janeiro 03, 2010

Caim - José Saramago


"Pela fé, Abel ofereceu a deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala." (Hebreus, II,4)

"A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele."

O que dizer do mais recente e polémico livro de Saramago? Dizer que é Saramago, bastaria para quem já leu e conhece o autor, bem como as suas opiniões sobre Deus e as religiões. Para quem nunca leu nada de Saramago tenho de dizer que ele é o maior contador de histórias que o nosso país já conheceu, cuja imaginação não conhece limites. Quando leio os livros dele tenho sempre a sensação de que estou sentada no chão, perto da lareira a ouvir o avô, dos contos infantis, a contar uma história. Independentemente das histórias terem muito pouco de infantis, essa sensação está sempre presente.

No caso de Caim, o escritor presenteia-nos com uma história, baseada em alguns dos episódios narrados na bíblia, livro que foi durante séculos cartilha para muita boa (e má) gente.
O livro começa com a expulsão de Adão e Eva do Paraíso por terem "comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal". Fora do Paraíso, depois de abandonados por Deus à sua sorte, têm três filhos, Caim, Abel e Set. Caim decide ser lavrador, enquanto Abel se torna num pastor de ovelhas. Quando, por tradição religiosa têm de oferecer as "prímicias do seu trabalho" ao Senhor, Abel queima um cordeiro do seu rebanho, enquanto Caim queima produtos da terra - algumas espigas e sementes. Deus aceita de bom grado a oferenda de Abel, mas rejeita a de Caim. Caim, revoltado, assassina o irmão Abel porque, como diz na discussão que tem com Deus momentos depois, "(...) não podia matar-te a ti". Deus castiga Caim, não sem antes assumir alguma da culpa no fraticidio, marcando-o e condenando-o a vaguear pelo mundo.

No resto da história, Saramago vai-nos contando alguns dos episódios mais violentos da bíblia, presenciados por Caim e, narrados sempre do ponto de vista de Caim, como se este fosse a consciência moral que Deus aparentemente não tem. O episódio de Abraão e do sacrifício do seu filho Isaac; da destruição de Sodoma e Gomorra, cidades onde a depravação reinava e, onde nem as crianças foram poupadas ao castigo divino; da construção da Torre de Babel pelos homens, numa altura em que todos falavam a mesma língua. O Senhor "disse que depois de nos termos posto a fazer a torre ninguém mais nos poderia impedir de fazer o que quiséssemos, por isso confundiu-nos as línguas e a partir daí, como vês, deixámos de entender-nos." Incapazes de se entenderem, os Homens espalharam-se pelo mundo e a Torre foi destruída pelo Senhor. No livro, Caim assiste a mais uns quantos caprichos do Senhor sendo que o último é o do grande dilúvio.

Neste livro, à semelhança de outros, Saramago não tem meias medidas, chama Deus de filho da **** e a páginas tanta diz: " (...) Lúcifer sabia bem o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito."
Saramago não escreve para ferir susceptibilidades, limita-se a escrever aquilo que pensa e com todo o direito o faz. Não tem medo de ser duro e, embora a polémica fosse de esperar, não acredito que o tenha escrito com esse propósito. Não acho que precise desse tipo de publicidade.
Nota-se nele alguma frustação por nem todos pensarem como ele, a crítica a Deus é aqui muito forte, sem contemplações, com alguma impaciência até. Muito mais rispído do que no O Evagelho Segundo Jesus Cristo. Mas senti o livro mais como o desabafo de um homem que já cá anda há muitos anos, que viveu e viu muita coisa e que se sente, de certa forma, impotente por não poder terminar com todas atrocidades que continuam a ser cometidas em nome de Deus e da religião.
Para os crentes este deve ser um livro difícil de ler por ferir crenças, mas também porque racionalmente ninguém pode discordar de algumas das afirmações que são feitas no livro.

Eu gostei muito do livro, não acho que seja dos melhores dele, se calhar por lhe faltar espaço para dar largas à imaginação, uma vez que a história da bíblia não saiu da sua cabeça, mas é na mesma um livro à Saramago.
Saramago é sempre recomendado, mas se o tema da religião vos é sensível, provavelmente irá ser um livro desagradável, por evidenciar o que de pior existe nas religiões. Mas será sempre uma leitura interessante de se fazer!

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