junho 13, 2024

O Outono em Pequim - Boris Vian

Título original: L'Automne a Pékin
Ano da edição original: 1947
Autor: Boris Vian
Tradução: Luiza Neto Jorge
Editora: Editora Ulisseia (Edições de Bolso)

"O romance O Outono em Pequim é de 1947, o mesmo ano em que Vian escreveu A Espuma dos Dias. Publicado pela primeira vez nas Éditions du Scorpion, o livro contém elementos surrealistas. A Pequim que surge no título não é literal. Os protagonistas têm em comum dirigirem-se a um deserto imaginário chamado Exopotâmia, onde está em construção uma estação de comboios.
A narrativa começa com as peripécias de Amadis Dudu, que, não tendo conseguido apanhar o autocarro para ir trabalhar, acaba a bordo do 975, que o leva a esse deserto. Esse acaso revela-se frutuoso para Amadis. O Outono em Pequim é uma narrativa de desilusão do mundo adulto, construído sobre o absurdo da sociedade industrial. Mas é também, tal como A Espuma dos Dias, uma história de amor sem esperança.
O narrador detém por vezes deliberadamente o desenrolar da história para comentar o que se está a passar. E é esse seu olhar irónico que evidencia os aspectos absurdos do romance." 

Em O Outono em Pequim, temos um grupo de pessoas, que acabam pelos mais diversos motivos, no deserto da Exopotâmia, envolvidos num projeto de construção de uma linha férrea.
 
Ângelo, Ana e Rochela vão lá parar porque atropelam o engenheiro que estava contratado para o projeto e, naturalmente alguém tem de o substituir e só poderiam ser eles. Ângelo e Ana são amigos. Ângelo é apaixonado por Rochela mas esta é a namorada do amigo Ana. 

Amadis Dudu é um simples funcionário de escritório que se levanta todos os dias para ir trabalhar, até que um dia não consegue apanhar o autocarro para o escritório onde trabalha. Acaba por apanhar o 975 que o deixa no deserto. No deserto acaba por ser nomeado diretor e responsável pela construção da linha e transforma-se numa espécie de tirano.

O doutor Manjamanga e um interno vão parar ao deserto porque o engenheiro que foi atropelado dá entrada no hospital onde trabalham e, enfim, porque não haveriam de ir? Para além disso, o deserto é o sítio ideal para o doutor Manjamanga testar um novo avião de aeromodelismo, com um novo motor italiano que não é a combustão e que é super potente. O aeromodelismo é a verdadeira paixão do doutor.

No deserto encontram um restaurante-pensão gerido pelo Barrizana e uma exploração arqueológica cujo responsável, Atanágoras parece ser o mais racional de todos os que se juntam no deserto.

Temos também um auto denominado padre, três irmãos mineiros e um eremita, condenado a ser eremita no deserto da Exopotâmia, por ter morto um ciclista.
 
Para além disto tudo, convém deixar claro que a linha férrea não terá qualquer utilidade porque não vai ligar nenhuma localidade a outra, mas tem de ser construída e todos trabalham para que isso aconteça. :) 

Há nos livros de Boris Vian, que já li (opinião sobre A Espuma dos Dias aqui), alguma coisa que ressoa em mim. Não sei explicar porquê mas, todo o absurdo e a toda a irrealidade, têm a capacidade de me prender e divirto-me a ler. Gosto dos ambientes que cria, dos diálogos, da espécie de história que se vai desvendando e gosto das personagens, gosto muito das personagens e das dinâmicas entre elas.

Não será uma leitura para todos. Eu própria não sei muito bem porque gosto mas, não posso deixar de recomendar. É daquele tipo de escritor que só lendo e por isso força, avancem sem medos. ;) 

Boas leituras! 

Excerto (pág. 84):
"Não muito distante havia um metro boquiaberto, atraindo grupos de imprudentes para dentro da goela negra. De tempos a tempos produzia-se o movimento inverso e ele lá vomitava, muito a custo, um molho de indivíduos pálidos e enfezados, com o fato a cheirar às entranhas do monstro, que fediam.
Rochela virava a cabeça de um lado para o outro à procura de um táxi, porque só a ideia do metro a assustava. À sua vista foram tragadas, com um ruído de sucção, cinco pessoas, três delas do campo, pois traziam cabazes com gansos dentro, e ela não teve outro remédio senão ficar de olhos baixos, primeiro que se recompusesse. Não havia um único táxi nas imediações. A vaga de automóveis e autocarros que desciam a rua inclinada causava-lhe uma vertigem movediça. O irmãozinho é que surgiu no momento preciso em que, já sem forças para mais, ia deixar-se tragar pelo insidioso tapete rolante, e conseguiu retê-la, agarrando-a pela ponta do vestido, gesto este que desvendou as encantadoras coxas de Rochela. Houve homens que caíram desmaiados, Rochela subiu o degrau fatal e beijou o maninho, para lhe agradecer. Felizmente que o corpo de uma das pessoas que se sentira mal veio cair precisamente diante das rodas de um táxi livre, o que fez empalidecer os pneus e, por conseguinte, parar o carro."

