fevereiro 25, 2011

Crónica do Pássaro de Corda - Haruki Murakami

Título original: Nejimaki-dori Kuronikuru
Ano da edição original: 1995
Autor: Haruki Murakami
Tradução: Maria João Lourenço
Editora: Casa das Letras

"Toru Okada, um jovem japonês que vive na mais completa normalidade, vê a sua vida transformada após um telefonema anónimo de uma mulher. Começam a aparecer personagens cada vez mais estranhas em seu redor e o real vai degradando-se até se transformar em algo fantasmagórico. A percepção do mundo torna-se mágica, os sonhos invadem a realidade, e pouco a pouco, Toru sente-se impelido a resolver os conflitos que carregou durante toda a sua vida.

Este livro conta com uma galeria de personagens tão surpreendentes como profundamente autênticas e, quase por magia, o mundo quotidiano do Japão moderno aparece-nos como algo estranhamente familiar.

Crónica do Pássaro de Corda, ao qual foi atribuído o Prémio Yomiuri, é considerado, por muitos, a obra-prima de Murakami."

O que dizer sobre este livro do Haruki Murakami? Só penso em palavras como extraordinário, fabuloso, intenso, grandioso, fascinante, surreal e outros adjectivos que tais. Mas conseguir verbalizar, expressar por palavras o porquê desses adjectivos afigura-se-me extremamente complicado de fazer, senão mesmo impossível. Ler Haruki Murakami é uma experiência tão pessoal e tão única que só quem já passou por ela a consegue compreender. É estranho, mas é isso que sinto. Não só relativamente a este livro como relativamente a todos os outros que já li dele.

A história, muito superficialmente, porque é impossível colocar tudo aqui, narra a viagem alucinante que Toru Okada faz para recuperar a sua mulher e a sua vida. Quando digo viagem digo-o no sentido figurado, uma vez que, o Sr. Pássaro de Corda, fisicamente não se afasta muito da sua casa. É uma viagem que o vai mudar, porque nela vai conhecer um mundo que desconhecia, pessoas bizarras com poderes estranhos e difíceis de entender, um mundo cheio de perigos nunca antes imaginados. O que não se altera na vida de Toru Okada é o que sente por Kumiko, e o desejo de a trazer de volta para casa é a única coisa que o move e mantém ligado ao mundo real.
Até que ponto conhecemos as pessoas que amamos? Esta é uma das perguntas que o livro levanta. Até que ponto esse conhecimento é importante e pode, ou não, alterar os nossos sentimentos é outra questão, cuja resposta cabe a cada um de nós responder.
A personagem de Toru Okada é fascinante, não por ser especialmente inteligente ou por ser um herói, mas sim por ser tão normal ou anormal, dependendo do ponto de vista, uma vez que enfrenta tudo com uma ligeireza impressionante. Por mais coisas e pessoas estranhas que apareçam na sua vida ele parece aceitar tudo sem grande surpresa. Na verdade deixa-se levar pela corrente. Quem sabe onde esta o levará? Antes de a sua vida começar a mudar, Toru Okada era apenas um jovem desempregado, que não tinha ainda descoberto o que queria fazer com a sua vida. Casado com Kumiko, viviam os dois um para o outro, até ao dia em que o gato desapareceu, uma estranha mulher começa a ligar para Toru Okada e Kumiko desaparece sem deixar rasto.
Nas duas primeiras partes do livro, que está dividido em três, sentimos uma imensa solidão na vida de Toru Okada, uma solidão quase palpável, um isolamento aflitivo, um afastamento do mundo e das pessoas que faz confusão e que me deixou com o coração apertado. O telefone é uma presença constante, quase uma entidade com vida, o único elo de ligação de Toru com o mundo. Toca muitas vezes, são muitas as vezes em que Toru não o atende, mas é com o seu silêncio que Toru Okada mais sofre.
Na terceira parte acentua-se o clima de tensão, de terror, com momentos onde sustive a respiração e onde o meu coração acelerou. Toru embrenha-se cada vez mais, e de uma forma mais consciente, num mundo estranho e perigoso, as coisas à sua volta tornam-se cada vez mais irreais onde não se consegue vislumbrar nada de bom no futuro de todos os envolvidos. É muitas vezes um livro angustiante e sufocante. É, no entanto, nesta parte que Toru Okada deixa de ser levado pela corrente e começa a tomar as rédeas do seu destino. É nesta parte que o Sr. Pássaro de Corda começa a encontrar-se e a aproximar-se daquilo que procura.
Por este livro passeiam-se personagens verdadeiramente fascinantes e únicas, com histórias no mínimo originais. Referi-las todas aqui seria um esforço inglório porque não seria possível apenas mencioná-las e, esta opinião correria o risco de ser a maior da história da blogosfera. :) Portanto, fico-me por aqui. :)

