Título original: Last Night in Twisted River
Ano da edição original: 2009Autor: John Irving
Tradução do inglês: Fátima Vieira
Editora: Civilização Editora
"Em 1954, no pavilhão de refeições da serração de um acampamento de lenhadores, no Norte do New Hampshire, um ansioso rapaz de doze anos confunde a namorada do chefe da polícia local com um urso. Tanto o rapaz de doze anos como o pai são forçados a fugir de Coos County para Boston, Vermont e Toronto, perseguidos pelo implacável polícia. O seu único protector é um lenhador libertário, antigo condutor de toros, e um velho amigo deles.
Numa história que abrange cinco décadas, A Última Noite em Twisted River retrata o último meio século nos Estados Unidos."
É sempre um prazer voltar às histórias de John Irving, e A Última Noite em Twisted River não foi a excepção, felizmente, mais que não seja porque o livro é grandote e porque foi a companhia escolhida para as férias deste Verão. :)
Mais uma grande história de um escritor que é tudo menos comum e cujas histórias são sempre mirabolantes e estranhas, à falta de melhor palavra que descreva os livros de John Irving.
Já o disse numa outra opinião que os livros de John Irving mais parecem uma novela televisiva por não se limitarem a um período da vida das personagens. Parece impensável não se conhecer a infância, explicação para tantas escolhas, atitudes e comportamentos. E deixar de fora a velhice ou mesmo a morte não fecharia o círculo. Com John Irving não existem finais dúbios ou em aberto e nós acompanhamos as personagens quase como se estas fossem nossos familiares. Gosto muito desta característica nas histórias dele. :-)
Não vou sequer arriscar-me a entrar muito em pormenor na história porque, pedaços soltos sem o contexto apropriado são apenas isso, pedaços soltos de um livro que não deixa nada por contar. Vou só dar-vos um "cheirinho" do trio protagonista Dominic e Daniel Baciagalupo, pai e filho, e Ketchum o melhor e mais velho amigo dos dois.
A história tem início em 1954 em Coos County, junto ao Twisted River, onde o viúvo Dominic é o cozinheiro da serração da região.
Dominic é um homem difícil de descrever. Casou cedo com a sua "quase não prima" Rose, a mãe de Daniel, com quem chegou a Coos County, em busca de um recomeço, onde ninguém os conhecesse e julgasse. Nem tudo corre como planeado, e o agora viúvo Dominic, tornou-se num homem solitário, cauteloso e prudente, quase como se não quisesse provocar novos acontecimentos nefastos à sua volta. Para além do filho, Dominic, vive para cozinhar, gosta de mulheres com excesso de peso (Rose foi a sua única mulher pequena e delicada) e de Ketchum, embora não existam no mundo duas pessoas mais diferentes.
Conhecemos Daniel Baciagalupo com 12 anos, a única criança a viver na serração. É um miúdo solitário, inseguro mas inteligente com uma imaginação fértil que acaba por despoletar os acontecimentos que levaram à fuga dele e do pai, a meio da noite, de Coos County.
É nessa última noite em Twisted River que Daniel começa a desenhar na sua cabeça as histórias que o vão tornar num escritor de sucesso uns anos mais tarde.
Herda do pai a constante sensação de que algo de terrível lhe está reservado e vive angustiado com a certeza de que sobreviverá a Joe, o filho que tem anos mais tarde e que o manteve longe da guerra do Vietname.
Finalmente, Ketchum é um dos condutores de toros da serração. É um homem rude, que se afastou, por razões nunca explicadas dos filhos que sabemos ter. É violento, amargurado, anda sempre armado e é contra todo e qualquer sinal de progresso. É, no entanto, uma personagem de quem é fácil gostar. Gosta verdadeiramente dos Baciagalupo e leva muito a sério a promessa que fez a Rose de que cuidaria deles. É muitas vezes desconcertante, mas é das personagens mais interessantes do livro.
Em A Última Noite em Twisted River, John Irving atravessa cinco décadas da história dos EUA. No interior do país, encontramos homens e mulheres rudes, sem papas na língua que viveram e trabalharam em lugares inóspitos e agressivos, muitos deles descendentes de índios. Nas grandes cidades como Boston, temos os imigrantes, os que vieram em busca do sonho americano.
São estas as pessoas que construíram o país e o transformaram na potência que é hoje em dia.
Os Baciagalupo e Ketchum vivem a guerra do Vietname, a guerra em que os EUA perderam mais do que aquilo que poderiam ter ganho. Uma geração inteira de jovens, os que tiveram de a combater e os que tudo fizeram para não participar nela.
Assistem ao 11 de Setembro, quase como algo inevitável devido à política externa do país e ao crescente anti-americanismo.
É, também por isso, um livro interessante, por nos apresentar várias perspectivas do chamado sonho americano. O EUA são um país enorme, com muitas assimetria, composto por pessoas tão diferentes e culturalmente tão diversas.
Para além do tema EUA, onde a visão é, provavelmente a do próprio John Irving, este não deixa de lado todos os seus elementos fetiche: o sexo apresentado como algo estranho e bizarro, os ursos, a perda e a solidão. As personagens de John Irving são sempre um pouco estranhas, mas acima de tudo são solitárias, inadaptadas ou, de certa forma, deslocadas da realidade que as rodeia.
John Irving partilha, ainda connosco um pouco do processo criativo, de como nascem as histórias, de como muitas vezes o ponto de partida é algo do próprio escritor, que depois envolve tudo em muita ficção. De como, nem o próprio escritor se apercebe de quão autobiográficos podem ser os seus livros. Em A Última Noite em Twisted River, Daniel Baciagalupo, torna-se um escritor de sucesso e é ele o autor de A Última Noite em Twisted River, a obra que levou uma vida inteira a ser escrita e que só conseguiu escrever depois de ter vivido tudo o que viveu.
Não sendo o melhor livro que já li dele, é mesmo assim um livro que a meu ver vale muito a pena ler.
Gostei e recomendo, claro!
Boas leituras!
Excerto:
"Estava uma noite quente, sem vento. Danny sabia que ouviria facilmente o disparo de uma arma mesmo a alguns quilómetros de distância numa noite como aquela. O que não sabia de início era: o que queria ele realmente ouvir? E qual seria o significado de ouvir ou não ouvir o disparo? Era mais do que a sobrevivência do raçado de husky-pastor-que-atacava-pelas-costas que o escritor esperava escutar. (...) Foi então que o escritor se apercebeu do que estava à escuta: de nada. Era nada que ele esperava ouvir. Era um não-disparo que significaria que o pai estaria a salvo - que o cowboy, tal como Paul Polcari, poderia nunca vir a premir o gatilho."