dezembro 04, 2014

O Festim dos Corvos - George R. R. Martin

Título original: A Feast for Crows (part 1)
Ano da edição original: 2005
Autor: George R. R. Martin
Tradução: Jorge Candeias
Editora: Saída de Emergência

"Continuando a saga mais ambiciosa e imaginativa desde O Senhor dos Anéis, As Crónicas de Gelo e Fogo prosseguem após o violento triunfo dos traidores.
Enquanto os senhores do Norte lutam incessantemente uns contra os outros e os Homens de Ferro estão prestes a emergir como uma força implacável, a rainha regente Cersei tenta manter intacta a força dos leões em Porto Real.
Os jovens lobos, sedentos por vingança, estado dispersos pela terra, cada um envolvido no perigoso jogo dos tronos. Arya abandonou Westeros rumo a Bravos, Bran desapareceu na vastidão enigmática para além da Muralha, Sansa está nas mãos do ambicioso e maquiavélico Mindinho, Jon Show foi proclamado comandante da Muralha mas tem que enfrentar a vontade férrea do rei Stannis e, no meio de toda a intriga, começam a surgir histórias do outro lado do mar sobre dragões vivos e fogo...
Numa terra onde muitos se proclamam como reis e rainhas, todos estado convidados para o Festim dos Corvos. Venha descobrir quem serão os sobreviventes!"

*Só pode conter spoilers*

Mais um passinho em frente na saga de George R. R. Martin. Este volume pouco mais é do que um passinho. Cheira-me que um passinho importante mas sem que se avance muito na história.

Este é um volume essencialmente de mulheres. A única excepção será Samwell, o resto da história gira em torno de Cersei, Brienne, Arya, Sansa e Asha Greyjoy. Parece que o autor está com vontade de dar os sete reinos a uma mulher... :)

Cersei, após a morte do pai tenta manter o poder nas suas mãos. Vê na desgraça que caiu sobre os Lannister a oportunidade de nunca mais depender de um homem. Sem deixar de procurar o irmão Tyrion que odeia para além do que é compreensível.

Brienne ganha neste volume algum protagonismo, na procura de Sansa, desaparecida desde que Joffrey foi envenenado. Parece-me que o autor tem planos para ela. É uma personagem simpática e, de certa forma, divertida por isso ainda bem que não chegou a hora de ficar sem cabeça. ;)
Arya, a fantástica Arya, uma autêntica sobrevivente, depois de abandonar o Cão de Caça à sua sorte, parte para Bravos, terra de Syrio Forel e de Jaqen H'ghar. Em Bravos é acolhida numa espécie de templo, um sítio misterioso sobre o qual não se revela muito. Quem são as pessoas que lá vivem e o que professam não é, ainda claro. Arya, no entanto parece querer ficar ligada a eles e... logo veremos o que a espera. Torço por ela e se a miúda me morre antes do final glorioso que lhe desejo não leio mais nenhum livro!

Sansa continua no ninho de águia com o Mindinho. Ao contrário da irmã, Sansa não parece ter encontrado ainda o seu lugar na história e eu, como leitora continuo sem saber muito bem o que pensar dela. Embora sinta que o seu coração é Stark, não sei como é que tudo aquilo por que passou a mudou. Para que lado irá pender?

Asha Greyjoy ganha algum protagonismo neste volume ao mesmo tempo que a história se concentra na escolha de um novo rei das ilhas de ferro após a morte inesperada do pai de Asha e Theon Greyjoy. Mais uma mulher com pretensões a reinar.

Por fim Samwell, a pedido de Jon Snow, inicia a viagem de regresso a casa,  na companhia de Gilly, Maester Aemon e um irmão de negro, deixando a Muralha e os seus irmãos ajuramentados para trás. Pelo menos neste volume, não me parece que a vida de Samwell vá ser fácil daqui para a frente...

E toda a gente fala dos Dragões de Daeneryes Targaryen, embora poucos acreditem que existam de verdade.:)

Que venha o próximo!

Boas leituras!


