abril 28, 2014

Homem na Escuridão - Paul Auster

Título original: Man in the Dark
Ano da edição original: 2008
Autor: Paul Auster
Tradução: José Vieira de LIma
Editora: Edições ASA

"E se a América não estivesse em guerra como Iraque mas consigo própria? Nesta América, as Torres Gémeas não caíram e as eleições presidenciais de 2000 conduziram à secessão, com estado após estado a abandonar a união e uma sangrenta guerra civil a instalar-se. Este mundo paralelo é criado pela mente e coração perturbados de August Brill, um crítico literário vítima de insónias. Com 72 anos, Brill está a recuperar de um acidente de viação em casa da filha e, para afastar recordações que preferia esquecer - a morte da mulher e o violento assassinato do namorado da neta -, conta histórias a si próprio. Gradualmente, o que Brill tenta desesperadamente impedir insiste em ser contado. Com a neta a juntar-se-lhe de madrugada, ele arranja finalmente coragem para revisitar os seus piores dramas.

Chocante e apaixonante, Homem na Escuridão é o exemplar romance do nosso tempo, um livro que nos obriga a confrontar a escuridão da noite celebrando a existência das pequenas alegrias do dia-a-dia num mundo capaz da mais grotesca violência."

Paul Auster é um dos meus autores favoritos e quando pego num livro dele é sempre com a certeza de que serão dias bem passados. Este Homem na Escuridão, felizmente, confirmou a regra não sendo a excepção. :)

O Homem na Escuridão é August Brill, um septuagenário, que sofreu um acidente de viação e está a recuperar em casa da filha. Sofre de insónias e as noites que passa sozinho no escuro do quarto, passa-as a tentar não recordar tudo aquilo e todos aqueles que perdeu ao longo da vida. Para conseguir sobreviver a mais uma noite sem enlouquecer, Brill inventa histórias, vive-as na sua cabeça, e algumas dessas histórias parecem ganhar vida, numa outra dimensão. Na história que Brill conta a si mesmo na escuridão do quarto, as Torres Gémeas nunca caíram e os EUA não estão em guerra com o Iraque. Nas eleições de 2000, George W. Bush foi o vencedor, no entanto, muitos dos Estados revoltaram-se, proclamaram independência, dando-se início a uma dura guerra civil que se arrasta há uma série de anos.

E de que tenta fugir Brill? Tenta esquecer a morte e a solidão. Tenta não pensar na sua companheira de uma vida, que recentemente lhe morreu, e que nem sempre valorizou. Tenta não pensar no arrependimento. Tenta esquecer a dor da filha, ela própria uma mulher solitária depois de um divórcio complicado com um homem que nunca deixou de amar e tenta ultrapassar a dor de envelhecer sem a mulher e com limitações físicas.

Brill tenta fugir das recordações que o atormentam e a história da guerra civil parece ser a forma que encontrou de continuar a viver com as imagens horríveis que não consegue esquecer, do assassinato do namorado da neta. Se a guerra com o Iraque nunca tivesse acontecido, a neta de Brill nunca teria perdido o namorado que foi, voluntariamente, trabalhar para o Iraque. Brill e a neta nunca teriam assistido ao vídeo onde o namorado é morto pelos rebeldes que o raptaram e ele nunca teria de conviver com a profunda tristeza da neta.

Quando numa dessas intermináveis noites, a neta, também ela a fugir dos fantasmas que vivem na escuridão, vem ter com ele ao quarto e lhe pergunta como conheceu a avó, Brill acaba por reviver toda a sua vida. É neste desfiar de memórias que acabamos por nos ir apercebendo, ao mesmo tempo que o próprio Brill, que a felicidade é feita de pequenas coisas, que no fim aquilo que recordamos é essencialmente bom e que as coisas menos boas, muitas delas provocadas por más escolhas, são também elas essenciais para seguirmos em frente com outras certezas. O que Brill contou à neta foi uma bonita história de amor, que sofreu alguns percalços pelo caminho, mas que nunca deixou de ser uma bonita história de amor, de cumplicidade e de amizade entre duas pessoas bastante diferentes uma da outra.
É nesta fase que sentimos que o processo de luto destes dois se aproxima do fim. A fase em que, pensar nas pessoas que perdemos não nos provoca apenas dor e angústia, a dor e a angústia vêm acompanhadas pela saudade, que nunca nos deixa, e pela memória das coisas boas, que são as que acabam por prevalecer.

