maio 18, 2025

[Ebook] À Espera do Dilúvio - Dolores Redondo

Título original: Esperando al Diluvio
Ano da edição original: 2022
Autor: Dolores Redondo
Tradução: Ana Maria Pinto da Silva
Editora: Planeta

"Entre 1968 e 1969, o assassino, que a imprensa batizou de John Biblia, matou três mulheres em Glasgow. Nunca foi identificado e o caso continua em aberto até hoje.
Neste romance, passado no início dos anos 80, Noah Scott Sherrington, investigador da polícia escocesa consegue localizar John Biblia, mas no momento de o prender sofre um ataque de coração. Apesar da sua saúde frágil, contra o conselho médico e a recusa dos seus superiores para que continue a perseguir o assassino em série, Noah segue um palpite que o levará a Bilbau, em 1983. Poucos dias antes de um dilúvio varrer a cidade.
Dolores Redondo define-se como «uma escritora de tempestades» e com este novo romance, baseado em factos reais, leva-nos ao epicentro de uma das maiores tempestades do século passado, ao mesmo tempo que retrata uma época de plena agitação política e social. É uma homenagem à cultura do trabalho, cheia de nostalgia de um tempo em que a rádio era uma das poucas janelas abertas para o mundo e, sobretudo, para a música. É também um hino à camaradagem e às histórias de amor que nascem de um capricho.
Uma obra deslumbrante com personagens que nos levam da mais terrível crueldade à esperança no ser humano."

Scott Sherrington, polícia de investigação escocês, vive obcecado por encontrar John Bíblia, um assassino em série, nunca identificado, que anda há décadas a assassinar jovens raparigas. Todas estas raparigas, partilham entre si o facto de estarem menstruadas na altura em que são assassinadas.

Quando Scott parece ter descoberto John Bíblia e se prepara o prender, sofre um ataque cardíaco fulminante. John foge e Scott quase morre, abandonado à beira do rio, num dia de chuva abundante. 
Scott acorda numa cama de hospital e não se lembra de quase nada. Lembra-se que encontrou John, tem a certeza de que era John Bíblia e depois, é só um espaço em branco. Não se lembra de mais nada.

No hospital Scott descobre que quase morreu e que o seu ataque cardíaco foi mais do que um ataque. Scott está gravemente doente, com um problema cardíaco intratável, que a qualquer momento o pode matar de vez. A sua situação clínica exige repouso, boa alimentação e zero stress, tudo aquilo que a vida de Scott não permite. 
Em estado de choque por todas estas novidades, com alguma dificuldade em aceitar a sentença de morte que lhe passaram no hospital, Scott só pensa em apanhar John Bíblia antes de morrer. Sente que mais ninguém o conseguirá fazer e ficar parado à espera que a morte decida que chegou a sua hora não lhe parece ser, sequer, uma opção.

Quando sai do hospital não perde tempo e retoma as investigações que o levam a Bilbau, para onde acredita que John Bíblia fugiu depois de quase ter sido preso por Scott.
Em Bilbau, uma cidade portuária, onde muita gente chega e de onde muita gente sai, Scott encontra pessoas duras e trabalhadoras, que gostam de se juntar para beber e relaxar ao fim de um dia de trabalho. Na verdade, Bilbau não é muito diferente de Glasgow, terra natal de Scott.

Chove copiosamente todos os dias e todo o dia. As pessoas são afáveis desde que não se sintam invadidas na sua privacidade e são genuinamente alegres e generosas não obstante a vida dura que levam.
Em Bilbau, sob disfarce, Scott conhece Maite, a dona de um bar perto da pensão onde está a viver. Apaixona-se por Maite, e luta contra o sentimento porque, na verdade, estando a morrer, não faz muito sentido arrastar outra pessoa para o fim triste que o espera.
Conhece Rafa, um jovem com 16/17 anos, com paralisia cerebral. É um miúdo solitário, discriminado pelos outros miúdos mas que se sente acolhido por Scott, adivinhando o que o trouxe ali e ansioso por poder ajudar.
Conhece ainda Mikael, uma espécie de polícia do sítio, que também acaba por se juntar a Scott e ajudá-lo na perseguição a John Bíblia.

À Espera do Dilúvio, é um policial típico, diria eu, e não digo isto de forma depreciativa. Tem momentos de grande tensão e descrições perturbadoras, que incomodam. Dolores Redondo faz isso bem, tem uma escrita que prende e a história principal está bastante bem construída.

Onde é que este livro me perdeu um pouco? No romance de faca e alguidar de Scott e Maite porque parece forçado. Um amor descoberto depois de uma sentença de morte, em que lhe deram meses, semanas, talvez dias de vida? Parece um pouco o enredo de um daqueles filmes que passam no Star Life, com atores bonitos, paisagens impecáveis, vidas perfeitas e zero argumento e representação. :p

Dispensava também as premonições e as partes mais espirituais de Scott. Não combina com ele, não sei. Parecem-me deslocadas e uma muleta para justificar alguns desenvolvimentos, como se a autora não tivesse capacidade para fazer de outra forma. 

Mas, tirando estes pormenores gostei muito da história e da forma como é contada. Da envolvente chuvosa, escura e húmida que concorre com a alegria dos bascos e com as festas da cidade que não são prejudicadas pela chuva incessante.

Não sendo este o meu género de eleição diria que é um bom livro, com uma boa história, bem escrito e que vale a pena ler. 

Boas leituras!