Excerto (pág. 343):
" (...) Em que te faz pensar o cheiro das nossas velas a arder, pequena?
Winterfell, podia ter dito. Cheira-me a neve, fumo e agulhas de pinheiro. Cheira-me a estábulos. Cheira-me ao riso de Hodor e à luta de Jon e Robb no pátio, e a Sansa a cantar sobre uma estúpida bela senhora qualquer. Cheira-me às criptas onde estão os reis de pedra, cheira-me a pão quente a cozer, cheira-me ao bosque sagrado. Cheira-me à minha loba, cheira-me ao seu pêlo, quase como se ainda estivesse junto a mim.
- Não me cheira a nada - disse, para ver o que ele diria.
- Mentes - disse ele - mas podes guardar os teus segredos, se quiseres, Arya da Casa Stark."

A Hora do Vampiro - Stephen King

Título original: Salem's Lot
Ano da edição original: 1975
Autor: Stephen King
Tradução: Carlos Pereira
Editora: Bertrand Editora

"Ben Mears, um escritor de sucesso, regressa ao Lote de Jerusalém (também conhecido como Lote de 'Salem), no Maine, para escrever um livro acerca da casa que o assombra desde criança. Ao chegar à sua cidade natal, depara-se com um cenário de pesadelo:  a cidade, isolada, está infestada de vampiros, que espalham o caos e a morte. Na esperança de conseguir travá-los, Ben Mears consegue reunir um pequeno grupo de pessoas para combater o Mal que invadiu a cidade.

Segundo romance de Stephen King, A Hora do Vampiro tornou-se uma referência mundial na literatura de terror."

Não é novidade que gosto de Stephen King, também não é novidade que nem tudo o que ele escreve é do meu agrado e que tendo a gostar mais das suas primeiras obras. Isto para dizer que A Hora do Vampiro (tradução para português que não entendo) é do meu agrado. É um livro bem estruturado, com princípio, meio e fim, principalmente fim, o calcanhar de Aquiles do escritor. :) O ambiente criado é suficientemente realista para quase me fazer levantar e verificar se as janelas e portas estão devidamente fechadas. :) A química criada entre os protagonistas e entre estes e as maléficas criaturas que vieram tomar a cidade pelos dentes (não resisti) é boa e mantem-nos agarrados ao livro.

Acho que não vale a pena entrar em pormenores relativamente ao enredo porque na realidade não é mais do que uma típica história de vampiros. E com típica quero dizer uma história onde os habitantes do Lote de Jerusalém (Salem's Lot) começam a ter comportamentos estranhos, alguns desaparecem, outros morrem e depois os seus corpos desaparecem. Tudo isto começa com a mudança para a cidade de dois homens sinistros, um dos quais nunca ninguém viu, que se mudam para a casa de Marsten, a casa assombrada e obscura da cidade. Juntamos a isto um escritor que passou alguns anos da infância no Lote e que sempre viveu fascinado pela casa de Marsten, e decide regressar para escrever sobre ela, um Professor pragmático, não crente, o padre da cidade, um pouco desiludido com o mundo, uma jovem desejosa de sair da pequena cidade à conquista do mundo e, um miúdo com mais tomates que todos os outros juntos!
Para mim que nem sequer o Drácula li, não há mais típico do que isto. Os vampiros sofrem de todos os males descritos na mitologia - não andam de dia, alimentam-se de sangue, não suportam alhos e fogem da cruz como o próprio diabo faria. São também, de certa forma charmosos, hipnotizantes e persuasivos, difíceis de resistir, portanto.

Tendo dito tudo isto, gostei bastante do livro. Lê-se muito bem e é, para além de assustador qb, bastante divertido.
Recomendo sem reservas aos fãs dos vampiros do século XXI e, em especial para aqueles a quem estes vampiros modernos provocam urticária grave. :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 20):
"Dois meses depois do artigo do jornal, o rapaz entrou para a Igreja. Fez a sua primeira confissão, e confessou tudo. (...)
- Ele fez uma confissão estranha. De facto, numa ouvi uma confissão tão estranha em toda a minha vida de padre.
- Não me surpreende.
- Ele chorou - disse o padre sorvendo o seu chá. - Era um choro profundo e terrível. Vinha dos confins da sua alma. Será preciso fazer-lhe a pergunta que esta confissão levanta no meu coração?
- Não - disse o homem alto calmamente. - Não é preciso. Ele esta a dizer a verdade."

