janeiro 30, 2012

Orgulho Asteca - Gary Jennings

Título original: Aztec
Ano da edição original: 1980
Autor: Gary Jennings
Tradução do inglês: Carlos Romão
Editora: Saída de Emergência

"Em 1530, depois de Hernán Cortés quase extinguir o povo Asteca, o Rei de Espanha ordena ao bispo do México que lhe faculte toda a informação sobre a vida e os costumes desse povo. O bispo, frei Juan de Zumárraga, decide redigir um documento baseado no testemunho de um ancião asteca, um homem humilde e submisso, que irá chocar a moralidade e os preconceitos da Europa. O nome do ancião é Mixtli - Nuvem Escura.
E Mixtli relata com detalhe toda a sua vida: a infância, as leis e os costumes dos seu povo, o sexo e religião, as suas viagens e os seus amores - sempre tormentosos e trágicos. Esta é a empolgante e maravilhosa história  de um homem que representa o choque entre duas civilizações com formas inconciliáveis de ver o Mundo.
A História de Mixtli é em grande parte a história do próprio povo Asteca: épica e de uma dignidade heróica. É o princípio, o auge e a queda de uma colossal civilização."

Orgulho Asteca é um livro grande, não só em número de páginas mas também na história que conta e nas personagens míticas que traz até nós, humanizadas e próximas. Confesso-me uma ignorante no que à cultura e civilização Asteca diz respeito. O meu conhecimento, antes da leitura deste livro, era muitíssimo superficial, daí este livro ser muito mais do que um romance, é também um valioso documento histórico, mesmo que ficcionado, sobre um povo e uma cultura de uma riqueza enorme. Orgulho Asteca é um livro que vale por isso, por tornar o leitor culturalmente enriquecido, e por estar bem escrito, misturando muito bem a parte romanceada com a parte mais documental.
Embora inicialmente tenha sentido alguma estranheza perante a narração de Mixtli, não o achando credível como ancião asteca, essa estranheza depressa desapareceu, não só porque o que Mixtli narra vai validando a forma como o faz mas, também, porque o que nos conta vai-nos agarrando à história e quando damos por isso já lemos o livro todo...

A acção de Orgulho Asteca situa-se no ano de 1530, uns anos depois de os Espanhóis terem chegado ao México e terem conquistado Tenochtítlan, a capital do Império Asteca, a capital do O Mundo Único e actual Cidade do México. Em 1530, temos o povo asteca da capital, completamente subjugado aos conquistadores, dizimado pelas doenças que os europeus trouxeram com eles e praticamente extinto como civilização e cultura.
Quando o Rei de Espanha ordena ao bispo do México que procure conhecer tudo o que for possível conhecer acerca do povo Asteca, surge Mixtli, o narrador desta história e um dos últimos sobreviventes Astecas da região. A história que nos traz é a história da sua vida e, necessariamente, uma visão privilegiada sobre a cultura, a religião e a forma como viviam e se relacionavam os Astecas.
E que vida a de Mixtli! O que este ancião asteca nos vai contando, de coração aberto mas sempre num tom propositadamente desafiante, fazendo questão de narrar ao pormenor cenas que sabe serem moralmente chocantes para os religiosos escrivãos que o ouvem e que, eram também condenáveis aos olhos da sociedade Asteca da época. Os Astecas eram, uma civilização que tinha, neste aspecto regras muito similares aos católicos da época, a homossexualidade, o incesto e o sexo antes do casamento não eram tolerados. Se por um lado a descrição das cenas de sexo me deixavam constrangida (especialmente se calhava lê-las nos transportes), a descrição das cenas de sacrifícios humanos deixavam-me enjoada, pelo que neste livro temos de tudo um pouco e de monótono tem pouco. :)

Mas a vida de Mixtli não foi, ao contrário do que por vezes parece, apenas sexo. Durante este primeiro volume, Mixtli vai estudar para Texcóco, a capital do conhecimento no Império Asteca. Lá aprende a escrever e a ler a complicada língua Nahuatl, aprende a viver como um nobre, cria amizades e, devido à sua característica de ver as coisas como elas são, cria também alguns inimigos que acabam por levá-lo até ao seu primeiro campo de batalha de onde sai como um herói. Perde duas vezes o amor da sua vida de forma trágica, torna-se um mercador bem sucedido e viaja pelo mundo Asteca, e além dele, onde conhece os diferentes povos que habitavam a região. Este primeiro volume das memórias de Mixtli, acaba quando ele encontra novamente o amor e, parece que o destino talvez lhe vá dar algum descanso. Talvez... não sei. Para isso vou ter de ler o segundo volume, Sangue Asteca.