Foi muito bom voltar a entrar no mundo de Murakami, que já não lia há mais de um ano. Um mundo para o qual somos sugados e, no caso deste livro, um mundo que corremos o risco de não conseguir abandonar, tal é a velocidade vertiginosa a que viajamos entre o real e o irreal. Perdemos, com as personagens, a noção se o irreal não será real e o que temos como real não passe de um mundo inventado, sonhado. Andamos permanentemente na fronteira ténue entre o que nos mantém mentalmente sãos e o que nos pode alienar da realidade que nos rodeia. Os dois mundos tocam-se, sobrepõem-se e confundem-se. É até um pouco assustadora a forma como a escrita de Murakami nos pode provocar esta alienação, a forma como nos consegue tocar e, acredito que a todos toque de maneira diferente. Poder-se-ia pensar que o faz por ter o dom das previsões astrológicas, de ser genérico, de o que escreve poder ser sentido por todos, porque todos, de uma forma ou de outra, nos identificamos com o que é narrado. É verdade que todos nos podemos identificar com uma ou outra parte da história, mas a escrita e as histórias de Murakami nada têm de genérico e de banal. A escrita é natural, fluída, próxima, sem grandes subterfúgios linguísticos e tem uma oralidade tal que me faz sentir que tenho as personagens junto a mim, quase que as oiço. Parece que Murakami utiliza uma linguagem que nos remete para um lugar em que a palavra não é necessária, onde a linguagem é a dos sentimentos, das sensações. A força da escrita de Murakami é algo que não consigo explicar por palavras, mas que se sente quando se lêem os livros é uma realidade. E acho difícil que alguém não a sinta... acho mesmo estranho que ler Murakami não seja, para toda gente, uma experiência do outro mundo. :) Para mim tem sido, com diferentes intensidades, sempre uma experiência indescritível, por vezes é até assustadora a forma como temos dificuldade em sair da história quando o livro chega ao fim. Neste livro a imaginação não tem limites e só não assino por baixo na afirmação de que é a obra-prima de Murakami, porque não quero admitir ou aceitar que qualquer coisa que leia dele daqui para a frente não será tão boa. ;)

É um livro extraordinário que mais que aconselhar, considero de leitura obrigatória!

Excerto:
"Vindo do arvoredo ali próximo chegava até nós o canto constante, estridente, de um pássaro que parecia estar a dar corda a algum mecanismo. Chamávamos-lhe o pássaro de corda. Foi Kumiko que se lembrou de lhe chamar assim. Não sabíamos ao certo o seu verdadeiro nome nem tão-pouco que aspecto tinha. Mas isso tanto fazia ao pássaro de corda. Todos os dias vinha até ao arvoredo perto de casa e punha-se a dar corda ao nosso pequeno e pacato mundo."

fevereiro 16, 2011

Crónica de Uma Morte Anunciada - Gabriel García Márquez

Título original: Crónica de Una Muerte Anunciada
Ano da edição original: 1981
Autor: Gabriel García Márquez
Tradução: Fernando Assis Pacheco
Editora: Colecção Biblioteca Sábado

"Esta é a história de um assassinato numa pequena localidade colombiana, próxima da costa caribenha, cuja única ligação com o exterior é um rio. Toda a localidade celebra o casamento de Bayardo San Róman, rico e recém-chegado, com Ángela Vicario. Mas Bayardo descobre que a sua esposa não é virgem e devolve-a à casa dos pais. Ángela acusa Santiago Nasar, um rico jovem de origem árabe. Obrigados pela defesa da honra familiar, os irmãos de Ángela anunciam aos quatro ventos a sua determinação de acabar com a vida de Santiago. Todos os habitantes da localidade conhecem as intenções dos dois irmãos menos o interessado, e ninguém faz ou pode fazer nada para evitar o desenlace trágico... Passados mais de vinte anos, um cronista reconstrói passo a passo os acontecimentos."

Estive tempo demais sem ler Gabriel García Márquez e isso não pode voltar a acontecer! :)

Crónica de Uma Morte Anunciada é isso mesmo: a crónica de uma morte mais que anunciada, a morte de Santiago Nasar. Acusado de ser o responsável pela desonra de Ángela Vicario, os irmãos desta, Pablo e Pedro Vicario, não encontram outra alternativa senão matar o jovem Santiago, para limpar a honra da irmã, devolvida na noite de núpcias por Bayardo San Róman, por não ser virgem.
Não existem dúvidas ao longo de todo o livro que Santiago irá morrer, o autor/narrador inicia o 1º capítulo desta forma: "No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5:30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo." e termina o capítulo dizendo "Já o mataram." Não existem dúvidas de que estas serão as últimas horas de vida de Santiago. Então o que nos faz continuar a ler um livro do qual já sabemos o fim? Primeiro queremos saber o que fez um jovem de 21 anos, rico e bem-parecido para que o queiram matar, depois queremos saber como é que vai ser morto (um pouco mórbido, eu sei), por último, o que queremos mesmo descobrir é como é que raio toda a gente sabia menos ele! A escrita de García Márquez ajuda a que o relato nos vá prendendo e a verdade é que este livro se lê de uma assentada, e não é só por ser pequeno. É quase como se não quiséssemos adiar a leitura, porque era como adiar a morte de Santiago Nasar e que sentido existe em adiar um acontecimento que é tão certo como... a morte?