Paul Auster recorre mais uma vez às suas histórias dentro da história, arte que domina como ninguém, às referências cinematográficas e às personagens angustiadas e sofredoras. Escreve como ninguém sobre a perda e sobre o processo de sobreviver à perda, ou não, porque nem todos conseguem sobreviver.

Recomendo! Tenho dúvidas de que alguma vez não vá recomendar Paul Auster. Quem o conhece não precisa de recomendações, quem nunca leu, deveria ler. :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 46):
"Porque é que eu estou a fazer isto? Porque é que teimo em meter por estes caminhos velhos e gastos; porquê esta compulsão para remexer em velhas feridas e fazer-me sangrar de novo? Seria impossível exagerar o desprezo que às vezes sinto por mim. Eu deveria estar a ler o manuscrito de Miriam e, afinal, estou de olhos fitos numa fenda da parede enquanto vasculho nos poços da memória em busca de fragmentos do passado, coisas que se quebraram e que nunca poderão ser reparadas. Dêem-me a minha história. É tudo o que eu quero agora - a minha insignificante história para manter os fantasmas longe, muito longe de mim."

abril 13, 2014

Beatriz e Virgílio - Yann Martel

Título original: Beatrice and Virgil
Ano da edição original: 2010
Autor: Yann Martel
Tradução: Fátima Andrade
Editora: Editorial Presença

"Henry, um escritor reconhecido, decide escrever um livro, meio ficção e meio ensaio, como forma de abordar todos os aspectos de um mesmo tema. Completamente desencorajado pelos seus editores, desiste do projecto e vai viver para outra cidade. Aí, contudo, continua a receber cartas de leitores e, um dia, um taxidermista escreve-lhe a pedir ajuda. Henry apercebe-se então de que estão ambos a tentar escrever sobre o mesmo tema. Um livro polémico e provocador, que confirma o autor de A Vida de Pi, o Man Booker Prize de 2002, como um dos mais surpreendentes escritores canadianos da actualidade."

Embora tivesse alguma curiosidade para voltar a ler Yann Martel, autor do surpreendente A Vida de Pi, não tinha grandes expectativas porque a maioria das críticas que li aos outros livros que escreveu eram mais ou menos desencorajadoras. Na realidade, este Beatriz e Virgílio não me encantou, achei-o até um pouco pretensioso.

Henry é um escritor conhecido que tem dedicado os últimos anos ao livro que está a escrever sobre o Holocausto. Na realidade Henry está a trabalhar em dois livros, uma obra de ficção e um ensaio sobre o Holocausto e Henry gostaria que os dois fossem publicados como um único livro, com a ficção a complementar a dura realidade. Quando os seus editores, de forma, mais ou menos simpática lhe dizem que a ideia é péssima e que os livros não são assim tão geniais, Henry fica em choque. Sem capacidade para recomeçar a escrever, parte com a mulher para uma cidade na Europa onde acabam por se ir integrando e ficando, e uma viagem que começou por ser isso mesmo, uma viagem, acaba por ser tornar na nova casa do casal que não pensa regressar à sua vida passada.