Foi com desconfiança que comecei a leitura deste livro, tive até receio de que o fosse largar mas, felizmente a desconfiança apenas me acompanhou nas primeiras páginas, daí para a frente a leitura foi, de certa forma, compulsiva e extremamente interessante. Gostei da forma como está escrito, gostei das personagens, gostei do que me permitiu aprender e gostei da capacidade que teve de me surpreender. Portanto... gostei de praticamente tudo e, nem facto de quase todos os nomes no livro serem impronunciáveis, estragou a leitura, tornou-a sim, mais exótica! :)

Recomendo sem qualquer reserva!

Boas leituras!

Excerto:
"Se os índios nos oferecem um trabalho barato e útil, isso deve ser considerado, desde um ponto de vista secundário, para poder salvar as suas almas pagãs. Se muitos deles morrem assim, o nome da Igreja será menosprezado. Além disso, se todos esses índios morrerem, quem construirá as nossas catedrais e igrejas, as nossas capelas e mosteiros, os nossos conventos e claustros, as casas de retiro e todos os outros edifícios cristãos? Quem constituirá, então, a maior parte da nossa congregação e quem trabalhará e contribuirá com o dízimo para manter os servos de Deus na Nova Espanha?"

janeiro 22, 2012

[Série] A Guerra dos Tronos

Título Original: Game of Thrones
Realização: David Benioff, D. B. Weiss
Transmissão: HBO (SyFy em Portugal)
Origem: USA

 Sinopse:
"Num mundo em que os Verões duram décadas e os Invernos se prolongam por gerações, as tensões e os jogos de poder, fazem parte da vida. Guerra dos Tronos é uma história coral num mundo mágico: a história de sete reinos, onde reis, rainhas, cavaleiros, vassalos, nobres e tiranos dançam numa batalha de traições, intriga, amor e luxúria.
A primeira temporada da série acompanha várias famílias: os Stark, Senhores do Norte; os Baratheon, que detém a coroa do reino; os Lannister, a poderosa família que controla as finanças do Reino e da Coroa; e os Targaryen, expulsos do trono pela actual dinastia. Entre eles um enorme grupo de cortesãos, súbditos e mercenários que desempenham um papel importante nas histórias cruzadas que compõem esta produção."

Acabei de ver o último episódio da primeira temporada de Game of Thrones, baseada na obra homónima de George R. R. Martin. Li, há uns meses o primeiro livro publicado pela Saída de Emergência, A Guerra dos Tronos e não tinha ficado especialmente impressionada com ele, confesso. 
Esta primeira temporada baseia-se no primeiro volume publicado pelo escritor e que a Saída de Emergência partiu em dois: A Guerra dos Tronos e A Muralha de Gelo.
Apenas li o primeiro e, na altura achei que não trazia nada de novo, que não era especialmente original e, embora soubesse que o livro originalmente não terminava naquele volume, não senti grande apelo para partir imediatamente para o segundo volume. Compreendo agora que se o tivesse feito, conhecendo a história que se seguirá, provavelmente teria gostado mais do livro. :)

É pouco comum gostar mais da adaptação cinematográfica de um livro do que da obra em si mas, neste caso foi o que aconteceu. A série está muito bem feita, com actores fantásticos dos quais destaco Peter Dinklage no papel de Tyrion Lannister. Simplesmente genial! :)

Resultado: tenho o segundo volume da série reservado na Biblioteca e, dada a lista de espera existente, estou a ponderar quanto vale a minha vontade de acompanhar a série, mas só depois de ter lido os livros... :)

Vejam que vale a pena e, agora com mais propriedade, leiam porque vale a pena!