novembro 08, 2014

Rebeldes - Sándor Márai

Título original: A Zendülők
Ano da edição original: 1930
Autor: Sándor Márai
Tradução do húngaro: Ernesto Rodrigues
Editora: Publicações Dom Quixote

"Mestre das paixões, neste romance Sándor Márai dedica-se não aos triângulos amorosos mas a outras questões igualmente susceptíveis de despertar emoções fortes: o que une um grupo de jovens revoltados contra tudo e a tudo dispostos.
E arrisca-se a levar o leitor ao centro de um enredo de erros e fúrias, cumplicidades e traições, sofrimento e cobardia - de inconfessáveis atracções e de ambíguas repulsas. Porque trata das vicissitudes e aventuras de um grupo de rapazes, ou melhor, um bando, como se definem a si próprios, no final da Primavera de 1918, numa pequena cidade da Hungria distante da frente e onde a vida, aparentemente calma, é profundamente abalada pela guerra.
Entregues a si próprios enquanto os pais combatem na frente, estes rapazes decidem libertar os demónios da sua revolta impelidos por um ódio ardente contra o mundo, pela sua imaginação e pela sua arrogância - e também por um erotismo, tão mais aceso quanto mais implícito -, deixando a guerra para o mundo dos adultos e inventando jogos demasiado perigosos. Um obscuro actor que se torna o seu mentor oculto, envolvendo-os nas suas perversas tramóias, acabará conduzindo-os a um trágico e inevitável epílogo."


Não sei que mais acrescentar à sinopse porque é um bom resumo do livro. Numa pequena cidade do interior, restam as mulheres, os idosos ou doentes e as crianças. Todos os jovens e homens em condições de lutar encontram-se na frente de guerra. A vida de quem fica, dos miúdos que ainda não têm idade para lutar e que ficam praticamente abandonados, sem supervisão, livres para fazer tudo o que a sua imaginação conceber é aquilo de que fala o livro. A rebeldia típica da idade, o constante desafiar da sorte, o desprezo pelos adultos que ficaram, as relações que se estabelecem entre si, as angústias próprias da idade e a certeza de que não regressarão com vida quando chegar o dia em que se juntarão aos pais para combater.
Os únicos adultos que admitem e incluem nos seus segredos é um agiota e um actor (da companhia de teatro que chegou à cidade).
Nunca é muito claro o que foi que fizeram, no entanto, acabado o liceu, este miúdos, na realidade praticamente adultos, parecem sentir que o dia em que se tornam adultos se aproxima e tentam, de certa forma, resolver alguns dos problemas que criaram na sua fase de rebeldia. Com a aproximação da idade adulta, o que quer que fosse que unia estes miúdos parece estar a desaparecer, o bando parece não fazer mais sentido e o destino diferente que se adivinha para cada um deles parece provocar algum desconforto, alguns segredos são desvendados e, o mais provável é que o mal que foi feito não possa nunca vir a ser remediado.

Gostava tanto de não ter achado este livro esquisito e confuso... Gostava de não ter de gostar menos de um livro do Sándor Márai. Percebo a história, gostei das personagens, mas achei a escrita confusa.

Embora não seja, de longe, o melhor livro que já li, não posso não recomendar um livro de Sándor Márai. Posso é avisar que, se nunca leram Sándor Márai podem sempre começar por um outro livro dele. :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 21):
"Inclinou-se e esfregou a cara na cara do rapaz. Ficaram assim um momento. Uma pessoa vive ao lado de outra e não a conhece. Um dia, percebe que nada têm em comum. A tia, os móveis da mãe, o jardim, o pai, o violino, Júlio Verne e a visita ao cemitério, com a tia, no Dia dos Mortos, uma parte do seu mundo estava aqui. E esse mundo era tão poderoso, que nada, vindo do exterior, poderia destruí-lo, nem sequer a guerra. Mas, há um ano, algo inesperado irrompera nele, brutalmente. E soube, então, que existia outro mundo. Tudo se desconjuntou. O que até ali era doce fez-se amargo, o que era agre fez-se fel. A estufa fez-se selva. E a tia, morta, ou pior."

outubro 19, 2014

O Mar de Madrid - João de Melo

Título original: O Mar de Madrid
Ano da edição original: 2006
Autor: João de Melo 
Editora: Publicações Dom Quixote

