junho 11, 2012

Mau Tempo no Canal - Vitorino Nemésio

Título original: Mau Tempo no Canal
Ano de edição: 1944 
Autor: Vitorino Nemésio 
Editora: INCM - Imprensa Nacional Casa da Moeda

"«Creio que o isolamento de cada ilha açoriana dá lugar à constante presença de um fantástico individual, que percorre de um modo exemplar o romance de Nemésio, desde a personagem mais singela até à de maior complexidade. Fantástico individual que está em luta aberta contra um maravilhoso colectivo. Assistimos a um descer dentro de cada um, como se dentro de si pisassem os degraus da escada em curva - perfeita sucessão de serpentes cegas - que levam, na geografia insular, ao lago subterrâneo da ilha Graciosa; a única das cinco ilhas centrais que as páginas de Mau Tempo no Canal não contemplam.»"                                                                                       
                                                             Do prefácio de João Miguel Fernandes Jorge

Mau Tempo no Canal é um livro sobre os Açores, mas não é bem um livro sobre os Açores. Foi escrito nos Açores, a acção tem lugar no Arquipélago, as personagens são açorianas, no entanto, a história poderia passar-se em qualquer outra ilha perdida no meio de um qualquer oceano. Posto isto, Mau Tempo no Canal é, para além de muitas outras coisas, um livro sobre o isolamento e sobre as amarras da sociedade que nos impõem caminhos que na realidade não desejamos. Tendo como pano de fundo o Canal do Faial, Vitorino Nemésio vai-nos contando uma história de amor, que acaba por não o ser, aliás, poucas são as coisas que correm como planeado neste livro. :) A protagonista, Margarida Clark Dulmo é uma filha da terra, pertencente a uma das famílias mais antigas e respeitáveis da ilha. Margarida é uma miúda inteligente, divertida, corajosa e sonhadora. Todos os seus sonhos acabam, no entanto, por ir contra ao que a família espera dela, um casamento conveniente que permita à família recuperar algum do fulgor económico que perdeu, com a má gestão do pai, Diogo Dulmo, e com a cada vez mais rara caça de baleias.
O livro começa com a promessa de uma história de amor entre Margarida e João Garcia, um rapaz não tão bem-visto no seio dos Clark Dulmo. João Garcia parte para o continente para cumprir serviço militar, deixando Margarida quando ainda havia muito pouco para recordar, no entanto, o que sente por ela em vez de desaparecer, cresce e Margarida acaba por se tornar na única mulher que realmente amou. Margarida, pelo contrário, acaba por afastar João Garcia, embora ao longo do livro se perceba que sente por ele mais do que quer dar a entender. Na verdade, Margarida, nos dias de hoje seria, provavelmente, uma mulher concentrada na carreira profissional, sem procurar a felicidade numa relação amorosa, mas sim no seu desenvolvimento pessoal. Posto isto e, tendo em conta que a acção se desenrola entre 1917 e 1919, num sítio rodeado por mar, podemos intuir que a vida de Margarida não será propriamente fácil e as suas escolhas serão tudo menos pacíficas. :) Tendo sempre presente que, num meio pequeno, de certa forma isolado, todos os problemas parecem maiores, todos os dilemas, questões de vida ou morte. Neste aspecto, Margarida não é muito diferente de todas as outras pessoas da ilha.

É com pena que chego ao fim deste livro sem ter gostado especialmente dele. Não me identifiquei com a escrita elaborada de Vitorino Nemésio, não me conseguiu envolver nas vidas das personagens ou mesmo fazer sentir o ambiente das ilhas. Manter a concentração foi o maior desafio que encontrei neste livro. No entanto, embora não tenha ficado impressionada com ele, fiz um esforço extra para tentar chegar ao fim (confesso que saltei parágrafos) queria saber como acabava tudo. A história é boa, a forma com nos é contada é que, pessoalmente, não me cativou. Gostei, por exemplo, dos diálogos, da escrita em "açoriano" praticamente indecifrável mas que ajudavam a criar o ambiente vivido e gostei de algumas descrições. A forma como tudo isto está ligado, pareceu-me por vezes desconexo, confuso e com muitas descrições, para mim desnecessárias. Cheguei a mais de meio do livro e pensei em desistir, custava-me voltar a pegar nele, exactamente porque me sentia completamente desligada da história, tão desligada que a memória do que tinha lido era muito vaga e cheguei a confundir personagens... Só quando li algumas críticas é que me apercebi de que nem tudo acontecia na mesma ilha e que o canal separava a ilha do Pico e do Faial... (shame on me). Só voltei a pegar nele por puro despeito e, na realidade, lá mais para a frente a história ganha outro balanço e, como já referi, gostei da parte dos diálogos e por isso fui lendo. 