Deixo-vos o trailer da primeira temporada:



[Filme] Millennium 1 - Os Homens Que Odeiam as Mulheres

Título Original: The Girl With The Dragon Tattoo
Realização: David Fincher
Duração: 158 min
Origem: USA

Sinopse:
Mikael Blomkvist é um jornalista de meia-idade, divorciado, que tem passado a sua vida a denunciar a corrupção do mundo dos negócios de Estocolmo na sua revista Millennium.
Quando Henrik Vanger, um poderoso empresário, o convida para um trabalho de investigação, Mikael tem nas mãos material irrecusável. Mas para sua surpresa descobre que, desta vez, esse material não tem nada a ver com escândalos financeiros, mas com o desaparecimento da sobrinha do empresário, Harriet, 36 anos antes, num encontro de família. Com a ajuda da sua nova e rebelde parceira, Lisbeth Salander, uma hacker de alto nível com problemas de comportamento social, irão desvendar muitos segredos da família de Henrik, até então escondidos na penumbra.


Fui ontem ver a versão de David Fincher para a sobejamente conhecida história de Stieg Larsson, Millenium I - Os Homens que Odeiam as Mulheres e gostei bastante.
Já vi os três filmes suecos de que gostei bastante mas acho que este do David Fincher consegue captar melhor a essência do livro, sendo-lhe mais fiel e fiquei com a sensação de que conseguiu explicar melhor todos os acontecimentos. Digo isto porque, vi todos os filmes com o meu mais-que-tudo, que não leu os livros e que neste, pese embora já ter visto os filmes suecos, não houve necessidade de o enquadrar com pormenores do livro, o que acabou por acontecer depois de vermos a versão sueca dos mesmos.

Gostei da escolha dos actores e, embora  Noomi Rapace como Lisbeth Salander seja difícil de igualar, a actriz escolhida por Fincher para este papel, Rooney Mara, não deixou mal a Lisbeth. Embora num registo um pouco diferente porque a Lisbeth de Rooney Mara tem uma aparência mais frágil que a de Noomi Rapace, ambas apanharam muito bem a personalidade da Lisbeth de Stieg Larsson.
Daniel Craig foi também uma boa escolha para o Mikael Bloomkvist, talvez até mais credível que o Michael Nyqvist, da versão sueca.

Embora o filme tenha sido feito a contar com as adaptações dos dois últimos livros da trilogia, não sei se este será o género de filme que o público americano aprecie e valorize de forma a que seja possível a realização/produção dos outros dois filmes. Mas este é, por si só, um filme que vale a pena ver, independentemente de vir a ter continuação ou não.

Deixo-vos os trailer da versão David Fincher:


E o trailer da versão de Niels Arden Oplev, Män Som Hatar Kvinnor:


janeiro 18, 2012

Muana Puó - Pepetela

Título original: Muana Puó
Ano da edição original: 1978 (escrito em 1969)
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote

"[...] Muana Puó uma história de amor num fundo de luta. Era ainda em abstracto, eu nunca tinha visto guerra na minha vida, por isso arranjei a simbologia com a máscara. [...] Vi a fotografia de um cartaz para um espectáculo da Miriam Makeba, com a Muana Puó... e fiquei fascinado. Foi amor à primeira vista. Fechei-me uma semana no quarto, todo branco, com o cartaz à frente e comecei a escrever sem saber o que ia escrever. [...] A estória é perfeitamente intemporal e muito simbólica. O livro foi escrito com a máscara à frente e é para ser lido assim, com a máscara à frente. A acção segue as linhas da máscara: o mundo oval, o rosto, o lago, a boca..."

Pepetela


Pepetela é dos escritores que ultimamente mais me tem surpreendido pela positiva. Os seus livros mais recentes são muito bons e as suas obras mais antigas são surpreendentes. Cada vez o acho mais versátil na forma como escreve, sem medo de evoluir. Muana Puó é o seu primeiro livro e é diferente de todos os que já li dele.
É uma obra cheia de metáforas, onde Pepetela conta uma história de amor, uma história de sonhos realizados e esquecidos. Uma história inquieta, de luta pelos sonhos, de luta por uma vida digna e pela felicidade. A realização de uma utopia, que nas palavras de Pepetela parece ao alcance de qualquer ser humano.