"A primeira vez em que viajou até ao país vizinho, Francisco Bravo Mamede, o senhor poeta, viu que as cidades de Espanha ficavam no fim de todos os caminhos. Para se ir de uma para a outra, e não havendo passagem para a cidade seguinte, andava-se por ali ao deus-dará, às voltas e mais voltas para não se enredar a gente no fio de orientação que levava para fora do emaranhado urbano, como quem procura e finalmente encontra a porta de saída de uma casa desconhecida. Ia-se então adiante, sem rumo nem certeza alguma sobre a hora de chegada ao destino que se havia traçado (se haciendo el camino al andar, como no verso do querido mestre Antonio Machado) - e logo toda ela se recortava ao longe, muito nítida de luz, como um baixo-relevo que emergisse do fundo da paisagem."

João de Melo é um dos escritores que ultimamente me tem dado mais prazer descobrir. A qualidade da sua escrita, aliada a histórias surpreendentes, tornam os seus livros num autêntico carrossel de emoções.

O Mar de Madrid é um pouco diferente dos outros livros que já li dele - Gente Feliz Com Lágrimas e Autópsia de um Mar de Ruínas (opinião aqui e aqui) - não só pela contemporaneidade como pelo tema em si. Em O Mar de Madrid, João de Melo leva-nos numa viagem entre Portugal e Espanha, através dos olhos de um poeta e uma escritora de novelas negras. Português o poeta, espanhola a escritora. :) Conhecem-se numa convenção de escritores em Madrid. Ele deslumbrado com a atenção que nuestros hermanos dispensam à sua genialidade como poeta e, ela perdida numa relação destrutiva e que descobriu Portugal e os portugueses há muito pouco tempo.
A história vive das ideias pré-concebidas destes dois, Francisco Bravo Mamede e Dolors Claret, sobre os portugueses e os espanhóis, sobre a poesia, sobre os escritores e sobre as relações.
Francisco é um funcionário público que escreve poesia, tendo alguns livros publicados. É fascinado por Espanha e os espanhóis, por achar que são culturalmente superiores aos portugueses, por entenderem e valorizarem a sua poesia, reconhecimento que não encontra em Portugal. É casado com Branca, com quem mantém uma relação por pura rotina, por lealdade e, de certa forma, por pena. É engraçado ver, mais à frente no livro como tudo aquilo que o prende a Branca é uma ilusão, um engano, porque nada sabe sobre a mulher com quem casou. Conhece Dolors na conferência de escritores em Madrid e inicia uma relação conturbada com ela. Dolores parece louca, desequilibrada e ele não faz ideia de como lidar com ela.
Dolors chega à conferência uma mulher insegura e deprimida, após anos de um casamento pouco feliz com Victor, um advogado bem sucedido e um mulherengo incurável, retratado como um típico macho latino. O fascínio que Dolors sente por Francisco quando o vê a discursar na conferência é algo inesperado e que não entende. Francisco vai acabar por ser o factor que faltava para que a Dolors ganhe coragem para mudar de vida. Não será fácil, vai chorar muito, vai passar por crises de ansiedade, mas no fim... No fim pode ser que finalmente aprenda a estar sozinha e a gostar de si mesma.

Para além da relação destes dois, João de Melo fala muito no que nos distingue dos espanhóis e naquilo que nos une. É duro nas comparações e na caracterização que faz dos portugueses, na sua grande maioria exactas, ou pelo menos é assim que a maioria de nós nos vemos. E Francisco, a voz destas comparações, é um português, como todos nós um pouco provinciano na ideia de que tudo e todos são melhores que os portugueses. Para ele a única excepção é a poesia, que só os portugueses sabem fazer bem. :)

É também duro na caracterização que faz dos escritores, todos eles uns deslumbrados, a viverem num mundo à parte, seres superiores e injustiçados pelos leitores que não têm capacidade de abarcar toda a sua genialidade.