Não fiquei impressionada e duvido que alguma vez volte a ele, no entanto, não li nenhuma crítica negativa sobre ele, pelo contrário, sempre li coisas muito positivas sobre este livro. Sendo assim, não posso deixar de o recomendar, é muito provável que o problema seja meu! :)

Boas leituras!

Excerto:
" O mundo, aliás, nunca lhe aparecera tão vivo, representado na sua solidão de solteiro pela própria força do silêncio da noite e do esgotamento de um dia gasto à espera daquela mensagem de Margarida que dois meses enchiam de uma necessidade dolente e tornavam cada vez mais longínqua. Mas a própria intensidade e uso desse desejo criava em João Garcia um começo de palpitação daquilo por que esperava, como se a carta fosse o seu próprio cérebro excitado, e as sombra do fundo do quarto, o guarda-fato de espelho, o cubículo que lhe servia de escritório abafado em veludos puídos e me laçarotes encarnados derivassem da projecção do papel em que Margarida lhe escrevesse."

maio 31, 2012

Desaparecido para Sempre - Harlan Coben

Título original: Gone for Good
Ano da edição original: 2002
Autor: Harlan Coben
Tradução: Lucinda Santos Silva
Editora: Editorial Presença

"«Onze anos atrás, a 17 de Outubro, na pequena cidade de Livingston, Nova Jérsia, o meu irmão Ken Klein, então com vinte e quatro anos, violou brutalmente e estrangulou a nossa vizinha Julie Miller. Na cave dela.»

Esta é, pelo menos, a versão oficial da Polícia, mas nem Will, irmão de Ken, nem os seus pais jamais duvidaram da inocência de Ken, apesar das evidências junto ao local do crime. Onze anos passaram e nunca mais se soube do paradeiro de Ken. Estaria ele vivo ou morto? Will sempre preferiu acreditar na segunda hipótese, até ao dia em que a sua mãe, no leito de morte, lhe revela que Ken está, afinal, vivo. A partir daqui, o medo e a inquietude começam a dominar a vida de Will e isto será apenas o início do desencadear de novos e perturbadores acontecimentos. Praticamente na mesma altura, Sheila, a namorada por quem Will sente um amor incondicional, desaparece misteriosamente, deixando atrás de si um rasto de dúvida e medo. Will descobre ainda que o suposto reaparecimento do seu irmão está estranhamente associado a um grupo de colegas dos tempos de escola, e uma agente do FBI revela-lhe que Sheila é procurada por duplo homicídio. Histórias interligadas, informações surpreendentes e personagens misteriosas constituem o mote destes thriller intenso, cujo suspense aumenta vorazmente ao virar de cada página. Um livro excepcional, capaz de despertar verdadeiras emoções em todos os amantes do género."

E, surpreendentemente, este foi um policial do qual gostei e que me fez continuar a virar as páginas, espicaçada pela curiosidade. É raro, e o mérito só pode ser do escritor e da forma como nos apresenta a história. Harlan Coben foi, ao fim de apenas algumas páginas, adicionado à minha lista de escritores de policiais com os quais aceito gastar o meu tempo. :)

Vou tentar não arruinar a possível leitura do livro aos que continuam a visitar este meu cantinho, ou aqueles que, por algum acaso, aqui venham parar. Assumido o compromisso, vamos ao que interessa, o livro!

Em Desaparecido para Sempre, a personagem principal, Will Klein é, sem que nada o fizesse prever envolvido numa perigosa e confusa trama, que envolve a sua actual namorada, Sheila, e o seu irmão Ken, procurado há mais de onze anos pelo violento assassínio de Julie, a ex-namorada de Will. Confuso? Um pouco... Pelo meio temos agentes do FBI com interesses pessoais no caso, temos um mafioso famoso por ser implacável, temos um ex-nazi que procura redimir-se dos erros do passado ajudando almas perdidas e temos um homem conhecido por Ghost, temido por todos por ser extremamente violento e frio no seu "trabalho".
Estas personagens vão estar envolvidas em cenas violentas, algumas com o dom de nos deixar de estômago embrulhado. Não é um livro bonito e a maior parte do tempo anda à volta de temas pouco agradáveis.

Curiosos? Deixo-vos só o aviso de que nada do que parece é. Nada neste livro é preto ou branco, ninguém ali é simplesmente bom ou puramente mau.