Excerto:
"Avançou escondendo-se atrás dos troncos e procurando entre o matagal os exíguos raios de luz da Lua, que de vez em quando se infiltravam por entre as densas nuvens de tempestade. O estrondo que as árvores faziam era fenomenal. Os ramos batiam uns de encontro aos outros e Scott Sherrington teve a sensação de que caíam por toda a parte pedaços da ramagem quebrada pela fúria do vento. Tentou concentrar-se; se não o fizesse, corria o risco de caminhar ao acaso e acabar na outra extremidade do bosque. Como se alguém tivesse escutado as suas preces, as luzes traseiras do Capri brilharam no escuro como os olhos de um monstro lendário. O terreno formava ali uma planície, e a folhagem espessa da árvore debaixo da qual Clyde havia estacionado parecia ter mantido o solo razoavelmente compacto à sua volta, mas pela ladeira inclinada atrás de si a água descia formando um pequeno regato natural de água lamacenta. As luzes dianteiras do carro projetavam-se na direção da margem iluminando as bátegas de chuva, que como cortinas embaladas pelo vento ondulavam diante dos faróis do Capri.
Scott Sherrington sobressaltou-se. Sem se dar conta, tinha-se aproximado muito, demasiado."

abril 27, 2025

No Caminho de Swann - Em Busca do Tempo Perdido (Vol. 1) - Marcel Proust

Título original: À La Recherche du Temp Perdu - Du Côté de Chez Swann
Ano da edição original: 1913
Autor: Marcel Proust
Tradução: Mário Quintana
Editora: Edição "Livros do Brasil"

Na geração que se segue a Verlaine, Marcel Proust (1871-1922) é a figura mais importante da literatura francesa.
Narrando uma série de acontecimentos, descrevendo uma cena ou catalogando o conteúdo da mente de uma personagem em qualquer momento, Proust seleciona incidentes, particularidades e pormenores que, na sua maioria, teriam sido omitidos em favor de outros, que Proust, por sua vez, despreza.
O resultado é a criação de um mundo novo e estranho. Assim, entramos nas páginas de Em Busca do Tempo Perdido como num reino inteiramente fora do comum.
A obra, que consta de sete romances, pode, realmente, ser comparada a uma peça sinfónica. Os grandes temas surgidos desde o início, ou apenas insinuados aqui e ali, são mais tarde retomados e inteiramente desenvolvidos, dentro da unidade do conjunto para o qual contribuem.
Sobre o fundo da sociedade francesa, Proust traça um panorama universal de insuperável plenitude.

O narrador, numa das muitas noites de insónias, relembra um tempo na infância e adolescência, em que passava temporadas em Combray, em casa dos avós e das tias-avós.

O narrador aparece-nos como um rapaz sensível, que se perde na contemplação da natureza exuberante, fascinado pelas figuras na igreja e pelas pessoas pitorescas com quem se cruza nos passeios que dá com os pais, pela aldeia.
Passa os dias a ler e a passear, rodeado de adultos, os pais, a avó e o avô, as tias-avós e as empregadas. Uma das tias centra em si toda a vida na casa. A tia-avó Leónia que quando enviuvou nunca mais saiu de casa. Caiu doente na cama não deixando, no entanto, de acompanhar a vida de todos em Combray. Da janela do seu quarto dá conta de tudo o que se passa na aldeia.

O narrador passa aqueles dias sem que outra criança faça parte da sua vida, dir-se-ia solitário, no entanto não é assim que nos é apresentado. Parece, durante o dia, uma criança feliz, rodeada de tudo o que o faz feliz.
De noite, quando os pais o mandam para a cama, e perde de vista a mãe, torna-se ansioso, como se receasse nunca mais a ver. Não consegue adormecer sem que a mãe lhe vá dar o último beijo do dia e, mesmo assim, passa a noite num estado de ansiedade que só desaparece com o nascer do dia. Durante o dia é como se a noite mal dormida nunca tivesse existido.

Swann é um homem jovem, visitante assíduo da casa dos avós. Os seus pais eram muito amigos da família e Swann é estimado mas, desde que casou abaixo da sua condição, a família do narrador afastou-se e é bastante crítica de Swann, que nunca traz a esposa ou a filha a casa dos avós. 
O que não impede que o nosso narrador tenha uma paixão platónica pela filha de Swann, uma rapariga que viu uma ou duas vezes e por quem ficou fascinado.

Na segunda parte do livro conhecemos Swann em Paris, uns anos antes do Swann que o nosso narrador conhece de Combray.
É um bon-vivant, muito bem relacionado, bem educado e culto. Um solteirão cobiçado na alta sociedade parisiense.

Swann conhece Odette, uma jovem mulher que chama a atenção de Swann não pela sua beleza mas pela forma humilde de demonstrar o amor por Swann. Sempre interessada no que tem para dizer e para aprender com ele. Swann não está particularmente interessado mas também não parece conseguir afastar-se de Odette e do seu estranho círculo de amizades.

Um dia Odette falha um compromisso com Swann e este, surpreendido com o pouco que sabe sobre aquela mulher, de quem achava que não gostava assim tanto, fica desesperado. Perplexo com tudo o que está a sentir, quando finalmente a encontra, entrega-se de corpo e alma ao que sente por Odette. Feliz por poder corresponder ao amor que acha que ela tem por ele.

A partir daquele dia Swann vai viver em função dos humores de Odette, que parece começar a esfriar um pouco em relação a Swann, sem nunca o afastar, mantem-no suficientemente enredado para que ele acabe sempre por ficar. 
Swann, aos poucos, começa a perceber algumas incoerências em Odette, tem a certeza que ela lhe mente e que o trai mas, sabe que não consegue afastar-se dela. Porquê? Não é bela, não é particularmente inteligente ou culta. O que leva Swann a sujeitar-se às humilhações? Porque leva tanto tempo a conseguir vislumbrar que continua a existir vida para além de Odette? 
Nesta parte do livro dei por mim a questionar quanto do que Swann sente e vivencia é efetivamente verdade. Nunca conhecemos a perspetiva de Odette no desenrolar dos acontecimentos. Vemos sempre Odette pelos olhos de Swann, apaixonado, ciumento, cheio de dúvidas e de inseguranças. 