O Mar de Madrid é diferente dos outros que já li de João de Melo, talvez menos poético, menos certeiro nas emoções que pretende transmitir mas, não deixa de ser um livro cheio de humor, mordaz na crítica que faz e muito bem escrito. Achei um pouco cansativa a dinâmica de Francisco e Dolors, ela demasiado histérica e desequilibrada e ele, demasiado confuso. No entanto, confesso que, após ter escrito este post, dou por mim a gostar e a compreender melhor o livro. Aparentemente é um desses livros cuja distância permitirá vê-los com novos olhos.
Recomendo!

Boas leituras!

Excerto (pág. 41):
"O silêncio provinha não das vozes que não falavam - ao contrário das contínuas vozes de Espanha - mas dos olhos, da pele, dos ossos secretos das pessoas. Estava no corpo. existia nas mãos e na linguagem. Como um modo de ser e de pensar. Se se estivesse em Espanha, e numa cidade assim, tão breve como Elvas, as mãos seriam como tochas acesas que riscavam o ar, por cima dos gestos, sobre o ruído ensurdecedor doas vozes, e haveria em todas elas um tumulto de palavras. Dolors sabia que nenhum povo no mundo falava tanto, tão alto, tão depressa como os espanhóis. Falavam freneticamente, cheios do universo absoluto das palavras, sendo corpo e alma no acto de comer de pé ao balcão dos bares e restaurantes, paixão de falar, arte e vício de viver ao som das próprias vozes. As vozes de Espanha juntam-se todas no ar, expandem-se pelo tempo fora, vogam no espaço desse império da língua, como se a universalidade espanhola dependesse do hábito de falar mais alto do que o vizinho, e de não permitir que alguém lhe replicasse. Ao invés, o silêncio português conversava a meia-voz, com pausas e suspiros. Sorria com moderação e timidez, abria muito os olhos para escutar e entender, mas ainda assim sua compostura não era isenta de orgulho, nem denotava resignação."

setembro 27, 2014

O Teu Rosto Será o Último - João Ricardo Pedro

Título original: O Teu Rosto Será o Último 
Ano da edição original: 2012
Autor: João Ricardo Pedro 
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Tudo começa com um homem saindo de casa, armado, numa madrugada fria. Mas do que o move só saberemos quase no fim, por uma carta escrita de outro continente. Ou talvez nem aí. Parece, afinal, mais importante a história do doutor Augusto Mendes, o médico que o tratou quarenta anos antes, quando lho levaram ao consultório muito ferido. Ou do seu filho António, que fez duas comissões em África e conheceu a madrinha de guerra numa livraria. Ou mesmo do neto, Duarte, que um dia andou de bicicleta todo nu.
Através de episódios aparentemente autónomos - e tendo como ponto de partida a Revolução de 1974 -, este romance constrói a história de uma família marcada pelos longos anos de ditadura, pela repressão política, pela guerra colonial.
Duarte, cuja infância se desenrola já sob os auspícios de Abril, cresce envolto nessas memórias alheias - muitas vezes traumáticas, muitas vezes obscuras - que formam uma espécie de trama onde um qualquer segredo se esconde. Dotado de enorme talento, pianista precoce e prodigioso, afigura-se como o elemento capaz de suscitar todas as esperanças. Mas terá a sua arte essa capacidade redentora, ou revelar-se-á, ela própria, lugar propício a novos e inesperados conflitos?"

O Teu Rosto Será o Último é a história de Duarte e da sua família, do avô Augusto Mendes, médico numa pequena aldeia com nome de mamífero, do interior e do pai António, um ex-combatente na guerra colonial. 
Conhecemos a família de Duarte através das memórias que ele tem das histórias que foi ouvindo ao longo do tempo.
Duarte fala-nos do avô Augusto, de como foi a vida dele, o que o levou  mudar-se para o interior para praticar medicina e de como conheceu a avó.
Sobre o pai António acaba por não falar tanto, é mais o que se intui do que aquilo que é dito. Ex-combatente na guerra colonial, após a segunda comissão regressou diferente, igual a muitos que de lá regressaram diferentes. Só o conhecemos um pouco melhor mais para o fim, até lá parece-nos uma personagem distante, com conversas um pouco estranhas, alguém que ama a família, sem dúvidas, mas um pouco alheado do que se passa. 
A mãe é uma personagem praticamente inexistente, até que, quase no fim, adquire dimensão e revela-se essencial para o equilíbrio mental do marido e do filho.
A Duarte não sei muito bem como defini-lo. É um miúdo diferente, filho único numa família marcada pelos anos da ditadura, pouco sociável e com um talento imenso e inesperado para tocar piano. Vive num mundo muito dele. É uma personagem difícil de resumir... :)

E da história julgo que não vale a pena dizer mais nada, até porque ela não é propriamente linear e é contada em pequenos capítulos, algumas vezes sem grande ligação entre si. É um daqueles livros que só lendo.

