livro sobre a mãe de Lúcia, é também sobre a necessidade de termos alguém, superior que não compreendemos totalmente como existe, que olhe por nós, que nos ampare e que, de certa forma, nos perdoe. Será isto que procuramos na religião? Amparo, consolo e, acho eu, também desresponsabilização. A vida é difícil, e viver com a certeza de que não existe um propósito superior é mais difícil do que acreditar que existem forças superiores que nos guiam e nos protegem.

Em Teu Ventre é, à semelhança dos outros que já li de José Luís Peixoto, um livro muito bem escrito, com verdadeiros momentos de beleza literária, com personagens muito bem construídas e verdadeiras na forma como existem de facto.

Recomendo sem hesitações.

Boas leituras!

Excerto (pág. 121):
"(AQUI ESTOU. VISÍVEL OU INVISÍVEL, AQUI ESTOU. Com os erros que não te contei, com os defeitos que fui capaz de esconder, aqui estou. Antes este mistério do que essa ideia impossível que vês em mim. A perfeição que me impuseste desprezou as minhas necessidades. Roubaste-me a lascívia, o prazer, absolveste-me de todos os crimes, até daqueles que me orgulho de ter cometido. Queres que te agradeça por me privares de ser inteira? Não sou essa voz, distorção de dúvidas e de medos. Não sou esse silêncio, essa falta proporcional à distância que te separa de mim. Sim, peguei-te ao colo, consolei-te quando soluçavas, soube alimentar-te com o meu próprio corpo, mereço castigo por te ter conhecido frágil e por ter tomado conta de ti? Na minha vida, fiz muito mais do que isso. Não faltam lugares onde estive e não estiveste, não faltam idades que te excluem. Agora mesmo, continuo a existir quando não te lembras de mim e, até quando passo por ti na sala ou quando estou sentada ao teu lado, só eu sei aquilo em que penso. Visível ou invisível, sou um mistério que sempre te escapará de, no entanto, esta ironia: aqui, nestas páginas, só consigo ser aquela que fores capaz de escrever, que fores capaz de ver.)"

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