Muana Puó relata a dura subida ao topo da montanha, levada a cabo pelos morcegos, e a conquista de um lugar que, desde o início dos tempos, era pertença dos corvos.
Nesta parábola, os morcegos produzem o mel que os corvos consomem e, alimentam-se dos excrementos dos mesmos. Dos corvos apenas é esperado que grasnem, e isto apenas se eles o quiserem. Numa relação que pouco ou nada tem de simbiótica, os morcegos oprimidos pela soberba dos corvos, revoltam-se e iniciam uma luta pelo direito de verem o mundo aos seus pés, do topo da montanha.
Paralelamente a esta luta entre oprimidos e opressores, Pepetela relata a história de amor de dois jovens morcegos que participam na subida à montanha, na caminhada que mudará o mundo. Ao mesmo tempo que tentam lidar com os sentimentos confusos que os assaltam, tentam encontrar o seu lugar no mundo, mesmo que isso signifique cada um seguir o seu próprio caminho.

Muana Puó é um livro que se lê num piscar de olhos, não só por ser pequeno, mas principalmente porque a história, quase um conto, não convida a interrupções. Tem um ritmo muito próprio e que custa a quebrar quando se tem de deixar o livro de lado.
Está escrito numa linguagem muito africana e com momentos de verdadeira beleza literária, a fazer lembrar um pouco Mia Couto, não tanto na reinvenção da língua, típica deste escritor, mas na atmosfera de sonho que consegue criar com as palavras.

Gostei e recomendo, não só por ser do Pepetela, mas porque é um livro que continua tão actual como no ano em que Pepetela o escreveu, em 1969. Uma obra intemporal de um escritor que não pára de me surpreender.
Vale mesmo a pena reservar umas horinhas para leitura deste livro!

Boas leituras!


Excerto:
"Até que o pressentiu a seu lado. Bastaria virar-se prà direita, atravessar a montanha que os separava, e encontraria os seus olhos. Estremeceu. Não teve coragem de vencer a montanha, rompendo a igualdade de todos os dias. Sentia o abismo perto, ao lado da montanha. Nesta vertente , a tranquilidade e a monotonia. No cimo da montanha, onde o Sol brilhava em turbilhão de cores impossíveis, a angústia do desconhecido, a aurora."

As Velas Ardem Até Ao Fim - Sándor Márai

Título original: A Gyrtyák Csonking Égnek
Ano da edição original: 1942
Autor: Sándor Márai
Tradução do húngaro: Mária Magdolna Demeter
Editora: Publicações Dom Quixote

"Um pequeno castelo de caça na Hungria, onde outrora se celebravam elegantes saraus e cujos salões decorados ao estilo francês se enchiam da música de Chopin, mudou radicalmente de aspecto. O esplendor de então já não existe, tudo anuncia o final de uma época. Dois homens, amigos inseparáveis na juventude, sentam-se a jantar depois de quarenta anos sem se verem. Um passou muito tempo no Extremo Oriente, o outro, ao contrário, permaneceu na sua propriedade. Mas ambos viveram à espera deste momento, pois entre eles interpõe-se um segredo de uma força singular..."

De Sándor Márai apenas li A Herança de Eszter (já comentado aqui) de que gostei muito. Com a leitura de As Velas Ardem Até ao Fim, confirmo que este é um escritor a repetir. Gosto da forma com escreve, com o coração, sobre temas difíceis de descrever mas que ele parece dominar sem grande esforço. E gosto muito das personagens, complexas e ao mesmo tempo simples, cheias de medos, de defeitos, que procuram, ao longo do livro encontrar as respostas para o que as atormenta. Também neste livro, as perguntas são feitas embora nem todas obtenham resposta. Será por as perguntas serem feitas sabendo de antemão as respostas? Gosto deste escritor! :)

Henrik é rico e exerce sobre os outros uma espécie de fascínio que não advém apenas da sua posição social privilegiada. Por ser bem formado, com bom coração, chegando a ser, muitas vezes ingénuo, o poder que acaba por ter sobre os outros não é usado de forma leviana. Reconhece a sorte que tem e partilha-a sem procurar o reconhecimento dos outros.
Henrik conhece Konrád no colégio e tornam-se inseparáveis. Konrád, ao contrário de Henrik é pobre e menos expansivo. É uma pessoa mais introspectiva e um apaixonado pela música. Embora a amizade que sente por Henrik seja sincera, esta não deixa de ser assombrada por alguma inveja. Inveja porque, enquanto Henrik nunca conheceu qualquer dificuldade na vida, Konrád vive angustiado pelo esforço que a sua educação exige dos pais. Conhece o mundo em que Henrik se movimenta e, por despeito, a que prefere chamar de superioridade intelectual, despreza esse mundo e as pessoas que dele vivem e que sem ele não sabem viver.