Desaparecido para Sempre é um livro escrito numa linguagem muito simples, coloquial, com sentido de humor e com uma história bem estruturada. As personagens são interessantes e bem desenvolvidas. É fácil simpatizarmos com Will porque mesmo no meio de toda a desgraça e azar que o rodeia, tem sentido de humor, não perde a ingenuidade que o caracteriza e torcemos, com sinceridade para que tudo se resolva pelo melhor. :) Faz uma boa dupla com Squares, uma personagem que vive ele próprio com os seus terrores e erros do passado.
Com o desenrolar da história, e à medida que os mistérios vão sendo revelados, houve muita coisa que me pareceu inverosímil, no entanto, isso não incomoda, faz parte do género e quando isso é assimilado a leitura flui muito bem. A história mantém-se interessante ao longo de todo o livro e os capítulos muito curtos ajudam a uma leitura tendencialmente mais compulsiva.

São raros os livros deste género que recomendo. Com este, a recomendação é reforçada com um "sem qualquer hesitação".

Boas leituras!

Excerto:
"Seria de pensar que depois de tantos anos, já se insensibilizara ao sofá puído, à carpete manchada de água e ao televisor tão velho que nem sequer tinha ligação por cabo. Mas não. Pois todos os sentidos lhe diziam que o corpo da irmã ainda lá estava, inchado e apodrecido, o cheirete da morte tão espesso que até custava a engolir."

maio 20, 2012

O Milagre de São Francisco - John Steinbeck

Título original: Tortilla Flat
Ano da edição original: 1935
Autor: John Steinbeck
Tradução: Gervásio Álvaro
Editora: Editora "Livros do Brasil"

"Apropriando-se da estrutura e dos temas do ciclo arturiano, Steinbeck imaginou um novo castelo de "Camelot", situou-o numa das colinas pobres que cerca a cidade de Monterey, na Califórnia, e deu-lhe por habitantes um particularíssimo grupo de "cavaleiros".
Os "cavaleiros" em causa são paisanos, homens de diversas origens, cujos antepassados vieram estabelecer-se na Califórnia há centenas de anos. Sem laços constrangedores a empregos específicos, nem a outras complicações do American way of life, eles resistem com todas as suas forças à maré corrupta do trabalho honesto, e ao oceano de rectidão cívica que os cerca por todos os lados."

Tinha muitas saudades de ler Steinbeck e foi muito bom regressar a ele com este livro. Adoro ler autores que já conheço porque me dão uma tranquilidade na leitura, uma sensação de estar em casa que com os autores novos normalmente não acontece, têm outras vantagens, mas esta pertence aos escritores que são nossos velhos conhecidos e nos dão esta sensação de aconchego. :)

O Milagre de São Franscisco é a história de Danny, dos seus amigos e da casa de Danny. Danny e os amigos moram em Tortilla Flat, uma espécie de subúrbios de Monterey, na Califórnia. Em Tortilla Flat vivem os paisanos, homens e mulheres cujos antepassados habitam a Califórinia há mais de 100 anos. No seu sangue corre uma mistura de sangue índio, espanhol, mexicano e caucasiano. "Os paisanos estão isentos de comercialismo, libertos dos complicados sistemas americanos de negócios, e como não têm nada que possa ser roubado, explorado ou hipotecado, não foram muito atacados por esse sistema."

Danny e os amigos, Pablo, Pilon, Big Joe Portagee e Jesus Maria, são paisanos típicos. Têm aversão a qualquer tipo de relação duradoura e isso inclui o trabalho e o namoro. A única coisa que prezam para além de um garrafão de vinho é a amizade que os une. No centro desta amizade está Danny, um rapaz que poderia ter sido alguém na vida  mas que escolheu vaguear, embebedar-se, dormir ao relento e andar à pancada. Quando regressa do serviço militar descobre que o avô morreu e fez dele proprietário, deixando-lhe duas casas nas colinas de Tortilla Flat. Com esta repentina subida na escala social, Danny sente o peso da responsabilidade e começa a repensar a sua forma de viver. Incapaz de viver debaixo de um tecto e ter os seus amigos a dormir ao relento, pouco a pouco a casa de Danny torna-se a casa de todos eles. Nela passam os dias encostados, a beber e a planear como conseguirão o próximo garrafão de vinho. :)
É numa dessas alturas que surge Pirata, uma pobre alma que vive rodeado de cães, que dorme num galinheiro com eles e que ganha a sua vida a vender madeira na cidade. Não gasta um cêntimo daquilo que ganha, vive em condições miseráveis sendo, no entanto, acarinhado por todos na cidade, por ser um rapaz honesto, sem qualquer malícia no seu coração. Quando Pablo se apercebe da quantidade de dinheiro que Pirata deverá ter guardado algures na mata, enceta um plano para lhe ficar com a pequena fortuna. E é quando Pirata, com toda a sua ingenuidade, entra na vida destes homens, que não sendo más pessoas não eram propriamente possuidores da melhor moralidade, que tudo começa a mudar e a lenda da casa de Danny começa a ser escrita. É também aqui que percebemos de onde vem o título da edição portuguesa, muito bem escolhido. :)

