junho 29, 2015

Sombras Queimadas - Kamila Shamsie

Título original: Burnt Shadows
Ano da edição:2009
Autor: Kamila Shamsie
Tradução: Helena Lopes
Editora: Civilização Editora

"9 de Agosto de 1945. Nagasáqui. Hiroko Tanaka, de 21 anos, embrulhada num quimono com três grous pretos estampados nas costas, esta apaixonada pelo homem com quem vão casar, Konrad Weiss. Num milésimo de segundo, o mundo fica branco. No entorpecimento consequente ao explodir a bomba que oblitera tudo o que ela conheceu, apenas restam as queimaduras em forma de ave nas suas costas, uma memória indelével do mundo que perdeu.
Dois anos depois, procurando recomeçar, Hiroko viaja para Deli. Vai conhecer a meia-irmã de Konrad, Elizabeth, o marido desta, James Burton, e o empregado deles, Sajjad Ashraf. Com o passar dos anos, outros lares substituem os que ficaram para trás e as velhas guerras são ultrapassadas perante os novos conflitos. Mas as sombras da história - pessoais, políticas - alongam-se sobre os mundos entrelaçados dos Burton, dos Ashraf e dos Tanaka quando são transportados do Paquistão para Nova Iorque e, no espantoso clímax da história, para o Afeganistão no pós-11 de Setembro."

 
Este livro chamou-me a atenção primeiro pelo nome e depois pelo tema, o lançamento da bomba atómica em Nagasáqui, na 2° guerra mundial. O livro acabou por ser uma óptima surpresa e Kamila Shamsie uma escritora a manter debaixo de olho. 

Hiroko Tanaka é a personagem que nos acompanha em todo o livro, testemunha de acontecimentos que mudarem o mundo e a forma como o vemos, hoje em dia. Viveu o lançamento da bomba atómica em Nagasáqui, durante a 2ª guerra mundial. Assistiu da janela do seu quarto ao clarão branco que eclipsou da face da terra tudo aquilo e todos aqueles que conhecia, a cidade, o pai, e Konrad Weiss, o noivo.
Depois de recuperar fisicamente, e sem nada nem ninguém que a prenda a Nagasáqui e ao Japão, Hiroko decide partir. Konrad, filho de pais alemães, tinha uma irmã a viver na Índia, ainda pertença da coroa britânica. É para lá que Hiroko decide partir, numa tentativa de encontrar em Elizabeth, uma réstia de Konrad. Encontra pouco de Konrad na meia-irmã, mas reencontra o amor e cria com Elizabeth uma amizade que durará uma vida.
Hiroko chega a Deli, uns meses antes da saída da Grã-Bretanha da Índia (1947) e da divisão do território até então ocupado pelos britânicos, com o vizinho Paquistão. Espera-se que a saída dos britânicos seja pacífica, no entanto, as relações entre o Paquistão e a Índia estão longe de ser amigáveis. Hiroko vê-se mais uma vez envolvida num conflito, obrigada a fugir, e a viver novamente sob a ameaça do lançamento da bomba atómica.

Hiroko, vai viver para o Paquistão, casada e com um filho, ela assiste, ao longo das décadas que ali viveu,  à crescente intolerância religiosa, com a radicalização dos muçulmanos no país e a crescente importância dos campos dos talibans no Afeganistão. Numa sequência desastrosa de acontecimentos e de mal-entendidos, Hiroko acaba por ir parar a Nova Iorque. Lá assiste, em 2001, à queda das Torres Gémeas, no ataque perpetrado pela Al-Qaeda.

Numa teia bem construída de acontecimentos que ligam as personagens e factos históricos, a ideia que permanece ao longo de todo o livro é a da 3ª Lei de Newton, não existem acções sem reacções. Aparentemente nada do que fazemos na nossa vidinha é inconsequente. A reacção até pode não ser imediata, mas que as nossas acções têm um impacto no mundo que nos rodeia é inegável.

Gostei muito deste livro. Não tinha grandes expectativas, não conhecia a escritora e acabou por ser uma boa surpresa. Lê-se muito bem, a escrita é fluída e envolvente, o tema e a forma como Kamila Shamsie o aborda é muito interessante.

Parece-me óbvio que só posso recomendar.

Boas leituras!

Excerto (pág. 36):
"Hiroko sai para a varanda. O seu corpo, do pescoço para baixo, uma coluna de seda branca, com três grous pretos a precipitarem-se  sobre as suas costas. Ela olha na direcção das montanhas, e tudo está mais belo para ela do que estava de manhã cedo. Nagasáqui está mais bela do que nunca. Volta a cabeça e vê as flechas da Catedral de Urakami, para as quais Konrad está a olhar quando repara numa frecha entre as nuvens. A luz do Sol jorra através dela, empurrando as nuvens ainda mais longe.
Hiroko.
E depois o mundo fica branco. (...)
A luz é física. Ela atira Hiroko para a frente, estendendo-se ao comprido. Entra-lhe poeira na boca, no nariz, na altura em que bate no chão, e queima. A sua primeira reacção é de medo que a queda tenha rasgado o quimono de seda da mãe. Ela levanta-se do chão, olha para baixo. Há sujidade no quimono, mas não rasgões. Todavia algo está errado. Está de pé. O ar está subitamente quente e sente-o na pele. Sente-o nas costas. Desliza a mão por cima do ombro, toca carne onde deveria  haver seda. Move a mão mais para baixo das costas, toca no que não é carne nem seda mas ambas."