A história do nobre sentimento que une estes dois homens, desde a adolescência, é-nos contada por um Henrik idoso, a viver isolado no palácio da família, lugar onde nasceu, cresceu e pretende morrer. As memórias são provocadas por uma carta de Konrád, que após quarenta e um anos de ausência, escreve pedindo para o ver.
Que razões levaram estes dois homens a quebrarem um laço que, aparentemente, era inquebrável? É o que Henrik, sobretudo Henrik, nos vais contando enquanto as velas ardem até ao fim, na sala onde, há quarenta e um anos, estes dois amigos, mais do que irmãos, se encontraram pela última vez.

Sandór Márai, numa escrita muito envolvente, bonita e rica, faz uma homenagem à amizade e à força que este sentimento pode ter. De como é diferente do amor que une um homem e uma mulher, de como perdura mesmo quando a traição é uma certeza. De como mantém a vida dos intervenientes em suspenso impedindo-os de continuar com as suas vidas enquanto todas as perguntas não tiverem uma resposta.

Gostei muito e recomendo, como é óbvio!

Boas leituras!


Excerto:
"Quarenta e um anos, disse finalmente em voz baixa. Nos últimos tempos falava em voz alta no seu quarto, mesmo quando estava sozinho. Quarenta e um anos, disse depois perplexo. Como um aluno que se atrapalha no meio das complicações da lição inesperada, corou, inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos húmidos. O pescoço avermelhado intumesceu por cima da gola do casaco amarelo como o milho. Dois de Julho de mil oitocentos e noventa e nove, a caçada foi nesse dia, murmurou. Depois ficou calado. Apoiou os cotovelos na estante, preocupado como um aluno aplicado, e voltou a fitar o texto, essas linhas escassas escritas à mão, a carta. Quarenta e um, disse por fim em voz rouca. E quarenta e três dias. Foi tudo isso."

janeiro 09, 2012

Royal Flash, A Odisseia de Um Cobarde - George MacDonald Fraser

Título original: Royal Flash
Ano da edição original: 1970
Autor: George MacDonald Fraser
Tradução: Ester Cortegano
Editora: Saída de Emergência

"Após o seu regresso do Afeganistão como herói de guerra, Flashman vê-se envolvido com a bela e perigosa Lola Montez e o malévolo Otto von Bismarck numa batalha de engenhos que irá decidir o destino de um continente.
Dando início a uma aventura épica, o nosso galã embrulha-se numa sucessão desesperada de fugas, disfarces, encontros amorosos e combates singulares que atravessam os salões de jogo e masmorras de Londres para culminar nas salas de trono da Europa.
Será que os talentos de Flashman irão salvar o nosso sortudo cobarde das garras de Otto von Bismarck e da bela Lola Montez?"

Royal Flash é o volume que dá continuação à vida inacreditável de Flashman, uma figura mítica do século XIX londrino. Flashman é um cobarde convicto que, vítima de uma sucessão de mal-entendidos acaba por regressar a casa, depois de combater na guerra do Afeganistão, como um herói nacional, com direito a ser recebido pela rainha e tudo. :) É desta forma que acaba o primeiro volume de memórias de Flashman, intitulado Flashman, A Odisseia de Um Cobarde (já aqui comentado) escrito pelo próprio aos oitenta e muitos anos de idade.