No início estranhei bastante a forma como Steinbeck retratava este grupo especial de homens, cujo único interesse era beber, procurar um rabo de saias e agradar a Danny. Retratava-os sempre como sendo homens de bom coração, cujas intenções eram sempre as melhores, mesmo quando roubavam, mentiam e interferiam na vida dos outros pensando apenas no seu próprio benefício. Era tudo absurdo e moralmente duvidoso, no entanto, pouco a pouco, estes homens preguiçosos, completamente parasitários na sociedade, incapazes de pensar para além do círculo onde se moviam, começam a mudar e o que se começa  evidenciar é o sentimento muito forte que nutrem uns pelos outros. Com um sentido de justiça muito próprio protegiam-se uns aos outros e não hesitavam em ajudar, mesmo não tendo nada para oferecer de seu. A realidade é que ao longo do livro ganham um aura de santidade, retorcida, é certo, mas que não deixa de ser mesmo assim uma coisa boa.

Mais uma vez Steinbeck coloca as suas personagens em situações limite de pobreza, evidenciando a dureza daqueles tempos e daquela região.
O Milagre de São Franscisco é uma história sobre a amizade e sobre a bondade que mesmo a mais vil das criaturas pode ter dentro de si. É uma história sobre a ingenuidade, sobre os bons corações das pessoas que cometem acções menos boas, ou moralmente condenáveis, em prol do outro. Difícil de perceber? Talvez, no entanto quando lerem o livro é fácil de perceber e de conceber.

Se juntarmos a isto tudo a escrita divertida de Steinbeck, este é um livro que não devem deixar de ler! Recomendo!

Boas leituras!

Excerto:
"Esta é a história de Danny, dos seus amigos e da sua casa. Esta história narra como eles os três se tornaram numa só coisa, de modo que, na Tortilla Flat, quando se fala da casa de Danny, não se tem em mente uma estrutura de madeira coberta de caliça velha a desprender-se do emaranhado de uma antiga roseira-de-castela. Não, quando se fala da casa de Danny, subentende-se uma unidade cujas partes são homens, uma unidade donde emanava a ternura, a alegria, a filantropia e, no fim, uma tristeza mística. É que nem entre a casa de Danny e a Távolo Redonda havia diferença nem os amigos de Danny eram diferentes dos cavaleiros." 

Deixo-vos aqui o trailer de um filme de 1942, baseado no livro de John Steinbeck, e com o mesmo nome deste - Tortilla Flat:


maio 17, 2012

A Trilogia de Nova Iorque - Paul Auster

Título original: The New York Trilogy
Ano da edição original: 1985 e 1986
Autor: Paul Auster
Tradução: Alberto Gomes
Editora: Edições ASA

"A Trilogia de Nova Iorque continua a ser, tantos anos depois, o livro mais emblemático de Paul Auster. São três fascinantes histórias de mistério, centradas no submundo da grande cidade norte-americana, em que o leitor, tal como as personagens, se torna prisioneiro dos irresistíveis enredos, dos puzzles alucinantes, dos quais o autor é mestre incontestado.
Cidade de Vidro, Fantasmas e O Quarto Fechado constituem os três andamentos de uma sinfonia única, em que Paul Auster demonstra, mais uma vez, porque é hoje considerado um dos grandes nomes da literatura mundial."

Este livro de Paul Auster não é um livro fácil de se ler. As três histórias que o constituem estão cheias de coisas e acontecimentos que não fazem muito sentido, as personagens têm comportamentos difíceis de aceitar, inesperados e auto-destrutivos. Nada de muito novo no que diz respeito aos livros de Paul Auster. :)

A Trilogia de Nova Iorque é um livro ainda mais estranho e irreal que os restantes que já li do autor. As três histórias aparentemente nada têm a ver umas com as outras, a não ser o tom e o facto de todas serem sobre homens, solitários, perdidos e esquecidos numa cidade gigante, alienados do que os rodeia, ignorados e extremamente infelizes. Nada mais parece ligar estes homens que desistem da vida que levam, para vigiarem a vida de outros homens e serem completamente absorvidos pelas vidas e rotinas da pessoa que vigiam obsessivamente.

