Bibiana e Belonísia são filhas de trabalhadores de uma fazenda no Sertão da Bahia, descendentes de escravos para quem a abolição nunca passou de uma data marcada no calendário. Intrigadas com uma mala misteriosa sob a cama da avó, pagam o atrevimento de lhe pôr a mão com um acidente que mudará para sempre as suas vidas, tornando-as tão dependentes que uma será até a voz da outra.
Porém, com o avançar dos anos, a proximidade vai desfazer-se com a perspectiva que cada uma tem sobre o que as rodeia: enquanto Belonísia parece satisfeita com o trabalho na fazenda e os encantos do pai, Zeca Chapéu Grande, entre velas, incensos e ladainhas, Bibiana percebe desde cedo a injustiça da servidão que há três décadas é imposta à família e decide lutar pelo direito à terra e a emancipação dos trabalhadores. Para isso, porém, é obrigada a partir, separando-se da irmã.
Numa trama tecida de segredos antigos que têm quase sempre mulheres por protagonistas, e à sombra de desigualdades que se estendem até hoje no Brasil, Torto Arado é um romance polifónico belo e comovente que conta uma história de vida e morte, combate e redenção, de personagens que atravessaram o tempo sem nunca conseguirem sair do anonimato.
Bibiana e Belonísia são irmãs, e é através delas que a história vai ser contada. As duas são filhas do curandeiro da fazenda onde a família vive e trabalha desde sempre. O pai. conciliador e ponderado, era respeitado por todos. Fazia partos, curava doenças e dava voz aos Encantados, os espíritos antigos que vagueavam pelo mundo, tão mais poderosos quanto o culto que os humanos lhes faziam.
Depois de um acontecimento trágico, que marca a vidas das duas irmãs, as duas seguem juntas, cada vez mais unidas. A adolescência afasta-as, cada uma com dificuldade em perceber a outra, inseguras e com visões aparentemente diferentes da vida que as espera. Seguem separadas mas a ligação que as une, o afeto que têm uma pela outra nunca desparece e, a vida tratará de as voltar a unir.
Belonísia gosta de trabalhar a terra, gosta de aprender com o pai. Não espera muito da vida. É pensativa, sossegada. Tem medo de perturbar o meio que a rodeia e das consequências que isso pode trazer. Só depois de muito sofrimento é que se vai encontrar, conhecer-se a si própria e ganhar o seu espaço no mundo.
Bibiana, também influenciada pelo futuro marido, começa a questionar as condições em que vivem. O facto de continuarem a trabalhar de graça, sem terem nada de seu. Sem qualquer possibilidade de sequer sonharem a terem uma vida diferente.
Acaba por ir embora com o marido. Querem melhorar as suas vidas e ajudar todos os outros a terem condições para seguirem o caminho que quiserem, para que o único caminho não seja o herdado pelos pais - trabalharem uma terra que não é deles, terem uma casa que não permitia criar raízes, casarem e continuarem a gerar trabalhadores para a fazenda.
A história segue a vidas destas duas irmãs, descendentes de escravos libertados, dezenas de milhar de pessoas que foram libertadas sem qualquer apoio ou plano de integração. Sem terra, sem dinheiro e sem saber ler, andavam de terra em terra em busca de morada. Um sítio onde pudessem trabalhar as terras do proprietário e, em troca, poder construir uma casa, que não podia ser de pedra. Tinham também autorização para, nos poucos tempos livres, plantar para eles próprios, para comerem ou para venderem.
Estas foram as condições que os escravos libertos encontraram quando a escravatura foi abolida.
Conquistaram a liberdade de poderem ir embora para onde quisessem, quando quisessem, no entanto, quão livre é uma pessoa que não tem casa e que não recebe dinheiro pelo seu trabalho? Quão livre é alguém a quem foi negada educação?
Torto Arado está muito bem escrito e com personagens que são impactantes. Consegue passar a ideia das dificuldades que viviam, a violência latente, o preconceito, a acomodação ao conhecido a dificuldade em quere fazer diferente e quebrar o ciclo.
Vou regressar a Itamar Vieira Júnior, não tenho dúvidas sobre isso e, por isso, só posso recomendar.
Boas leituras!
Excerto:
"Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento.
Esse dia vive em minha memória. Não se apaga nem se afasta ainda que envelheça. O sol era tão forte que quase tudo ao alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intenda do céu sem nuvens. Meu pai retirou o chapéu, calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lavava seu rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grandes manchas em sua camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o seu chapéu largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. «Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento», apertou os olhos olhando para a cova diante de seus pés, «aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho "moço, o senhor me dá morada?"». De pronto seu olho se ergueu para meu irmão, «Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu». Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços. «O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa.» Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um cigarro. «Está vendo esse mundão de terra aí? O olho cresce. O homem quer mais. Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão? Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa que a gente trabalha. Essa terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada.»"
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