junho 05, 2024

Tanta Gente, Mariana / As Palavras Poupadas - Obras Completas vol. 1 - Maria Judite de Carvalho

Título: Tanta Gente, Mariana / As Palavras Poupadas
Ano da edição original: 1959 / 1961
Autor: Maria Judite de Carvalho
Editora: Minotauro

"A presente coleção reúne a obra completa de Maria Judite de Carvalho, considerada uma das escritoras mais marcantes da literatura portuguesa do século XX. Herdeira do existencialismo e do nouveau roman, a sua voz é intemporal, tratando com mestria e um sentido de humor único temas fundamentais, como a solidão da vida na cidade e a angústia e o desespero espelhados no seu quotidiano anónimo.

Observadora exímia, as suas personagens convivem com o ritmo fervilhante de uma vida avassalada por multidões, permanecendo reclusas em si mesmas, separadas por um monólogo da alma infinito.

Este primeiro volume inclui as duas primeiras coletâneas de contos de Maria Judite de Carvalho: Tanta Gente, Mariana (1959) e As Palavras Poupadas (1961), Prémio Camilo Castelo Branco."

Primeiro contacto com a escrita de Maria Judite de Carvalho e sinto que já deveria ter sido exposta a ela há muito mais tempo. 
Gostei de tudo. Gosto da escrita, da forma leve e irónica como nos transporta para dentro das vidas das mulheres, essencialmente mulheres, que habitam as suas histórias.

São mulheres sozinhas, por vezes sós, solteiras ou viúvas, na meia idade, que suponho seja, para a altura em que foram escritas, uns quarenta anos e cujos pensamentos, angustias e reflexões sobre as suas vidas e sobre o que as rodeia vamos conhecendo de forma muito natural. Impressiona que sejam, à primeira vista histórias sobre nada, onde nada acontece mas, que sejam afinal de conta histórias profundas sobre o ser humano, sobre a mulher, sobre o amor e sobre a vida.

Recomendo sem qualquer hesitação. Desconfio de escritores ou obras que são consensuais e das quais todos gostam mas, na verdade, não sei o que levaria alguém a não gostar de Maria Judite de Carvalho.

Além disso as edições da Minotauro têm uma qualidade extraordinária e com capas lindíssimas. Dá vontade de andar com eles para todo o lado. :)

Boas leituras!

Fica também o link para um documentário que passou na RTP e que continua disponível na RTP Play - A Vida é Um Autocarro Vazio - sobre a vida e obra de Maria Judite de Carvalho. Não deixem de ver.

Excerto (pág. 34)
"Não quero deixar nada atrás de mim. Levei hoje a tarde a rasgar papéis. Entre eles achei o meu retrato de braços pendentes, encostada a uma árvore... Porque o guardei? Não sei, já não me lembro. Pu-lo em cima da cómoda, sabe-me bem olhar para ele.
Tantos papéis, tantas folhas que tenho escrito! Diários, cartas que não seguiram o seu destino porque afinal, pensando bem, não valia a pena mandá-las... Papéis bordados a letra miúda que eu desconheço. Mais firme, mais igual, mais redonda. A minha letra de agora engelhou e amoleceu com a minha cara e as minhas mãos, com o meu próprio corpo de seios flácidos, de carne desbotada e só.
O cesto está cheio da minha vida. Pedaços rasgados, fragmentos, frases que alguém me dirigiu e eu já mão me recordo de ter ouvido, palavras que eu disse a alguém e já esqueci. Tudo tão baralhado como as minhas recordações. Postais do Luís Gonzaga com selos de Itália e vistas de catedrais. Palavras de um desconhecido dirigidas a alguém que já não sou eu. O tempo tem estado muito agradável... Roma que é uma maravilha... e a terminar muitos desejos de felicidades. Já nem rir me sinto capaz."

                                                                                                                        "Tanta Gente, Mariana"


Excerto (Pág. 190)
"Libertei-me do círculo magnético e pus-me a subir a rua. Não fui dar aulas, não podia. Voltei para a minha casa sem calor, onde nada me esperava. Uma casa vazia, sem objetos de mau gosto, sem sentimentos de mau gosto. E pensei muito nela.
«Talvez fizesse alguma coisa louca...» Que pensarão os homens que a vão julgar? Uma mulher velha e feia, que talvez se apresente no tribunal vestida de verde e amarelo,  a matar por amor... Se não é repugnante! E ridículo, acima de tudo. Mas eles os dois, creio que já o disse, nunca tinham tido a noção do ridículo."

                                                                                                                        "Uma História de Amor"