Na terceira e última parte, voltamos ao nosso narrador, em Paris, ainda criança ou adolescente. O narrador tem uma idade que não consigo definir. Por um lado parece criança, vai brincar no parque acompanhado pela empregada, por outro lado tem pensamentos profundos que parecem pouco verosímeis em alguém que não seja mais adulto. 
Nesta terceira parte, o narrador reencontra a filha de Swann, no parque que começa a frequentar todos os dias. Obcecado com a menina, com quem passa a brincar todos os dias, imagina na sua cabeça, quando está longe dela, grandiosas e sentidas declarações de amor da parte dela. Vive angustiado com o pouco que conhece sobre a vida dela fora do parque e por não fazer parte dessa vida tão misteriosa.  Afinal os pais continuam a não querer misturas com a família Swann.

Parti sem grandes expectativas para este clássico de Proust que tem um nome no mínimo poético - Em Busca do Tempo Perdido. Achei que não ia gostar, que a leitura iria ser penosa. Não sendo uma leitura fácil, é um livro que tem um ritmo muito próprio, que não devemos contrariar. Quando estamos a sentir alguma impaciência, devemos parar de ler, porque não é um livro de leitura compulsiva, embora seja uma parede de texto, praticamente sem capítulos ou parágrafos. É difícil decidir onde parar de ler e sentia sempre que estava a interromper, de certa forma, a vida daquelas pessoas e a história que me estavam a contar.

Gostei da escrita, menos densa do que estava à espera, gostei das personagens e da forma como Proust as descreve. Gostei da história e das dinâmicas que se desenvolvem. Para primeira aproximação, acho que até correu bastante bem.
Vou avançar para o próximo volume, sem pressão.

Recomendo porque é um clássico. Não é um livro que se leia em qualquer altura da vida e não será para todos os gostos. Mas, honestamente, gostei bastante. É divertido e é intrigante.

Boas leituras!

Excerto (pág, 297):
"Depois daquelas noites de calma, aplacavam-se as suspeitas de Swann: bendizia Odette, e, logo na manhã seguinte, mandava-lhe as mais belas jóias, porque as atenções dela na véspera lhe haviam despertado ou gratidão, ou o desejo de vê-las renovarem-se, ou um paroxismo de amar que tinha necessidade de expandir-se.
Mas em outros instantes volvia-lhe o sofrimento, imaginava que Odette era amante de Forcheville e que, quando ambos o tinham visto, do fundo do landó dos Verdurin, no Bois, nas vésperas da reunião em Chatou a que não fora convidado, pedir-lhe em vão que voltasse com ele, com aquele ar de desespero que até o cocheiro observara, voltando depois sozinho e vencido, com certeza tivera Odette, para designá-lo a Forcheville e dizer-lhe: «Ele está furioso, hem!», o mesmo olhar, brilhante, malicioso, baixo e disfarçado, que no dia em que este correra com Saniette da casa dos Verdurin.
Swann detestava-a então. «Também sou um idiota», pensava ele, »pagando com o meu dinheiro o prazer dos outros. Bem fará ela em conter-se e não puxar muito a corda, pois eu poderei não lhe dar mais nada, absolutamente. Em todo o caso, renunciemos provisoriamente às gentilezas suplementares!"

março 09, 2025

[Ebook] A Amiga Genial - Elena Ferrante

Título original: 
L'Amica Geniale - Infancia, Adolescenza
Ano da edição original: 2011
Autor: Elena Ferrante
Tradução: Margarida Periquito
Editora: Relógio D'Água Editores

A Amiga Genial é a história de um encontro entre duas crianças de um bairro popular nos arredores de Nápoles e da sua amizade adolescente.
Elena conhece a sua amiga na primeira classe. Provêm ambas de famílias remediadas. O pai de Elena trabalha como porteiro na câmara municipal, o de Lila Cerullo é sapateiro.
Lila é bravia, sagaz, corajosa nas palavras e nas acções. Tem resposta pronta para tudo e age com uma determinação que a pacata e estudiosa Elena inveja.
Quando a desajeitada Lila se transforma numa adolescente que fascina os rapazes do bairro, Elena continua a procurar nela a sua inspiração.
O percurso de ambas separa-se quando, ao contrário de Lila, Elena continua os estudos liceais e Lila tem de lutar por si e pela sua família no bairro onde vive. Mas a sua amizade prossegue.
A Amiga Genial tem o andamento de uma grande narrativa popular, densa, veloz e desconcertante, ligeira e profunda, mostrando os conflitos familiares e amorosos numa sucessão de episódios que os leitores desejariam que nunca acabasse.

Elena e Lila vivem num bairro em Nápoles. Elena, filha de um porteiro municipal e Lila filha do sapateiro. Nunca saíram dos limites do bairro, apenas conhecem as pessoas do bairro e não fazem ideia de como é mundo para além do bairro.

Elena é uma miúda insegura, bonita e inteligente mas insegura. Lila é dura, muito inteligente, sem papas na língua, é rebelde e desafiadora. Parece não se importar com nada, não expressa sentimentos e não parece valorizar a amizade que Elena tem por ela.
Elena tem por Lila uma admiração sem limites e é a sua maior defensora. Vive e cresce, num carrossel de emoções, entre a felicidade de poder partilhar a vida com Lila e o medo que a amiga deixe de a achar interessante. O que a move é a aprovação de Lila, sentir que a amiga a admira ou até que a inveja.  Lila obriga-a a sair da sua zona de conforto. Por causa de Lila continua a estudar para além da instrução primária, por Lila, é a melhor aluna do liceu. Por Lila, é capaz de tudo.