Parece que esta minha "maratona" (não planeada) de autores portugueses me está a correr muito bem. :)
João Ricardo Pedro foi o vencedor do prémio Leya de 2011 e só por isso valeria a pena dar uma espreitadela ao livro deste Engenheiro Electrotécnico. Felizmente as razões que fazem valer a pena conhecer a escrita de João Ricardo Pedro, nada tem a ver com o ter ganho um prémio com o seu primeiro livro. Vale a pena ler O Teu Rosto Será o Último porque a história e a forma como é contada são interessantes. Pode até haver no livro deste estreante algumas "orientações" editoriais que tenham tornado o livro mais "premiável", mas na verdade a qualidade de JRP, como escritor está lá, as personagens estão lá e, por isso será um escritor a manter debaixo de olho.

Gostei e recomendo.

Excerto:
"Para que, do altifalante, se ouvisse algum som, o órgão precisava de uma pilha de nove volts, mas pilhas de nove volts era coisa que não existia à venda na pequena aldeia com nome de mamífero.
Estranhamente, Duarte parecia não se importar com essa suposta contrariedade. Tratou de arranjar um assento apropriado, arregaçou as mangas do pulôver, baixou o rosto e, sobre as teclas mudas, começou a desenhar inesperados acordes e arpejos. Os dedos, silenciosos como as patas de uma aranha, movimentavam-se ora em lânguidos adágios, outra em rápidas semifusas, conforme as instruções inscritas na partitura que só Duarte parecia vislumbrar."

setembro 14, 2014

[ebook] A Confissão de Lúcio - Mário de Sá-Carneiro

Título original: A Confissão de Lúcio
Ano da edição original: 1914
Autor: Mário de Sá-Carneiro
Revisão: Ricardo Lourenço (com base na digitalização disponível na Biblioteca Digital da Casa Fernando Pessoa)

"A Confissão de Lúcio, considerada a mais importante obra de Mário de Sá-Carneiro, tem como base o triângulo amoroso entre Lúcio, o seu amigo Ricardo de Loureiro e a mulher deste, Marta.
Nesta novela escrita em forma de policial, o narrador, Lúcio, confessa a sua inocência, depois de ter passado dez anos na prisão acusado da morte de Ricardo, ocorrida em circunstâncias misteriosas e da qual a única testemunha é o próprio Lúcio.
Obra vanguardista, nela se encontram algumas das obsessões do autor: o amor pervertido, o suicídio, o sentimento de incompletude e de alienação do eu que lhe conferiram uma aura de poeta maldito."                                                                                                             Retirado do site da Wook


Não sendo adepta de poesia, nunca me tinha cruzado com nada escrito por Mário de Sá-Carneiro. E quando comecei a ler A Confissão de Lúcio não estava à espera de encontrar a escrita que encontrei. Contava encontrar um típico escritor e história dos finais do século XIX inícios do XX e na realidade, a história poderia ter sido contada por um escritor dos nossos dias e a escrita, embora com alguns traços da época é bem mais fluída e "desempoeirada", em parte porque a versão que li sofreu uma revisão, segundo o Acordo Ortográfico de 1945, pelo que a grafia é mais actual. :)
No entanto, não terá sido por isso que este livro foi uma agradável surpresa.

