agosto 19, 2012

A Idade do Ferro - J. M. Coetzee

Título original: Age of Iron
Ano da edição original: 1990
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: Ana Luísa Faria
Editora: Publicações Dom Quixote

"Na Cidade do Cabo, uma mulher, idosa e só, está a morrer de cancro. Durante toda a sua vida, conseguiu distanciar-se dos horrores e da violência do apartheid. No final dos dias, porém, é obrigada a confrontar-se com as dramáticas brutalidades forjadas por um regime a que sempre se opôs. A Idade do Ferro retrata a situação de muitos sul-africanos que se viram mergulhados num clima de tensão social a que não estavam habituados nem previam; mas, ao mesmo tempo, é uma perturbante metáfora sobre um regime político que se sustentou pela injustiça até provocar uma irrupção de revolta que a todos atingiu."

Este é o segundo livro que leio de J. M. Coetzee e é com este pequeno livro que Coetzee confirma que merece um lugar de destaque nas minhas estantes. Em No Coração Desta Terra (já comentado aqui), fui surpreendida por uma personagem feminina extraordinária e difícil de esquecer. Neste A Idade do Ferro, temos novamente uma mulher que me vai acompanhar durante uns tempos. :) Coetzee é bom com as personagens femininas, estou a ver. Aliando a isto histórias muitíssimo bem contadas, a leitura dos seus livros só pode acabar por ser uma experiência muito intensa.

Em A Idade do Ferro, Coetzee leva-nos até à África do Sul do Apartheid. Um país que, à semelhança de muitos outros países africanos, tem tudo para ser líder mas, quando escolhem o caminho da ignorância, da injustiça e da desigualdade, perpetuando atitudes racistas e desumanas, geram violência, medo e morte e zero de liderança e desenvolvimento.
Na Cidade do Cabo vive Mrs Curren, uma senhora idosa, que está a morrer com cancro. No dia em que o médico que lhe diz que não irá sobreviver à doença, conhece Vercueil, um sem-abrigo que escolheu o seu jardim para se abrigar. A idosa vive sozinha, a filha emigrou para os EUA, amargurada e desiludida com o país que deixou de reconhecer como seu. Partiu e nunca mais regressou. Quando Mrs Curren encontra o desconhecido no seu jardim, a primeira atitude é expulsá-lo da sua propriedade, no entanto a reacção do homem é de total indiferença e apatia, o que deixa a velha senhora sem reacção.
Sem que ninguém o pudesse prever, inicia-se ali uma relação estranha entre os dois a que só podemos chamar de amizade mais para o fim do livro. Ela vê nele uma companhia para a sua solidão, despertando nela curiosidade. Vercueil intriga-a e mantêm-a interessada na vida. Acredita, até ao fim que Vercueil foi enviado para a ajudar a morrer, para tornar a sua despedida do mundo menos dolorosa. No que a ele diz respeito, não se percebe muito bem o que ele quer. Inicialmente, talvez tenha visto nela segurança, no entanto, à sua maneira, acaba por gostar dela e da sua crescente loucura. Talvez vá ficando porque se sente útil na cada vez maior fragilidade da senhora. Na realidade é muito difícil não gostar dela... :)

Numa longa carta que decide escrever à filha, onde relata os seus últimos meses?, semanas? de vida, vamos descobrindo o estado a que o país chegou. A crescente revolta dos negros com a natural violência que isso acarreta. Os jovens negros que lutam, com as armas que têm e conhecem, por uma vida melhor para todos e que, à conta disso não têm infância, crescem demasiado rápido, tornam-se frios e distantes, perdendo valores como o respeito pelos mais velhos. São quase orfãos todos eles... São no entanto o orgulho dos pais que vêem neles a esperança de dias melhores, mesmo que isso signifique perde-los na luta. São heróis para a comunidade negra e uns arruaceiros para a comunidade branca que governa o país. Mrs Curren é confrontada com esta realidade, da qual se conseguiu manter afastada quase toda a sua vida, quando Florence, a sua empregada, traz para sua casa o filho adolescente, Bheki, com o intuito de o afastar das zonas de maior violência.

Paralelamente a isto, Mrs Curren vai descrevendo à filha a sua crescente degradação física e mental, com momentos de pura confusão e alheamento, devido à medicação forte que toma para deixar de sentir dor. Esta é uma mulher extraordinária que vale a pena conhecer. Só nos seus piores momentos perde a vontade de viver, numa luta perdida à partida, contra a morte.
É  um relato apaixonado e muitas vezes incómodo, do caminho que é feito até ao dia em que a morte a decide levar. E é, também, um relato impressionante de uma luta desigual que condenou à morte muita gente, que permitiu conquistas que são, ainda hoje, tão frágeis. Um relato contado na perspectiva de alguém que, vivendo ali nunca se tinha apercebido da dimensão do problema.

Gostei imenso deste livro que, sendo tão pequeno consegue falar de coisas tão grandes e importantes. Gosto muito da escrita de Coetzee, gosto muito das histórias que conta e gosto muito das personagens que cria, principalmente das personagens femininas.

Gosto e recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras!


Excertos, de entre os muitos possíveis:
"«Agora a criança está enterrada, e caminhamos por cima dela. Digo-lhe que quando caminho por esta terra, por esta África do Sul, tenho cada vez mais a impressão de caminhar por cima de rostos negros. Estão mortos, mas o espírito que os animava não os abandonou. Jazem na terra, pesados e empedernidos, à espera de que passem os meus pés, à espera de que eu me vá, à espera do dia em que tornarão a erguer-se. Milhões de figuras de ferro fundido, a vogar debaixo da pele da terra. A idade do ferro que se prepara para voltar."

"Filhos de ferro, pensei. A própria Florence, também não muito longe da dureza do ferro. A idade do ferro. Após a qual virá a idade do bronze. Quanto tempo, sim, quanto tempo até que o ciclo regresse às idades mais brandas, a idade do barro, a idade da terra? Uma matrona espartana, um coração de ferro, gerando filhos guerreiros para a nação. «Nós temos orgulho neles.» Nós. Regressa a casa empunhando o teu escudo ou deitado no teu escudo."

7 comentários:

  1. Gostei muito de ler este comentário sobre um dos meus livros preferidos de um dos meus autores preferidos. Acho que quem lê este deve ler também o Desgraça e o À Espera dos Bárbaros.

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  2. pedro: Coetzee é de facto impressionante e é claro que pretendo continuar a ler os seus livros. Tenho aqui em casa O Homem Lento e estou cheia de vontade de o ler... :) Vou tomar nota das tuas sugestões para futuras compras.

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    1. Que também é uma excelente leitura:
      http://pedrices.blogs.sapo.pt/26126.html

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  3. Comprei o livro hoje por causa deste post e vai para a minha lista dos próximos livros a ler :)

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  4. redonda: Ainda bem que o livro até é barato... Olha a responsabilidade se não gostasses! ;) Espero que gostes!

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  5. Coetzee é sem dúvida um autor que também me agrada e muito, N. Martins. Também gosto muito de "Desgraça", que o Pedro refere. Este não conhecia, mas pela tua opinião vou querer lê-lo também. :)
    Boas leituras!

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    1. Parece que o próximo a comprar terá de ser o Desgraça. :)

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