Lila é uma miúda que cresce franzina, meio revoltada e que desabrocha tarde. É muito inteligente, com capacidades acima da média mas, ao contrário de Elena, não consegue que os pais a deixem continuar os estudos e acaba por não conseguir sair da vida castradora do bairro, que a condiciona e limita. Torna-se numa bonita rapariga que atrai todos, especialmente os rapazes. Todos querem namorar Lila e ela não quer namorar ninguém. Mas, nem Lila consegue escapar às teias apertadas que constituem a vida no bairro.

A história passa-se nos anos 50, após o fim da 2ª Guerra Mundial e o bairro é uma pequena comunidade, autossuficiente, onde todos têm um oficio. São pobres, vivem com dificuldade e a Itália acabou de sair de uma guerra. Todos se conhecem, os filhos brincam na rua e mais tarde casam-se uns com os outros. Os negócios passam de pais para filhos. Os meninos aprendem um ofício e as meninas ajudam as mães nas tarefas domésticas até terem idade, elas próprias para casarem e constituírem a sua própria família.
É um sítio violento onde se vive em permanente tensão. Existem quezílias entre famílias, por motivos políticos e não só. 
Os pais são pessoas secas, pouco habituadas a desmonstrações de afecto. Educam os filhos para serem trabalhadores, para ficarem junto deles e contribuírem para a economia da casa.
Só Lila parece destoar, quer ver o que existe para além das ruas do bairro, quer quebrar o ciclo de pobreza e Elena é arrastada pelas fantasias da amiga. Toma-as como suas. É por causa de Lila que provavelmente irá deixar o bairro para trás.

Tinha muitas expectativas para este livro. É um livro sobejamente conhecido que andou nas bocas de todo o mundo, adaptado à televisão pela Max (trailer aqui) e, embora tivesse muitas expectativas, a verdade é que, lá no fundo, sempre achei que talvez não fosse bem a minha praia.
Embora a envolvência seja interessante, com a descrição de Nápoles e com a caracterização das pessoas que habitam o bairro, que são, de certa forma, cativantes, no fim, não consegui sentir grande entusiamo pelo que me estava a ser contado. 
A vida de Lila e Elena pareceu-me aborrecida, repetitiva, com acontecimentos redundantes e, embora o livro até seja grande, parece que nada acontece, nada evolui e a obsessão de Elena por Lila torna-se cansativa. Não sei, a escrita não me pareceu especialmente inspirada e dei por mim a pensar, isto em série ou filme até é capaz de funcionar, mas como livro, não me entusiasma.

A Amiga Genial segue a vidas destas duas miúdas até à adolescência. Para sabermos o que a vida lhes reserva existem mais três livros: História do Novo Nome, A História de Quem Vai e de Quem Fica e História da Menina Perdida.  

Tenho pena de não ter achado nada de especial e, não sei se terei vontade de ler os outros três livros. Talvez me fique pela série.

Boas leituras!


Excerto:
"A nossa amizade começou no dia em que eu e Lila decidimos subir a escadas escuras que, degrau após  degrau, lanço a pós lanço, iam até à porta do apartamento de dom Achille.
Lembro-me da luz violácea do pátio, dos odores de um entardecer ameno de Primavera. As mães estavam a fazer o jantar, eram horas de ir para casa, mas nós deixámo-nos ficar, dando provas de coragem ao desafio, sem dizermos uma palavra. Havia algum tempo que não fazíamos outra coisa, dentro e fora da escola. Lila enfiava a mão e o braço inteiro na escuridão de uma boca de esgoto, e eu fazia o mesmo logo a seguir, com o coração aos saltos, esperando que as baratas não me subissem pela pele e que os ratos não me mordessem.
Lila trepava até à janela do rés-do-chão da senhora Spagnoulo, pendurava-se da barra de ferro a que estava preso o arame da roupa, balançava-se e depois deixava-se cair para o passeio, e eu em seguida fazia o mesmo, embora com medo de cair e de me magoar. Lila espetava sob a pele o alfinete de segurança ferrugento que achara na rua sei lá quando, mas que guardava na algibeira como se fosse o presente de uma fada; eu observava a ponta de metal a abrir-lhe um túnel esbranquiçado na palma da mão, e depois, quando ela o retirava e mo estendia, fazia a mesma coisa.
A certa altura lançou-me um olhar dos dela, firme, de olhos semicerrados, e dirigiu-se para o prédio onde morava dom Achille. Gelei de medo. Dom Achille era o papão das histórias infantis, estava terminantemente proibida de me aproximar dele, de lhe falar, de olhar para ele, de o espiar, tinha de agir como se ele e a família não existissem."

fevereiro 22, 2025

[Ebook] El Descontento - Beatriz Serrano

Título original: 
El Descontento
Ano da edição original: 2023
Autor: Beatriz Serrano
Editora: Temas de Hoy

"La presentadora del pódcast Arsénico Caviar y ganadora del Ondas, debuta con una afilada novela sobre una mujer harta del trabajo. El descontento es la historia de Marisa, una mujer en la treintena que vive anestesiada mediante orfidales y vídeos de Youtube. Solo así es capaz de soportar las rutinas y pesares de su día a día en una agencia de publicidad a la que tan solo acude presencialmente para ahorrar dinero en aire acondicionado durante el sofocante agosto madrileño. Marisa odia el trabajo. Sin embargo, no puede dejarlo: le gustan demasiado las cosas bonitas. La semana previa a un team building organizado por su empresa, la ansiedad de Marisa se dispara; compartir un fin de semana entero con sus compañeros de oficina le resulta insoportable, y el recuerdo enterrado de una tragedia ocurrida en la oficina tiempo atrás vuelve para atormentarla. A medida que pasan los días, su máscara social, tan cuidada y pulida a lo largo de los años, se irá resquebrajando hasta hacerlo volar todo por los aires. Esta es una novela sobre las crisis vividas por cualquier persona que trabaja. Sobre la soledad, la necesidad de vínculos y conexiones y de encontrar la chispa para no tirarse delante de un autobús un lunes por la mañana."