A Confissão de Lúcio é, literalmente a confissão de Lúcio, um escritor que acabou de sair da prisão e sente necessidade de colocar em papel o que o levou à prisão. Mais do que uma confissão é um relato do que se passou, não para se justificar aos outros mas para que toda a história de certa forma se torne mais real, em toda a estranheza que a envolve.
Lúcio vai estudar Direito para Paris, onde muitos intelectuais da época acabavam por fazer os seus estudos, e onde voltavam amiúde para estar em contacto com uma sociedade menos repressiva que a portuguesa. Na realidade, e à semelhança de muitos dos seus colegas, Lúcio gosta é de escrever e tem já alguns textos publicados.
Lá conhece Ricardo, um poeta, e a afinidade que nasce entre os dois é imediata, tornando-se inseparáveis, sendo raros os dias em que não estão juntos.
Ricardo revela-se uma pessoa amargurada, obcecado pelo facto de não ser capaz de sentir pelos outros mais do que ternura, incapaz de parar de pensar, de racionalizar. Incapaz, nas próprias palavras, de amar, de se apaixonar, de ser amigo de alguém. Para ser amigo de alguém, uma vez que apenas sente ternuras - "uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar... de estreitar... Enfim: de possuir!" - teria de "possuir, quem eu estimasse, ou mulher ou homem.". Lúcio, embora estranhe a confissão do amigo, nada diz que possa perturbar ainda mais o amigo.
E é desta relação que vive o livro, da dinâmica entre os dois. Ricardo está nitidamente apaixonado por Lúcio e tenta encontrar uma razão para o que sente bem como procurar um caminho que lhe permita "sentir" de facto a sua amizade por Lúcio. E é aí que surge Marta, supostamente a mulher de Ricardo, mas que acaba por seduzir Lúcio, tornando-se sua amante. 

E sobre a história não vale a pena dizer mais nada.

A personagem de Lúcio fez-me lembrar Raskólnikov, do recém lido Crime e Castigo (opinião aqui). Pela crescente loucura e constante perda de noção da realidade. Não sabemos o que realmente se passou ou não passou. Com Lúcio passa-se mais ou menos o mesmo. Vê-se envolvido numa espécie de sonho, envolto numa neblina que não lhe permite distinguir a realidade. E é dessa forma que descreve os seus dias em Lisboa, como os lembra, envoltos numa neblina e em confusão mental.

Foi uma boa surpresa este livro, pelo tema e pela forma como este é abordado. Recomendo.

Boas leituras!

Excerto:
"Antes, não quis porém deixar de escrever sinceramente, com a maior simplicidade, a minha estranha aventura. Ela prova como factos que se nos afiguram bem claros são muitas vezes os mais emaranhados; ela prova como um inocente, muita vez, se não pode justificar, porque a sua justificação é inverosímil — embora verdadeira.
Assim eu para que lograsse ser acreditado, tive primeiro que expiar, em silêncio, durante dez anos, um crime que não cometi…
A vida…"

Nota:
Ebook retirado do site do Projecto Adamastor - http://projectoadamastor.org/. Podem encontrar lá outras obras de autores lusófonos, de domínio público, em formato digital com edições de muita qualidade.

setembro 11, 2014

Por Este Mundo Acima - Patrícia Reis


Título original: Por Este Mundo Acima
Ano da edição original: 2011 
Autor: Patrícia Reis 
Editora: Publicações D. Quixote

"Um cenário de terrível desastre assola Lisboa.
Entre os sobreviventes há um velho editor procurando amigos e amores desaparecidos. Encontra um manuscrito e um rapaz e, neles, a porta para uma outra dimensão na vida.
Por Este Mundo Acima é a consagração dessa melhor forma de amor a que chamamos amizade. Uma história sobre a importância redentora dos livros."


O nome Patrícia Reis ficou-me na memória depois de ter lido Morder-te o Coração de que gostei muito (opinião aqui). A forma como escreve deixou-me curiosa para outros livros dela. Na feira do livro deste ano aproveitei e comprei. Para além do título, que acho lindo, fiquei curiosa para descobrir como seria um livro num cenário pós-apocalíptico escrito por ela. :)