Na primeira história, A Cidade de Vidro, conhecemos Daniel Quinn, um escritor de policiais bem sucedido, que deixou de escrever poemas no dia em que perdeu a mulher e o filho pequeno. Quinn vive sozinho, ocupa o seu tempo entre um livro e outro, a vaguear por Nova Iorque, sem destino pré-definido, gosta de andar e deixar de se sentir na sua pele, ser absorvido pela multidão e conseguir não pensar. Uma noite a sua rotina é interrompida por um estranho telefonema de um homem que lhe pede ajuda, julgando que Quinn é Paul Auster, um detective privado. :)A partir deste telefonema a vida de Quinn muda e nunca mais será como era.
Gostei muito desta história e da forma como Auster nos conta a crescente loucura e alienação de Quinn. À medida que este se vai perdendo, a sua história torna-se cada vez menos credível e temos dificuldade em distinguir o que é real e o que não será bem o que aparenta.

A segunda história, Fantasmas, é uma história estranha sobre um detective privado, Blue, que é contratado por White para vigiar um outro homem, Black. Estranho? Sim, mas não são apenas os nomes das personagens que são diferentes. Blue, instala-se num apartamento em frente ao apartamento de Black e passa os dias em frente à janela a vigiar os movimentos de Black. Depois de um tempo, está de tal forma sintonizado com as rotinas de Black, que já nem precisa de vigiar, simplesmente sabe o que o outro está a fazer. Será mesmo assim? É o que nos vai sendo contando ao longo desta história, mais uma vez cheia de solidão e infelicidade.
Embora existam semelhanças entre esta e a primeira história, não tive a sensação de que estava a ler mais do mesmo. Gostei, mais uma vez, da forma como Auster parece conhecer o que é ser umas destas personagens, sozinhas e desligadas do resto do mundo.

A terceira e última história, O Quarto Fechado, é talvez a mais confusa das três. Um crítico literário, escritor frustrado, de quem não sabemos o nome, recebe notícias de um amigo de infância, Fanshawe que, aparentemente desapareceu sem deixar rasto.
Fanshawe é uma personagem completamente atípica, um homem extremamente inteligente e escritor talentoso, embora nunca tenha publicado uma única obra. É admirado por todos os que o conhecem e o narrador foi o seu melhor amigo na infância. Antes de desaparecer, Fanshawe deixou indicações precisas sobre o que deveria ser feito às suas obras por publicar, caso algo lhe acontecesse. O narrador, por razões que este não entende, foi o escolhido para ser o depositário da obra deixada pelo amigo. Vê-se de um dia para o outro na posse de um espólio de valor incalculável e com a responsabilidade de a publicar.
Durante este percurso vão-se dando algumas mudanças no carácter do narrador, que numa espécie de insanidade temporária, subverte as suas noções de moralidade e honestidade.
Mais uma de que gostei. :)

Na terceira história são referidas personagens que são também personagens nas outras duas histórias. A única diferença entre estas parece residir apenas no facto de não se detectar nelas nenhuma da escuridão que vivem na histórias respectivas, como personagens principais.
Fazendo uma ligação entre a cidade de Nova Iorque e os temas transversais às três histórias, a sensação como que fiquei foi a da indiferença que todos sentimos nos outros e em nós próprios, principalmente se vivemos em grandes cidades, como Nova Iorque. É como se as personagens, absorvidas pelos seus dilemas pessoais não se apercebessem de quão normais podem parecer para o vizinho do lado, absorvido pelos seus próprios problemas. Não sabemos, nem queremos saber, dos problemas das pessoas que se cruzam connosco na rua e se sentam ao nosso lado nos transportes. Nem nos passa pela cabeça a possibilidade de os nossos medos poderem ser comuns e, portanto, partilhados, divididos e esvaziados de algum do drama. :)

Paul Auster é um escritor genial! Numa escrita leve, na forma e não no conteúdo, fala de desilusão, abandono, loucura, alienação, solidão, perda e de tristeza com uma propriedade e conhecimento que assusta. As personagens são complexas e credíveis ao mesmo tempo, com as quais nos conseguimos identificar, de alguma forma. E não poderia ser um livro de Paul Auster se não estivesse repleto de histórias dentro da história e cheio de referências a outros livros. :)

Gostei mesmo muito e, por isso, recomendo sem quaisquer reservas!