Henry ocupa os seus dias a descobrir novas vocações em si, tem aulas de música, está integrado numa companhia local de teatro amador e aguarda com ansiedade a chegada do primeiro filho de ambos. O único contacto que vai tendo com a sua carreira literária são as cartas dos leitores que lhe chegam e às quais faz questão de responder uma a uma. E é nesse correio de leitores que surge um envelope, de um leitor misterioso, que por coincidência vive perto de Henry. Ao contrário dos outros leitores este envia a Henry um excerto de uma peça de teatro, cujos protagonistas são Beatriz e Virgílio, duas personagens que parecem ter sido inspiradas nas homónimas de Dante, na sua Divina Comédia. O tom no pequeno bilhete que o misterioso leitor enviou com a peça de teatro e a qualidade literária da mesma, deixam Henry curioso e com vontade de conhecer o seu autor. E é o que faz, num dos seus passeios diários com o seu cão, vai até à porta da morada que constava no envelope que recebeu e, após um momento de hesitação, por estar defronte de um taxidermista, entra. O misterioso leitor e autor da peça de teatro é um sexagenário, homem duro, de poucas palavras, ríspido e pouco simpático.
Aparentemente o homem precisa da ajuda de Henry para acabar de escrever a sua peça.

E o livro vai decorrendo desta forma, com Henry a tentar perceber quem é o taxidermista e como é que alguém, aparentemente tão frio, tem a capacidade de escrever algo tão profundo em termos de emoções e de sensibilidade. À medida que vai conhecendo o estranho homem, Henry vai descobrindo alguém que carrega uma culpa, que não sabe como se redimir e que tenta pedir desculpa através de uma peça de teatro, cujos protagonistas são um burro e um macaco. Mais uma vez Yann Martel a recorrer aos animais para fazer passar a mensagem.
Nós, leitores, nunca temos a certeza de que o taxidermista tenha noção de quão monstruoso foi aquilo da qual fez parte, mas também nunca sabemos em que condições e que papel desempenhou no Holocausto, porque é disso que estamos a falar.

Não tenho muito mais a dizer sobre o livro. Não que não haja por onde esmiuçar, sobre o Holocausto existiria sempre muito para dizer. Mas no que ao livro diz respeito, não encontro muito mais que dizer. Como disse no início, achei-o um pouco pretensioso. Tenho sempre alguma aversão a livros sobre escritores onde nas entrelinhas se vão percebendo alguns auto-elogios.
Destaco a peça que o taxidermista está a escrever, Beatriz e Virgílio são as verdadeiras estrelas deste livro e a descrição que Virgílio faz de uma pêra, porque Beatriz nunca viu ou comeu tal fruto, é deliciosa.

Embora não tenha sido um livro que me tenha prendido particularmente, não deixa de ser uma obra que vale a pena ler. Sei de muito boa gente que a considera uma obra-prima.  Mais por isso que pela minha opinião muito pessoal, recomendo! :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 43):
"Beatriz: Mas a que sabe? Não aguento mais.
Virgílio: Uma pêra madura transborda de suculência doce.
Beatriz: Oh, isso parece bom.
Virgílio: Corta uma pêra e verás que a sua polpa é de um branco incandescente. Brilha com uma luz interior. Aqueles que trazem consigo uma faca e uma pêra nunca têm medo do escuro.
Beatriz: Tenho de provar uma.
Virgílio: A textura de uma pêra, a sua consistência, é outra coisa difícil de pôr em palavras. Algumas pêras são um tudo ou nada crocantes.
Beatriz: Como uma maçã?
Virgílio: Não, nada parecido com uma maçã! Uma maçã resiste a ser comida. Uma maçã não +e comida, é conquistada. A qualidade crocante de uma pêra é muito mais atraente. É generosa e frágil. Comer uma pêra é semelhante a... beijar.
Beatriz: Oh, céus! Parece tão bom.
Virgílio: A polpa de uma pêra pode ser ligeiramente granulosa. Contudo, derrete-se na boca.
Beatriz: Tal coisa é possível?
Virgílio: Com todas as pêras. E isso é só o aspecto, o toque, o cheiro, a textura. Ainda nem te falei do sabor.
Beatriz: Meu Deus!"