El Descontento é uma história dos tempos modernos. Uma jovem, do meio criativo e publicitário, odeia de forma visceral tudo o que diz respeito ao seu trabalho. Odeia o escritório e todos os seus rituais, odeia os colegas, que mal conhece e que não quer conhecer. Odeia a vida acelerada, as horas desperdiçadas a fingir que está a ser produtiva. Odeia o fingimento de todos e odeia a hipocrisia de todos acharem que o que fazem é importante e que pode mudar o mundo.

Vive atormentada com a sensação de desperdício da sua vida mas, ao mesmo tempo não parece ter motivação para alterar nada. Não pensa em despedir-se, não vocaliza o seu desespero, não tenta fazer diferente de todos os outros que critica. Aparece todos os dias, participa nos rituais, faz o que acha que esperam dela e, deve estar a fazer alguma coisa bem, porque vai sendo promovida e olham para ela como uma espécie de referência na área. Se ao menos pudessem ouvir tudo que lhe passa pela cabeça...

Vamos acompanhando o dia-a-dia de Marisa, a ansiedade de que sofre, a angústia, os pensamentos homicidas e suicidas, a tristeza e a solidão que a acompanham desde que se lembra mas que piorou com a morte da única colega de trabalho que parecia compreende-la. É viciada em vídeos de Youtube, aos quais recorre para tudo na sua vida, para dormir, para relaxar, para "roubar" ideias para o seu trabalho, para aprender pequenos factos sobre tudo e sobre nada. Parece que toda a sua experiência de vida está ligada a um vídeo que viu no Youtube.

Quando a empresa onde trabalha decide organizar um team building, que implicará um fim-de-semana fora com todos os seus colegas de trabalho, Marisa parece começar a ceder à pressão e, embora acabe por perceber que os colegas a podem surpreender pela positiva, o estado mental de Marisa não lhe permite aproveitar o momento.

Parece um livro deprimente mas, a forma como Beatriz Serrano nos expõe os pensamento de Marisa é divertida e com muita ironia à mistura. Embora seja um livro leve, com uma escrita bastante oral, que me permitiu lê-lo na língua original sem grandes dificuldades, está ao mesmo tempo carregado de uma ansiedade, de uma tristeza e de uma espécie de desespero que o bom humor da escrita apenas atenua.

É um livro que nos faz pensar e com o qual todos nós nos conseguimos identificar, de alguma forma.

Gostei bastante. Da escrita, que aproxima Marisa de todos nós, do sentido de humor e, da forma como a história se desenrola. 

Recomendo. Se estiverem numa fase má na vossa vida profissional, recomendo precaução porque, pode ajudar a aligeirar mas também pode piorar o vosso estado mental. :)

Boas leituras!

Excerto:
"Observo a mi jefe con ganas de estamparle la mandarina en la cara. Me resulta increíble que haya sido capaz de encontrar él solo a dos personas sin piernas pero necesite mi ayuda para encontrar a una mujer.
 - De qué tipo? - pregunto intentando no mostrarme demasiado irritada.
 - No lo tengo claro - dice de manera pensativa -, quizás una mujer que pueda empoderar a otras mujeres, pero también a los hombres.
 - Ajá.
Repaso mi lista mental de vídeos de YouTube, de charlas y ponencias feministas con oradoras excelentes que me he puesto antes de dormir y pienso en las que puedan resultar más descafeinadas, más amables, más empresariales. Una parte de mí se muere del asco, como si estuviera traicionando a mi proprio género.
«Empoderar a los hombres», como si les hiciera falta creerse todavía más su poder. Pienso em charlas sobre brecha salarial, sobre por qué las mujeres abandonan su carrera para cuidar de sus hijos o sobre la carga mental que suponen las tareas del hogar. Pienso en charlas sobre destruir el género, el sexo, el patriarcado. Pienso en charlas sobre el machismo en el lugar de trabajo, sobre la necesidad de políticas igualitarias mejor aplicadas o sobre la falta de compromiso real en las empresas en temas de igualdad. Sé que mi jefe no busca eso, sino que busca una oradora tipo de género feminimo que pueda llenar una hora de tiempo haciendo un montón de variaciones de la frase «Querer es poder». Como todos los demás, tengan o no tengan piernas. Lo único que me pide es una mujer. Cualquier mujer. Quiere llevar a una ponente para que no salten las alarmas, para cubrirse las espaldas, para salvar la reputación. Que se joda. Le lanzo dos nombres de dos charlas que he visto últimamente.
 - La primera de ellas es terapeuta menstrual. - Veo como sus ojos se abren de par en par pero anota su nombre - No te asustes, simplesmente enseña a entender los ciclos menstruales para sacarles mayor partido alegando que a las mujeres nunca se han explicado cómo funciona nuestro ciclo; por ejemplo, dependiendo del momento hormonal en el que estés pudes ser más creativa o estar más encerrada en ti misma o ser más agresiva, y eso puede beneficiarte en tu día a día.
 - Y eso puede servir a los hombres?
 - Bueno, creo que si pueden empatizar con un señor sin piernas también podrán empatizar con una mujer con la regla.
Ramón toma nota, aunque no parece muy convecido.
 - La segunda de ellas es una mujer trans que fue prostituta y ahora escribe, produce y dirige su propria serie en HBO. Tiene un monólogo muy interesante en YouTube que se titula «A mí también me suda el coño», échale un vistazo."