Boas leituras!

Excerto: Este livro não é dado a excertos, além disso... a opinião já vai longa! ;)

maio 13, 2012

Feira do Livro de Lisboa 2012


Mais uma Feira do Livro que chega ao fim, pelo menos para mim, pois não prevejo passar por lá amanhã. 
Este ano os felizes contemplados num mundo de escolhas infinitas foram:

- O Milagre de São Francisco - John Steinbeck
- O Remorso de Baltazar Serapião - Valter Hugo Mãe
- O Homem Lento - J. M. Coetzee
- A Maldição (Duma Key) - Stephen King
- O Desejo de Kianda - Pepetela

Embora tenha achado a Feira menos diversificada na oferta, com os Alfarrabistas a terem todos os mesmo livros (pelo menos fiquei com essa sensação das vezes que lá fui) e os grandes grupos editoriais, principalmente a Leya, a tornarem cada vez mais notada a sua presença. Parecem lojas dentro da Feira, um evento à parte... Este ano senti mais essa "imposição", talvez porque fiquei com a impressão de que havia menos barraquinhas fora dos espaços delimitados pelos alarmes. Não tenho nada contra estes grupos editoriais, os preços que praticam são, muitas vezes apelativos e a individualidade de cada editora que os constituem parece-me que continua presente, no entanto os preços de Feira não eram muito diferentes dos praticados ao longo do ano, daí ter sentido a Feira menos Feira, este ano. O lado positivo foi não ter sofrido de muita ansiedade quanto ao que queria comprar agora. :)

Conversetas à parte, estou muito contente com os livros que comprei. O de Steinbeck não precisa de justificação, tinha saudades de ler alguma coisa dele, o mesmo se aplica ao do Pepetela e ao do Stephen King, do qual me tenho mantido afastada por causa do preço destas novas edições todas catitas. :) Desde o No Coração desta Terra do Coetzee que fiquei com vontade de voltar a este escritor e, como livro do dia, pareceu-me uma boa escolha. valter hugo mãe, para além de darem um saco de pano todo giro, foi das melhores surpresas do ano de 2011, pelo que, não pensei duas vezes em trazer este para casa.

A cereja em cima do bolo foi ter quebrado o enguiço e ter comprado umas coisinhas para as minhas sobrinhas! :)

Acho que a Feira não devia sair do Parque Eduardo VII. É excelente para dar uma volta à hora de almoço, para comer um gelado ou uma fartura... Onde é que vou fazer isso agora? :p

Boas leituras e bom último dia de Feira!!!

maio 01, 2012

Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - J. Rentes de Carvalho

Título original: Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia
Ano de edição: 2011
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal Editores

"Uma paixão tórrida em Sevilha; a crueldade de um filantropo inglês; o crime passional de Bebé Almeida; uma fria manhã de Paris de 1955; o afamado bordel de Madame Blanche enquadram algumas das extraordinárias histórias que compõem Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia, o mais recente livro de ficção de J. Rentes de Carvalho."


Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia estava nas minhas estantes, quieto e silencioso desde a Feira do Livro de Lisboa do ano passado. Finalmente pediu para ser lido e em boa hora o fez. Numa altura em que o tempo para ler não abunda, o melhor é mesmo ficar-me por escritores que já conheço e que tenho a certeza serem uma boa companhia. J. Rentes de Carvalho é assim, embora dele só tenha lido dois livros, A Amante Holandesa e Ernestina, já aqui comentados, a afinidade foi imediata e irreversível. É para mim um velho conhecido. :)

Os Lindos braços da Júlia da Farmácia é uma colectânea de pequenas histórias sobre os mais variados temas que, na maioria delas, o que têm em comum é o narrador, a familiaridade e a proximidade que transmitem. O narrador parece-se muito com J. Rentes de Carvalho, melhor dizendo, a vida do narrador parece-se muito com aquilo que conhecemos ser a vida de J. Rentes de Carvalho. É impossível não associar uma coisa à outra e, embora ficcionadas, muitas das histórias serão baseadas em factos reais.
As histórias falam de amores antigos, falam de encontros e de velhos amigos, falam da infância e das recordações que dela trazemos, falam da família e da terra, falam de aventuras e de histórias do dia-a-dia e falam de coisas tão simples como os lindos braços da Júlia da farmácia. Esta história que dá nome ao livro é a mais curta que nele encontramos e nada mais é do que um pequeno texto acerca dos braços magníficos da Júlia da farmácia e do fascínio que provocava num senhor de certa idade. :)

É-me difícil destacar uma ou outra história porque gostei de todas elas e, como são todas muito diferentes é complicado referir uma e não outra. No entanto, gostei particularmente da "Incêndio no Chiado" onde é notório o carinho que o autor tem por esta zona da capital e achei deliciosa a "No Barbeiro" onde o narrador recorda um episódio da infância.