junho 10, 2015

O Diabo e Outros Contos - Lev Tolstói

Título original: O Diabo e Outros Contos
Ano da edição:2008
Autor: Lev Tolstói
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Relógio d'Água

"Reúnem-se aqui seis dos melhores contos de Tolstoi. Os dois primeiros são sombrias parábolas sobre as tentações carnais. Em O Diabo (1889-90), um jovem não consegue resistir a uma bela camponesa com quem tivera um caso antes de se casar. Por sua vez, O Padre Sérgui retrata a vida de um soldado que, para resistir às tentações, se torna monge e, mais tarde, pedinte.
Dos restantes contos, destaca-se Depois do Baile que é, nas palavras de George Steine, um cinto formidável, um exemplo em que a técnica e a metafísica ser tornaram inseparáveis, pois no vocabulário de Tolstoi, tem ressonâncias ambíguas, é ao mesmo tempo uma ocasião de graça e elegância e um símbolo de consumada artificialidade."

É sempre bom regressar aos clássicos e ao formato conto que gosto especialmente nos escritores russos. Este O Diabo e Outros Contos lê-se muito bem e os contos são dos bons. Vou apenas destacar os três de que mais gostei.

O Diabo:
É como a sinopse descreve, uma sombria parábola sobre tentações carnais. Um jovem, de boa educação, após morte do pai que os deixou, a ele e à mãe, cheios de dívidas, decide mudar-se para a propriedade da família na aldeia, onde pretende resgatar a economia familiar da falência.
É um homem correcto, bem amado por todos os que com ele se cruzam. No seu afastamento da vida da cidade, a única coisa de que sente falta, e porque ainda não encontrou a mulher com quem quer casar, é do sexo casual, sem compromisso. Entende isto como uma necessidade física e é por isso que o que mais o atormenta é não haver na aldeia, por ser um sítio pequeno, forma de o fazer sem que todos o saibam e o julguem como mais um senhor que se aproveita dos mais pobres. Acaba por encontrar em Stepanida, uma mulher da aldeia cujo marido trabalha na capital, aquilo que procura, e com a discrição possível, arruma o assunto e vive verdadeiramente feliz na aldeia. 
Mais tarde conhece Lisa e apaixona-se. Casa com ela e nunca mais pensa em Stepanida, porque havia de o fazer, se agora tem em Lisa tudo aquilo com que sonhou? Um dia cruza-se com Stepanida... e todas as suas certezas deixam de as ser. :)

Gostei muito desta pequena história.

O Patrão e o Moço da Estrebaria:
O patrão, Vassilí Andreitch, é um homem ambicioso, egocêntrico e explorador. Homem de família, sai de casa numa noite fria e de tempestade, com uma quantia de dinheiro considerável, para fechar um negócio da compra de um terreno. Com ele leva um empregado, Nikita, o homem que lhe trata dos cavalos, o moço de estrebaria, que com cinquenta anos, de moço já nada tinha. Sóbrio há anos é um pobre diabo, que encontra em Vassilí um patrão menos mau, que ao menos não deixa que ele e a família passem fome.
Partem os dois, o patrão bem agasalhado, Nikita nem tanto. Com o tempo a ficar cada vez mais agreste, os dois perdem-se e desviam-se do caminho que levavam. Chegam a uma aldeia vizinha, onde conhecidos os acolhem e orientam para o caminho certo, não sem antes insistirem para que passem a noite resguardados e que partam de manhã, quando a tempestade tiver passado. Vassilí insiste em partir e na urgência de fechar o negócio dos terrenos antes que outro lhe passe à frente e faça subir o preço. Partem os dois novamente, e novamente se desorientam na noite cerrada e na estrada cheia de neve. Quando achamos que nesta história todas as persoangens são aquilo que esperamos delas, somos supreendidos. :)

Temos tendência, como seres humanos a catalogar as pessoas que se cruazm connosco. Nem sempre, aquilo que aparentam ser é o que acabam por ser nas alturas mais importantes.  Gostei muito deste conto.

Albert:
Albert é um músico talentoso, alcoólico e de rosto celestial. Quando toca todos se rendem ao seu talento, e a forma como o faz deixa todos à sua volta estarrecidos e sensibilizados. 
Num dos bailes dados por Anna Ivánovna, e onde Albert costuma aparecer para tocar, Deléssov depois de o ouvir decide ajudá-lo. Tem de o fazer, um talento daqueles não pode continuar a ser desperdiçado em salões de baile. Deléssov quer tirá-lo da vida desgraçada que leva, da rua, quer potenciar o seu talento, torná-lo num homem diferente e leva-o para sua casa. O que acontece nesta tentativa de reabilitar Albert terão de ser vocês a descobrir.


Estes são apenas três dos contos incluídos nesta colectânea de textos de Tolstói. Vale a pena lê-los a todos e à qualidade intemporal de Lev Tolstói.

Boas leituras!

Excerto (pág. 145):
"Acham então os senhores que, depois daquilo, eu concluí que a cena era um acto mau? Nada disso. «Se aquilo era feito com tanta convicção e reconhecido por todos como necessário, significa que eles sabiam alguma coisa que eu não sei», pensava eu, tentanto compreender. Pois bem, por mais que tentasse, não consegui compreender, nem sequer mais tarde, até hoje. E como não compreendi, fui incapaz de entrar para o serviço militar, como desejava antes dessa cena, e mais: não prestei serviço militar nem prestei serviço nenhum. Mas, como é evidente, eu também não prestava para nada."