fevereiro 16, 2025

A Carne - Rosa Montero

Título original: 
La Carne
Ano da edição original: 2016
Autor: Rosa Montero
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Numa noite, Soledad contrata um gigolô para que a acompanhe a um espetáculo de ópera, um ardil, na verdade, que não é mais do que uma tentativa de provocação a um ex-amante. No entanto, um violento e imprevisível incidente alterará por completo o curso daquela noite e marcará o início, entre ambos, de uma relação vulcânica, inquietante, e talvez perigosa. Ela tem sessenta anos; o gigolô trinta e dois. Começa o jogo...
A narração desta aventura irá mesclar-se  com as histórias dos escritores malditos da exposição que Soledad se encontra a preparar para a Biblioteca Nacional - e ser maldito é «desejarmos ser como os outros mas não conseguirmos, querer que nos amem mas só causarmos medo, talvez riso, não suportarmos a vida e, sobretudo, não nos suportarmos a nós próprios».
Como a própria Soledad, talvez?
Devorar ou ser devorado: A Carne é um romance audaz e surpreendente, o mais livre e pessoal de todos os que Rosa Montero já escreveu, que nos fala do passar dos anos, do medo da morte, da necessidade de amar e da gloriosa tirania do sexo. Tudo através da voz de uma eterna sedutora, apanhada de surpresa pelo seu próprio envelhecimento."

Soledad acabou de fazer 60 anos e, apesar da idade, é uma mulher ativa, que cuida de si, faz exercício e  continua a trabalhar.

Parece viver atormentada pela decadência do corpo. Sente que, por mais que se esforce, há uma altura em que o corpo deixa de obedecer e não há nada que se possa fazer.

Namorou e continua a namorar muito mas, amar, nunca amou e sente que nunca foi verdadeiramente amada. Talvez por isso, nunca tenha casado e também não tem filhos. 

Gosta de homens bonitos e mais novos. Não se imagina com alguém da sua idade vivendo permanentemente com medo da rejeição, de não corresponder às expetativas dos amantes mais jovens. É obsessiva e ciumenta, o que a leva a fazer e a dizer coisas que a tornam um pouco assustadora mas não é má pessoa. Está a passar por uma fase menos boa e está a sentir alguma dificuldade em ajustar-se.
 
Soledad, é uma mulher que recusa envelhecer, que é carente e insegura e começa a sentir medo de ficar sozinha. Por isso coloca nas suas relações amorosas todas as suas esperanças, quer amar e ser amada.

Mais um livro de Rosa Montero que surpreende, pela história em si, pelo tema e pelas referências a escritores e às suas vidas malditas. A escrita só surpreende quem nunca leu Rosa Montero, porque para quem já leu, a qualidade é aquela à qual a escritora já nos habituou.

Recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras!


Excerto (pág. 21):
"Peitos redondos, pequenos, um pouco descaídos, logicamente, mas ainda bonitos. Corpo trabalhado no ginásio. Tudo natural. Sessenta anos. Para sessenta anos não estava nada mal. Mas, claro, a partir desse dia era o raio de uma sexagenária. Esticou um braço e acendeu a luz. O foco do closet acendeu-se por cima dela e todas as suas carnes, antes aceitavelmente rijas com a iluminação indireta, pareceram vir abaixo de repente, como que submetidas a uma força de gravidade 3G, revelando ondas, concavidades, rugas, decadência muscular. Observou-se lentamente ao espelho, sem compaixão. «O corpo é uma coisa terrível», disse em voz alta, ou seja, num monólogo, que é uma maneira de demonstrar loucura.
Efetivamente, o corpo era uma coisa terrível. A velhice e a deterioração escondiam-se, insidiosamente e, com frequência, o interessado era o último a saber, como os cornudos do teatro clássico. Por exemplo, às vezes, no Retiro, alguma trintona com calções muito curtos corria à sua frente, visivelmente satisfeita com as suas coxas, ignorando que, na realidade, já estavam a encher-se de celulite e que, sob a luz daquele sol inclemente, revelavam um aspeto bastante penoso.
Soledad corria com calças, evidentemente.
Carme traidora, carne inimiga, que nos tornava prisioneiras da sua derrota. Ou prisioneiros, porque os homens também descobriam, de repente, na perspetiva de uma espelho, um pescoço cheio de peles de galápago, por exemplo. Para além dos problemas da próstata ou do pavor de não estarem aptos para as lides amorosas. A carne tirana escravizava todos.
Apagou o foco. Também não valia a pena ser masoquista, sobretudo no dia em que fazia sessenta anos."

janeiro 12, 2025

Maria Judite de Carvalho - Obras Completas Vol lI

Título: Obras Completas Maria Judite de Carvalho vol.II - Paisagem Sem Barcos | Os Armários Vazios | O Seu Amor por Etel
Ano da edição original: 1963 / 1967
Autor: Maria Judite de Carvalho
Editora: Minotauro

A presente coleção reúne a obra completa de Maria Judite de Carvalho, considerada uma das escritoras mais marcantes da literatura portuguesa do século XX. Herdeira do existencialismo e do nouveau roman, a sua voz permanece intemporal, tratando com mestria e um sentido de humor único temas fundamentais, como a solidão da vida na cidade e a angústia e o desespero espelhados no seu quotidiano anónimo. Observadora exímia, as suas personagens revelam o ritmo fervilhante de uma vida avassalada por multidões, mas sempre reclusas em si mesmas, separadas por um monólogo da alma infinito.