Gosto muito da forma como J. Rentes de Carvalho escreve, de forma descontraída e bem-humorada, isto aliado ao facto de as histórias que conta serem sempre boas é a combinação perfeita para termos um livro dos bons.

Nunca é demais dizer que gosto de J. Rentes de Carvalho e, a cada livro que leio dele, gosto mais um bocadinho.

Recomendo!

Boas leituras!

Excerto:
"Segunda-feira de manhã, iluminados pelo sol, os escombros parecerem-me ainda mais terríveis e desesperados, ao mesmo tempo símbolo e sinal de mau agouro num país onde, mau grado a democracia recuperada, a vida da maioria continua a ser uma longa espera impotente e triste entre coisas que apodrecem e coisas que ardem."

abril 08, 2012

Inés da Minha Alma - Isabel Allende

Título original: Inés del Alma Mia
Ano da edição original: 2006
Autor: Isabel Allende
Tradução do francês: Ana Mendes Lopes
Editora: Difel
"«Suponho que venham a colocar estátuas da minha pessoa nas praças, e haverá, por certo, ruas e cidades com o meu nome, tal como as haverá também com o nome de Pedro Valdivia e outros conquistadores, mas as centenas de mulheres que tanto se esforçaram por fundar as cidades, enquanto os seus maridos lutavam, serão, quase de certeza, esquecidas.»
Inés Suárez é uma jovem e humilde costureira, oriunda da Extremadura, que embarca em direcção ao Novo Mundo para procurar o marido, extraviado com os seus sonhos de glória do outro lado do Atlântico. Anseia também por viver uma vida de aventuras, vedada às mulheres na pacata sociedade do século XVI. Na América, Inés não encontra o marido, mas sim uma grande paixão: Pedro de Valdivia, mestre-de-campo de Francisco Pizarro, ao lado de quem Inés enfrenta os riscos e as incertezas da conquista e fundação do reino do Chile.
Neste romance épico, a força do amor concede uma trégua à rudeza, à violência e à crueldade de um momento histórico inesquecível. Através da mão de Isabel Allende confirma-se que a realidade pode ser tão ou mais surpreendente que a melhor ficção, e igualmente cativante."

Isabel Allende raramente desilude e por isso, quando decido ler mais um livro dela sei que vão ser horas bem passadas. Não existem expectativas a gerir, uma vez que é quase garantido que o livro vai ser bom. Inés da Minha Alma é assim, um livro de Isabel Allende que cumpre em todas as vertentes aquilo que se espera desta escritora. Pode até não ser o seu melhor livro mesmo que a época retratada seja fascinante, as personagens cativantes e a história envolvente, não achei este o seu livro mais inspirado. No entanto, é sem qualquer dúvida, um livro que valeu cada segundo que lhe foi dedicado.

O livro relata a história de Inés Suárez, a conquistadora do Chile. Inés Suárez nasceu na Extremadura, em Espanha, de origens humildes, nunca poderia adivinhar que a vida lhe reservava muito mais do que a costura e um casamento mais ou menos feliz.
Quando o marido parte na aventura da descoberta do Novo Mundo, as novas terras conquistadas pelos espanhóis, no outro lado do atlântico, Inés fica, como qualquer esposa da época, à espera do seu regresso ou do anúncio da sua morte. Cansada de esperar por uma coisa ou pela outra, Inés decide aproveitar a oportunidade de cortar com a vida que leva, parte em busca de notícias do marido e embarca num navio que a leva até ao Peru, a mais recente jóia da coroa espanhola. No entanto, não é tanto a busca do marido que a move, e sim a oportunidade de ser mais do que uma humilde costureira, ao recomeçar uma nova vida numa sociedade em construção onde, até as mulheres tem a possibilidade de se sentirem úteis.