Em Royal Flash vamos encontrar Flashman ainda a colher os frutos de uma glória que não mereceu mas que, em abono da verdade, também não procurou. Flashman continua sedutor, mulherengo, a viver às custas do sogro, fanfarrão e um desastrado íman de confusão e situações caricatas. :)
Desta vez, não resiste aos encantos de "uma das mais lindas raparigas que alguma vez vira na minha vida. Não - a mais linda." de seu nome Rosanna aka Lola Montez. Por causa desta mulher fatal vê-se envolvido com Otto von Bismarck, conhecido como o Napoleão da Alemanha, que se encontrava na altura a fazer uma viagem por Londres e, era um homem perigosíssimo. Mais uma vez, Flashman não fazia ideia daquilo e com quem se estava a meter...
De peripécia em peripécia, Flashman acaba na Alemanha, como protagonista no plano maquiavélico de Otto, para a unificação da Alemanha. O nosso cobarde de estimação foi peça fundamental na guerra da Prússia contra a Dinamarca, pela conquista de Schleswig-Holstein, na altura território dinamarquês, hoje alemão. Que papel desempenhou? Bem para isso têm de ler o livro. ;) Posso apenas acrescentar que o desempenhou com muita convicção e com a típica capacidade para escapar ileso das mais improváveis situações.

É um livro, à semelhança do primeiro, muito divertido e muito inteligente na forma como mistura factos históricos e personagens importantes da história mundial com a ficção. George MacDonald Fraser constrói toda uma alternativa, improvável é certo mas, imensamente divertida, à versão oficial dos acontecimentos sem deixar de, com isso dar uma lição de história. Gosto muito da escrita deste autor.
Achei Flashman neste livro, menos cobarde embora tudo faça para fugir às responsabilidades e não hesite em vender a mãe se isso fosse necessário. Mas achei-o mais resignado, sabendo que não podia escapar ao que lhe era pedido, pegava "o touro pelos cornos", como se costuma dizer e, lá ia ele tentar safar-se de mais uma armadilha do destino. Desta vez não acaba como um herói, no entanto, sai desta aventura mirabolante e vertiginosa com vida porque, mais uma vez, os acontecimentos desenrolam-se de tal forma que este acaba por salvar uma vida para além da dele. E uma vida importante, por sinal. :)

Flashman continua um filho da mãe de primeira e é neste livro ainda mais sedutor, divertido e irresistível! Não consigo dizer qual dos volumes me agradou mais... Gosto dos dois e tenho pena que, aparentemente, a Saída de Emergência não vá continuar a edição das "memórias" deste cobarde que me deixa tão bem-disposta!

Gostei muito e recomendo!

Boas leituras!

Excerto:
"Os estudiosos, claro, não concordam. São as políticas, dizem eles, e os esquemas subtilmente montados pelos estadistas que influenciam os destinos das nações; as opiniões dos intelectuais, os escritos dos filósofos, decidem o futuro da humanidade. Bem, esse podem fazer a sua parte, mas, pela minha experiência, o curso da história é muitas vezes determinado pelo facto de alguém ter uma dor de barriga ou não ter dormido bem, ou de um marinheiro se ter embebedado, ou de uma aristocrática meretriz agitar o traseiro."

"Os cobardes, como observou Shakespeare, morrem muitas vezes antes das suas mortes, mas não há muitos que tenham expirado em espírito tantas vezes como eu."

janeiro 05, 2012

O Jogador - Fiódor Dostoiévski

Título original: Igrok
Ano da edição original: 1866
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução do russo: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Editorial Presença

"«O Jogador» foi publicado em 1866, ano em que saiu também «Crime e Castigo», volume que inaugurou esta colecção das obras de Fiódor Dostoiévski, sendo também a primeira a ser traduzida directamente do russo. Passado na Alemanha, num ambiente de casinos, Aleksei Ivánovitch destaca-se como figura principal - um jovem com um forte sentido crítico em relação ao mundo que o rodeia, mas carente de objectivos, que descobre em si a paixão compulsiva pelo jogo. Dostoiévski expõe as personagens nas suas motivações mais íntimas, com humor e ironia, criando uma obra simultaneamente viva e profunda, na melhor tradição dostoievskiana. O fascínio torturado dos jogadores adequa-se genialmente ao tratamento de temas caros ao autor, e ainda o descontrolo e o desespero, as paixões que raiam a loucura e a solidão sem perspectivas, além de uma análise social impiedosa, por vezes satírica. O Jogador, uma das obras mais lidas deste autor, tem muito da experiência do próprio Fiódor Dostoiévski, que também foi um jogador compulsivo durante vários anos."