Eduardo é a personagem principal da história. Conhecemo-lo já depois do "acidente", como um dos poucos sobreviventes de um desastre natural qualquer que empurrou de volta para a idade da pedra a humanidade. Sem tecnologia, electricidade, água canalizada ou saneamento básico. Coisas que todos consideramos básicas para sobrevivermos... No entanto Eduardo sente, acima de tudo falta dos amigos, Sofia, Lourenço e Jaime. Sente falta de ter com quem conversar, das risadas e da música. Aterrorizado com o que possa encontrar para lá da porta de casa, vai ficando, fechado em casa, com os seus livros, as suas memórias e o medo. No dia em que finalmente ganha coragem para sair, encontra um cenário desolador, de destruição total. Pensa em procurar os amigos, mas não sabe se o conseguirá fazer. Vislumbra outras pessoas na rua mas, tal como Eduardo, todos sentem receio de falar uns com os outros e seguem caminho sem trocarem uma palavra. A necessidade altera o comportamento das pessoas, nunca se sabe se nos querem fazer mal. As ruas estão cheias de corpos, toda a ordem social eclipsou-se. Não existem autoridades, não existe um governo não existe nada, apenas o caos. Eduardo sente-se deslocado, não é novo, não sabe se conseguirá sobreviver - ter de pilhar, de lutar pela última lata de atum... Regressa a casa cansado e triste e a sentir cada vez mais a falta dos amigos, que acredita estarem mortos. Que outra razão existiria para que não tivessem ido até ele?
Aos poucos Eduardo começa a adaptar-se à nova vida, os corpos nas ruas já nem os vê, aventura-se pelas redondezas e vai sobrevivendo. Em casa tem a companhia dos livros, a preciosa biblioteca da avó repleta de histórias que nunca o deixam só.
Redescobre um sentido para a vida quando lê um manuscrito que lhe tinha sido entregue, Eduardo era editor antes do "acidente", para publicar - A Noiva Chegou de Autocarro, e que ainda não tivera oportunidade de ler. O livro, escrito por um jovem escritor desconhecido, deixa Eduardo fascinado e, ao mesmo tempo, angustiado por não ser possível partilhá-lo com ninguém, de não ser possível publicá-lo. Queria gritar ao mundo que no meio de todo aquele caos, tinha encontrado vida, que ainda era possível criar e progredir. Os anos passam e nada muda na vida de Eduardo, até ao dia em que encontra Pedro, uma criança de 8 anos, que tinha acabado de perder a mãe. A partir desse dia, Eduardo acredita que é possível fazer alguma coisa pelo mundo. Que não pode deixar que toda a história da humanidade se perca para as crianças que como Pedro, não têm memória de outra realidade. Eduardo acolhe Pedro em sua casa e, como um pai, educa-o, mostra-lhe todo um novo mundo através dos livros da avó e partilha com ele todas as suas memórias e as memórias dos seus amigos, para que, de alguma forma não sejam esquecidos. O livro acaba com Pedro já crescido, Eduardo acaba de morrer, mas o mundo que é descrito por Pedro já não é um mundo de medo e sim de esperança. As pessoas organizaram-se, de certa forma, e vivem em comunidades pequenas onde partilham aquilo que têm e o que sabem fazer. Toda a comunidade agradece a Eduardo o seu papel no restabelecimento da ordem e, A Noiva Chegou de Autocarro, foi o primeiro livro a ser publicado depois do "acidente", publicado por Pedro.

É um livro muito interessante. A escrita de Patrícia Reis é muito clara, muito fluída que facilmente nos transporta para a realidade que descreve. Gostei muito de Eduardo e dos amigos que conhecemos apenas através da sua memória deles. A história é, às vezes angustiante, nem sempre os piores momentos são os que ocorrem após o acidente, mas acima de tudo é uma história que homenageia a amizade e os livros.

Gostei e recomendo!

Boas leituras!

Excerto (pág. 88):
"Vi o meu primeiro cadáver três semanas depois de tudo ter mudado. Tinha-me aventurado. Sair à rua era um passo gigante. Ver da janela o estado da rua, deserta, os carros parados, a ausência de militares a marchar pelas ruas e as nuvens pretas foram suficiente. Até que a necessidade me fez sair. Na minha decisão de deixar a casa, estava também o sentimento de abandono, de quase indiferença. Queria morrer. A exactidão desse sentimento de morte que ansiei, ainda a consigo sentir. Não valia a pena continuar. Estava condenado, barricado em casa a abrir latas de atum que me feriam os dedos de pele seca. Estar vivo, apenas por estar vivo, não era suficiente. Por isso, quando saí à rua, fi-lo com a coragem dos soldados na linha da frente, pronto para qualquer coisa, orações ditas, a cabeça vazia, o coração pronto para o fim."