Seguindo o rasto do marido, acaba por conhecer o homem que lhe vai mudar a vida, Pedro de Valdivia, com quem parte na conquista do Chile, terra até então inconquistável devido à tenacidade das tribos Mapuche que lá habitavam. Os mapuche eram considerados uma das tribos mais combativas e menos "domesticáveis" de todo o Novo Mundo. Juntos, Inés e Pedro, fundam a primeira cidade do Chile, Santiago e nela iniciam o sonho de construir uma sociedade justa (para os padrões da época), onde os seus habitantes dessem mais importância à fertilidade da terra, ao clima ameno e à beleza da paisagem, em vez de correrem, como loucas atrás do ouro e da prata, abundantes nas regiões conquistadas e muito procurados por aquelas bandas.

Para além da ambição do ouro e da prata, a única coisa que impedia o sonho dos dois de se tornar realidade eram os índios Mapuche, que se recusavam a render, a ser colonizados, recusavam entregar as suas terras e ser evangelizados, e que eram incapazes de perceber como é que os homens barbudos davam mais importância ao ouro e à prata e tão pouca importância à liberdade. Lutaram de forma feroz, suicida, com armas incapazes de derrotar o metal dos europeus, lutaram de forma instintiva, sem qualquer estratégia. Não fossem eles tantos e, provavelmente deles não rezaria a história.

São impressionantes as descrições das batalhas e da forma como os índios, não só os mapuche do Chile, mas todos os colonos das terras conquistadas, eram tratados. A forma como "nós", os Europeus entrámos pelas terras deles, e lhes alterámos a forma de vida, impondo regras e crenças que não conseguiam compreender e das quais não precisavam.
Foi muitas vezes desconfortável ler algumas opiniões, algumas formas de pensar da época, mesmo contextualizado e tentando não ver à luz dos nossos dias, foi muitas vezes revoltante a forma como exaltamos algo que tanto sofrimento trouxe a outros seres humanos. Este livro acaba por ser um misto de sentimentos, porque se por um lado sentimos um grande orgulho na mulher que ajudou a fundar o Chile, que lutou ao lado dos homens e que teve um papel tão ou mais importante que estes, por outro, não deixamos de nos sentir chocados pelo preço que foi infligido aos índios. Se por um lado reconhecemos em Inés e em Pedro, um bom coração, inteligência e muita coragem, por serem duas pessoas que tinham uma forma de pensar diferente da maioria, não podemos, por outro lado, deixar de sentir uma impotência grande porque, em abono da verdade, não havia outra forma de conquistar novos mundos, sem ser com sangue e sacrifício de vidas humanas. Que mundo seria o nosso se todos os povos conquistadores não tivessem aniquilado a cultura e a história dos povos conquistados? É impossível saber...

Gostei bastante do livro, principalmente da história. Acho que Isabel Allende consegue criar, no leitor, este desconforto por fazermos, quer queiramos quer não, parte dos conquistadores, beneficiando até hoje dessas conquistas, que agora nos parecem tão aberrantes. O livro é lido tendo sempre presente esta ambivalência dos sentimentos e da nossa consciência colectiva.

Gostei das personagens, mais uma vez Isabel Allende apresenta-nos uma personagem feminina muito forte, uma autêntica guerreira, sem ser uma amazona e sem perder aquelas características que nos tornam a nós, mulheres, de uma forma ou de outra, semelhantes. Gostei de Inés Suárez, mais ainda sabendo que é uma personagem real, e das restantes personagens.

Recomendo vivamente, não só por ser Isabel Allende, mas porque é mesmo um livro interessante.

Boas leituras!

Excerto:
"Quando chegámos ao Chile nada sabíamos dos Mapuche, pensado que seria fácil submetê-los, como fizemos com povos mais civilizados, os Astecas e os Incas. Demorámos muitos anos a compreender quão errados estávamos. Não se vislumbra o fim desta guerra, porque quando torturamos um toqui logo aparece outro, e quando exterminamos uma tribo inteira, outra sai do bosque e toma o seu lugar. Nós queremos fundar cidades e prosperar, viver com decência e descanso, enquanto eles só querem a liberdade."
"Para eles quem provê é a Santa Terra, as pessoas ficam com o necessário e agradecem, não exigem mais não acumulam; o trabalho é incompreensível, uma vez que não há futuro. Para que serve o ouro? A terra não é de ninguém, o mar não é de ninguém; a simples ideia de os possuir ou dividir produzia ataques de riso ao normalmente soturno Felipe. As pessoas também não pertencem umas às outras. Como podem os huincas comprar e vender gente que não é sua? Por vezes, o menino passava dois ou três dias mudo, esquivo, sem comer, e quando lhe perguntava o que tinha, a resposta era sempre a mesma: «Há dias alegres e dias tristes. Cada um é dono do seu silêncio.»"