março 31, 2018

O Amante Bilingue - Juan Marsé

Título original: El Amante Bilingüe
Ano da edição original: 1990
Autor: Juan Marsé
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora:Publicações Dom Quixote

"O Amante Bilingue é a história de uma esquizofrenia singular e, sobretudo, a história de uma nostalgia: a nostalgia de ser outro, de exibir outra máscara, de enganar o espelho. Uma aventura grotesca e inverosímil que é também uma sátira irónica e feroz à dualidade social e linguística catalã, agravada pelas diferenças de classe."

Gosto de conhecer novos escritores. Gosto de não saber o que vou encontrar. Escolher um livro de um escritor nunca lido para mim é mais uma questão de instinto do que outra coisa. A mim, o que me leva a pegar num livro é capa e o título. E o que faz com que venha para casa com ele é essencialmente a capa, o título e o preço. Confesso que leio na diagonal a sinopse, apanho a ideia geral e decido: sim ou não. É tão superficial quanto isto. E não me tem corrido nada mal.

O Amante Bilingue, de Juan Marsé foi uma boa surpresa. O nome Juan Marsé não me era estranho. Um daqueles autores que ficam no nosso subconsciente e que um dia se sobrepõem a todos os outros.
É um livro escrito num tom divertido e que acaba por ser triste e de certa forma constrangedor que nos faz sentir mal por, ao mesmo tempo, nos querer fazer rir.

Joan Marés é um homem de ideias fixas, que se apaixona por uma mulher mais nova e que vem de um estrato social muito diferente do seu. Marés vai vivendo feliz até ao dia em que apanha a mulher com um engraxador, alguém muito abaixo da sua classe.
Ela sai de casa e nunca mais o procura, sem qualquer arrependimento e sem qualquer remorso. Ele fica e nunca mais é o mesmo.
Passa a viver obcecado por Norma, toda a sua vida passa a girar em torno dela e da ideia que criou dela. Ao longo da história vamos percebendo que Marés ama uma Norma que na realidade não existe, talvez nunca tenha existido a não ser na sua cabeça. Ama a ideia, ama o que ela representa e, acima de tudo, ama a pessoa que gostaria de ter sido com ela.  

Passam-se uns anos desde que Norma saiu da sua vida e vamos encontrar Marés desfigurado, a ganhar a vida a tocar acordeão na rua, como um mendigo. Toca em sítios onde sabe que vai poder ver Norma. Sabe que ela não o vai reconhecer, mudou tanto desde que ela o deixou...
No dia em que Norma o deixou, Marés perdeu qualquer coisa, perdeu-se a ele, perdeu a sua auto-estima, perdeu a vontade de ser ele. Sonha ser outro homem, um que vá de encontro ao gosto de Norma, um homem auto-confiante, vivido e irresistível. Nos seus sonhos começa a surgir uma personagem, a quem deu o nome de Faneca, o nome do seu amigo de infância. Companheiro de misérias e brincadeiras. Marés começa a pensar em Faneca como a sua oportunidade para reconquistar Norma. O Faneca de hoje não é senão o próprio Marés, uma personalidade alternativa que aos poucos vai tomando conta da vida de Marés. Aos poucos a personalidade de Faneca vai empurrando o inseguro Marés para longe. E à medida que Faneca se vai tornando mais dominante, parece que o pequeno mundo de Marés se vai tornando maior. Dá-se uma espécie de regresso às origens, ao sítio onde cresceram e começa a existir vida para além de Norma. A angústia e a confusão permanente de Marés, parece atenuar-se quando coloca a lente de contacto verde e veste o fato das riscas. A vida parece mais fácil quando Marés se esquece dele próprio.

O Amante Bilingue é mais do que a luta de Marés, entre o que se é e o que se gostaria de ser. Esta luta representa a dualidade que se vive em Barcelona. Dualidade linguística, numa cidade dividida entre o catalão e o castelhano. Uma cidade dividida entre duas nacionalidades e duas identidades muito distintas. Onde "something in between" não é aceite, ou és catalão ou és espanhol. E se sentes que não pertences de forma inequívoca a um dos lados corres o risco de enlouquecer ao viveres numa luta constante contigo mesmo, até à exaustão.

Gostei muito da escrita de Juan Marsé e da forma como nos vai contando a história de Marés. Gostei muito das personagens e da envolvência que consegue criar. Este vai ser um escritor a repetir, definitivamente.

Recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras!


Excerto (pág. 146):
"Ao atravessar o portão do gradeamento, Marés enfrentou o ruidoso trânsito da avenida e sentiu uma ameaça de vertigem. Durante brevíssimos instantes sofreu a sensação de não ser ninguém e de se encontrar em terra de ninguém. Olhou para trás para ver o parque anoitecido, amodorrado sob uma ténue neblina. As luzes da casa brilhavam serenas e remotas entre as árvores, como na outra margem da vida. Apoiou a mão no dragão alado da grade de ferro e deixou escapar um profundo suspiro. A sua atuação perante Norma não o tinha divertido nada e interrogava-se sobre a razão. Não por ela não ter olhado com bons olhos: a ardente sociolinguista cairia nos braços experientes do murciano, maldita seja, era apenas uma questão de tempo. Mas o que ele se propunha não seria, no fundo, pôr os cornos a si mesmo? A ideia fê-lo extraviar-se um pouco mais naquela terra de ninguém e depois sorriu. E porque não?, disse a si próprio: se outros mos puseram durante anos, eu também o posso fazer, isto é, esse grande fantasma chamado Faneca.
Com a mão procurou atrás de si a língua retorcida na boca do dragão e apoiou-se nela; então, voltou a sentir a cabeça embotada e a alma amarga como se sofresse a ressaca de um sonho mau. De repente recordou a tangerina podre que num dia distante ali esteve enfiada, na língua do dragão, e voltou-lhe à boca o sabor azedo. No entanto, apesar da fome que em criança tinha passado, não se lembrava de ter comido aquela tangerina. Comeu-a Faneca, que ainda tinha mais fome do que eu, disse a si mesmo. Uma borboleta nocturna de asas brancas revoou em torno dele e chocou várias vezes na cabeça do dragão apertada contra o gradeamento de ferro."