O segundo volume reúne duas coletâneas de contos - Paisagem sem Barcos (1963) e O seu Amor por Etel (1967) - e uma novela - Os Armários Vazios (1966).

Mais um volume a não perder da Maria Judite de Carvalho. Acho que será mais eficaz se vos deixar excertos de alguns dos textos que compõem este segundo volume das Obras Completas desta escritora surpreendente.

Leiam que não se vão arrepender.

Boas leituras!

Paisagem Sem Barcos (pág. 31)
"Quando deixara ele de ser ele? Perdera-se pelo caminho e só ficara como recordação para a posteridade a sua imutável efigie em cera. Uma figura falante, era verdade, mas porque não seriam falantes as figuras de cera, desde que as palavras que dissessem fossem de cera também? Havia qualquer coisa nele... Não sabia bem explicar; assim de repente nunca soube explicar coisa nenhuma, nem mesmo a sim própria, em silêncio. Era preciso observá-lo com atenção, deitar fora toda a subjetividade, estudá-lo por alguns momentos com um olhar frio crítico. O olhar aquoso que-fora-azul por detrás dos óculos de tartaruga, o nariz direito, a boca grande e delgada, quase sem lábios, de cantos profundos, o queixo largo, as mãos perfeitas, o fato de bom corte. Que mais? Não muito, certamente, porque ele se fora transformando com o tempo numa efigie, a sua. Lá dentro, numa espécie de nife, havia várias camadas secretas, sobrepostas, bem escondidas. Jô tinha-as conhecido, mas não sabia se algumas delas ainda existiam ou se haviam sido asfixiadas pela carapaça exterior. Não sabia e nunca viria a sabê-lo, pensou. Era tarde demais."

Anica nesse tempo (pág. 99)
"O major ria ainda, sem bem saber de quê. Ria por mimetismo ou por fraqueza. Por receio de não colaborar. «Sou um fraco», pensou melancolicamente. «Sempre o fui. Que teria sido de mim numa guerra? Ou num país ocupado? Que teria feito se fosse necessário fazer qualquer coisa, sair do rebanho?» Estava farto, ansioso por se encontrar sozinho em casa. Aquilo acontecia-lhe quase sempre em sociedade. Ter a visão nítida de que à sua volta todos representavam um papel importante ou secundário, mas de antemão escolhido, e só ele desmanchava o conjunto passeando por entre os artistas, sem maquilhagem nem trajo adequado, nem frase para dizer no momento próprio, só ele estragava o espetáculo como um dia, em menino, quando durante a festa do colégio atravessara, a correr e soltando gritos agudos de índio sioux, o palco onde uma rapariguinha de cara de lua declamava com trémulos na voz: «Meus amigos e meus parentes, eu sou uma pobre viúva a quem Deus privou de toda a força e amparo neste mundo.» Nesse dia, porém, tinham-no aplaudido - fora tão inesperado - enquanto a menina, embrião de atriz, tinha uma violenta crise de choro. Agora não lhe davam palmas, não. Achavam-no certamente impopular, criticavam-no talvez quando voltavas as costas, falavam, era natural, de Luísa e talvez «a compreendessem»."

Os Armários Vazios (pág. 139)
"Foi um dia de Primavera que começou e acabou como todos os outros, pelo menos aparentemente, diria ela, ou, melhor, era natural que o pensasse; nunca foi pessoa de muitas falas. Dizia o necessário, mas reduzido ao mínimo indispensável, ou então um necessário que depressa se cansava, se detinha a meio caminho, como se ela se desse subitamente conta de que não valia a pena prosseguir, porque isso era um esforço inútil. Ficava então quieta, sem gestos, hesitante à beira das reticências como alguém à beira de água de inverno, e nesses momentos o seu olhar perdia todo o brilho, era como se um mata-borrão o houvesse absorvido, talvez ainda seja assim, não sei, nunca mais a vi. Durante muito tempo não consegui perceber que esses desmaios, porque o eram, a conduziam invariavelmente ao mesmo lugar, ou, melhor, à mesma pessoa, à mesma imagem danificada de pessoa, porque, como já disse, não era mulher que se confessasse. As palavras não lhe serviam para explicar o seu pensamento, aperfeiçoando-o ou disfarçando-o, como é mais ou menos hábito de toda a gente. Só as utilizava, e em última instância, para dizer o que era urgente."

O Seu Amor por Etel (pág. 247)
"Nos dias em que se travavam esses diálogos mais ou menos tontos, mas para ele tão preciosos, regressava sempre a casa calado e amargo após o entusiasmo, e com uma grande vontade de morrer. Eram os dias em que, fechado à chave no seu quarto modesto, passava em revista, estudando-lhes os prós e os contras - primeiro uns, depois os outros -, todas as possibilidades de pôr termo àquela existência  morna e sem interesse onde nunca haveria Etel: os gás, os pulsos cortados com uma lâmina, o tubo da Aspirina. Pensava também, minuciosamente , recitando a meia voz algumas frases mais significativas, na carta que escreveria a Etel nos últimos instantes, confessando-lhe o seu desesperado amor. Estacava sempre, porém, a boa distância do precipício. Tentava-o, afinal de contas, a vida ainda não vivida e o desejo de tornar a ver Etel, de falar novamente com ela, mesmo de assuntos superficiais e dolorosos, que nunca conduziriam a nada.
Em dias mais serenos, sobretudo quando não a encontrara, conseguia encarar, quase friamente e com a objetividade necessária, o seu caso, e mesmo troçar um pouco de si próprio. Como podia Etel amá-lo?, pensava nesses dias. Era feio, pobre, de baixa condição. Nunca fora excecional em coisa alguma, e na escola comercial ia passando à justa. Ora não havia na cidade, por mais que pensasse, ninguém que merecesse Etel. Se ela gostasse dele, não seria quem era. Porque não afastar então esse estúpido sonho que tomara posse do seu corpo e do seu coração?"