Aleksei Ivánovitch trabalha como preceptor na família de um General russo que se encontra a passar uma temporada na Alemanha, numa zona de termas, cuja atracção principal é o casino.
O General encontra-se numa situação financeiramente complicada, falido e muito endividado deposita todas as suas esperanças na morte de uma tia velha, supostamente muito doente, para receber em herança toda a sua fortuna. É com desespero que o General se apercebe de que, não só a tia não está a morrer, como continua intratável e muito senhora do seu nariz, ou do seu dinheiro, o que para o caso vai dar no mesmo. :) Toda a história gira à volta de dinheiro, de ganhar e perder dinheiro. Em como gastá-lo e ganhá-lo sem esforço e na futilidade que traz para a vida daquelas pessoas.

A história é contada na perspectiva de Aleksei Ivánovitch, um jovem descontraído, que dá a toda a narrativa um tom divertido e leve. A única coisa que angustia Aleksei, para além do francês que ronda o General, é o facto de a sua amada, Polina Aleksándrovna, e enteada do General, menosprezar os sentimentos que ele nutre por ela.
Tudo o que se passa com a família do General e com a tia supostamente moribunda parece diverti-lo muito, e é com olhar crítico que analisa toda aquela gente e a forma como vivem as suas vidas. Existe, no entanto, algum despeito ou talvez alguma mágoa por não pertencer ao mesmo mundo que Polina e, dessa forma poder aspirar a subir na consideração da jovem, conquistando o seu amor.
Aleksei nunca jogou no casino mas sente pelo jogo uma forte atracção e, a certeza que tem de que será numa mesa de jogo que a sua vida mudará drasticamente, só torna este fascínio ainda mais perigoso. Aleksei sente que, na primeira vez que jogar para si, a sua vida mudará e irá ganhar muito dinheiro.
Aleksei conhece de perto o que o jogo faz com as pessoas, a loucura que provoca, a destruição que traz mas, conhece também o lado apetecível do jogo, a probabilidade que existe de ficar milionário em apenas uma jogada na roleta.
Quando a oportunidade aparece, será o seu comportamento muito diferente do dos outros jogadores? Ou o que ele tanto critica na família do General esconde afinal a vontade de pertencer a esse mundo fascinante e irresistível? As repostas são óbvias, mas não é por isso que a rapidez da degradação deixa de surpreender. :) A velocidade com que as certezas de ontem passam a coisas do passado e estranhamente distantes, é elevada.

O que posso dizer acerca deste livro é que é bom, muito bom! Sem grandes pretensões, Dostoiévski consegue transformar uma história, onde pouco ou nada acontece e onde o único tema é o jogo, num livro que se lê por puro prazer. Gostei das personagens, porque são divertidas e porque nos preocupamos com o seu destino. Sofremos com as opções pouco sensatas que tomam, exultamos quando ganham, e sofremos quando perdem. A escrita é de tal maneira próxima e eficiente que é fácil sentirmos que estamos naquele casino a observar o fazer e desfazer de vidas como se uma e outra coisa fossem iguais. E mesmo assim, o desejo que sentimos de nos juntarmos a eles, de sermos nós a apostar, não diminui porque sentimos, tal como eles, que vamos ganhar, que aquela vai ser a jogada que vai virar a sorte. :)
Conseguir transmitir tudo isto, de forma clara, num livro que e é relativamente pequeno é algo que só os grandes escritores, como Dostoiévski, conseguem fazer. :)

Gostei muito e só posso recomendá-lo!

Boas leituras!

Excerto:
"- Le jeu est fait! - gritou o croupier. A roleta girou e saiu o treze. Perdemos!
- Mais, mais, mais! Põe mais! - gritava a avó. Eu já não a contrariava e, encolhendo os ombros, apostei mais doze fredericos no zéro. A roleta girou demoradamente. A avó tremia ao seguir o movimento da roleta. «Estará a pensar que sai outra vez o zéro?» - pensava enquanto olhava espantado para ela. Do rosto dela irradiava a profunda convicção de que ia ganhar, a esperança certa de que iam já gritar zéro! A bolinha imobilizou-se numa casa.
- Zéro! - gritou o croupier.
- Viste!!! - a avó estava voltada para mim num triunfo louco.
Também eu era jogador - senti-o nesse mesmo instante. Tremiam-me as mãos e as pernas, andava-me a cabeça à volta."