janeiro 02, 2025

Deuses Americanos - Neil Gaiman

Título original: American Gods
Ano da edição original: 2001
Autor: Neil Gaiman
Tradução: Fátima Andrade
Editora: Editorial Presença

"A poucos dias de sair da prisão, sombra quer apenas desfrutar de alguma tranquilidade junto da sua mulher, Laura. o destino, porém, reserva-lhe outros planos.
Quando recebe a notícia de que Laura morreu num acidente de viação, Sombra não tem outra alternativa senão aceitar o trabalho que um desconhecido, Sr. Quarta-Feira, lhe oferece. Mas cedo percebe que o trabalho e o próprio Quarta-feira pouco têm em comum, já que o ultimo é a encarnação de um dos deuses antigos que se encontram em vias de extinção por estarem a ser ultrapassados por ídolos modernos.
Sombra e Quarta-Feira têm assim a missão de reunir o maior número de divindades para se prepararem para o conflito iminente que paira no horizonte, mas esperam-nos inúmeras surpresas insólitas…
Bestseller distinguido com diversos prémios e adaptado com enorme êxito à televisão, Deuses Americanos é uma Aventura onde o mágico e o mundano, o mito e o real caminham lado a lado, levando-nos numa viagem repleta de humor ao extraordinário potencial da imaginação humana."

Confesso a minha dificuldade em escrever sobre este livro porque me parece que vai ser tudo superficial. Tenho a impressão de que há camadas e camadas que me passaram ao lado e, para dizer a verdade, também não tenho pretensões de colocar a descoberto. Por isso, de uma forma muito leve e descontraída, é um livro sobre deuses e a sua luta por se manterem relevantes na vida dos humanos. Deuses antigos, que os humanos levaram com eles na suas migrações, em particular para os Estados Unidos da América e que, com o tempo foram esquecendo. 
Deixaram de lhes prestar homenagem, de os adorar e de oferecerem algo em sacrifício. Os Deuses, sem grande surpresa, são retratados como seres egocêntricos, pouco benevolentes e capazes de tudo para sobreviver a estes tempos modernos.

O livro lê-se muito bem. Tem uma carrada de referências mitológicas, às diversas divindades e rituais mas, como está tudo enquadrado de uma forma mais real, porque estes deuses circulam entre nós com forma humana, não se sente esse peso. 
Isto, envolvido na história dos Estados Unidos, com muito sentido de humor à mistura e uma boa escrita, tornaram este livro, primeiro, uma surpresa, e depois um prazer.

Gostei da imaginação, agarrada à realidade, e da forma como vai desenrolando a história e nos vai conseguindo manter envolvidos e entretidos. Gostei muito, tanto que já cá tenho mais dois do Neil Gaiman para ler um dia destes - Mitologia Nórdica e Os Filhos de Anansi.

Recomendo sem qualquer hesitação. Acho que não perdem nada em experimentar.

Boas leituras!

Excerto (pág. 32):
"O homem abriu os olhos. Havia algo de estranho neles, pensou Sombra. Um era de um cinzento mais escuro do que o outro. O desconhecido voltou-se para ele:
- A propósito, lamento as notícias sobre a tua mulher, Sombra. Foi uma grande perda.
Nesse momento, Sombra quase lhe bateu. Mas, em vez disso, respirou fundo. («É como te digo, não irrites as cabras dos aeroportos», dizia a voz de Johnnie Larch algures na sua memória, «ou vens malhar com os ossos outra vez cá dentro enquanto o diabo esfrega um olho.») Contou até cinco.
- Eu também lamento - retorquiu.
O homem abanou a cabeça:
- Se ao menos pudesse ter sido de outro modo - comentou, com um suspiro.
- Morreu num acidente de automóvel - disse Sombra - Há maneiras piores de se morrer.
O homem abanou lentamente a cabeça. Por um instante, Sombra teve a sensação de que ele era insubstancial, como se o avião se tivesse tornado subitamente mais real, enquanto o seu vizinho perdia realidade.
- Sombra - disse o homem. - Isto não é uma brincadeira. Não é um truque. Posso pagar-te mais do que aquilo que ganharias em qualquer outro emprego. És um ex-recluso. Não haverá propriamente uma quantidade de gente a acotovelar-se para te contratar.
- Senhor Como-Raio-Se-Chama - disse Sombra, numa voz apenas audível acima do zumbido dos motores -, nem por todo o dinheiro do mundo.
O sorriso do homem abriu-se ainda mais. Sombra deu por si a recordar um documentário sobre chimpanzés. Segundo esse documentário, quando os chimpanzés e outros símios sorriem, fazem-no apenas para mostrarem os dentes, num esgar de ódio, agressividade ou medo. O sorriso de um chimpanzé é uma ameaça.
- Vem trabalhar para mim. É possível que haja alguns riscos, bem entendido, mas, se sobreviveres, poderás ter tudo o que quiseres. Poderás ser o próximo rei da América. Como vês, quem irá +agar-te tão bem? Heim?
- Quem é você? - inquiriu Sombra.
- Ah, sim. A era da informação... minha senhora, pode trazer-me outro copo de Jack Daniel's? Não abuse do gelo... não, claro que nunca houve outro tipo de era. Informação e conhecimento: duas divisas que nunca passaram de moda.
- Perguntei-lhe quem é.
- Vejamos... Bem, tendo em conta que não há dúvidas de que hoje é o meu dia, porque não me chamas Quarta-Feira? Senhor Quarta-Feira. Embora, considerando o tempo que está, até podia ser quinta-feira, heim?"