Mais de vinte anos depois de Santiago Nasar ter sido brutalmente assassinado pelos irmãos Vicario, o narrador/autor procura reconstituir as últimas horas de vida do então amigo. Através das conversas com os habitantes da aldeia e com as pessoas mais próximas da vítima e carrascos, vamos descobrindo uma história feita de coincidências difíceis de acreditar. Toda a gente sabia que Pablo e Pedro queriam matar Santiago, pois não fizeram disso um segredo, fizeram até questão de o dizer a todos os que com eles se cruzavam, talvez esperançados de que alguém os impedisse. Toda a gente sabia, uns não acreditaram na coragem dos irmãos para levar até ao fim a ameaça, outros sabiam e nada fizeram porque intimamente queriam a morte de Santiago, outros sabiam mas nada conseguiram fazer para impedir a tragédia e por fim, muitos simplesmente não conceberam que Santiago não soubesse; como é possível que não soubesse que tinha a cabeça a prémio? Bem, tanto é possível que o foi. Talvez tenha morrido sem sequer perceber porquê, uma vez que provavelmente nem sequer era ele o homem que desflorou Ángela Vicario. A justiça popular tem destas particularidades e a defesa da honra não se faz com perguntas, faz-se agindo.

É um livro que me deu gozo ler. É um relato por vezes desapaixonado e conciso, onde não há um desenvolvimento das diversas personagens que nele vão aparecendo mas estão lá os elementos que tornam os livros de García Márquez obras tão especiais: a fantasia e o irreal narrado como se real fosse, com as intuições e as situações bizarras, a crítica social e as personagens estranhas. Para além disso, a escrita de García Márquez é muito boa, acho que até uma lista de compras ele seria capaz de tornar interessante. :p

Por todas as razões e mais algumas, é um livro que recomendo.

Boas leituras!

Excerto:
"Ninguém tinha a certeza de ele se referir ao estado do tempo. Muita gente coincidia na recordação de que era uma manhã radiante com uma brisa marinha que chegava por entre os bananais, como era de admitir que assim fosse num bom Fevereiro daquela época. Mas a maioria estava de acordo em que fazia um tempo fúnebre, com um céu turvo e baixo e um cheiro intenso a águas paradas, e que no preciso instante da desgraça caía uma chuva miúda como a que Santiago vira no bosque do sonho."

fevereiro 15, 2011

Morder-te o Coração - Patrícia Reis

Título original: Morder-te o Coração
Ano de edição: 2007
Autor: Patrícia Reis
Editora: Dom Quixote

"Este romance é uma viagem alucinante pelos labirintos do desejo e da solidão, que nos arrasta para lá das convenções dos géneros e do sexo, conduzindo-nos ao conhecimento da vertigem. A escrita transparente e comunicante de Patrícia Reis ganha corpo e espessura nesta narrativa polifónica orquestrada pela obsessão do Grande Amor - aquela luz infinita que simultaneamente cega e acende a verdade íntima de cada um de nós. Este livro morde-nos, de facto, o coração - e é para isso que servem os bons livros."
Inês Pedrosa

Mais um livro em português de uma escritora que nunca tinha lido e, como já vem sendo hábito neste meu início de ano literário, em bom tempo o fiz, porque o livro é bom, a escrita tem um ritmo que encanta e embala e está repleto de sentimentos.

Esta é uma história triste, de amores desencontrados, de pessoas que amam quem não os ama, de amores que surgem quando um dos protagonistas não está preparado para amar, não sabe sequer se é capaz de o fazer, pois perdeu o coração aos 9 anos de idade e nunca mais o encontrou. É um livro triste sobre a procura do Grande Amor, uma procura obsessiva que provoca danos colaterais nas pessoas que se vão cruzando no caminho do Grande Amor, uma procura que faz com que não atentemos nas possibilidades que nos rodeiam e que poderão ser elas próprias uma hipótese de encontrar o tão desejado amor.
É uma história triste que não deixa de ser bonita, se bem que tenha poucas ou nenhumas alegrias e razões para sorrir.

É um livro que está muito bem escrito e que recomendo.

Boas leituras!

Excerto:
"Hoje, quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar de que ele existia no meu peito. Tu preferiste beijar-me, nunca me mordeste e, assim fiquei sem saber."

Nota: Tenho de fazer referência ao facto de este estar a ser um dos melhores inícios de ano, em termos literários e que, coincidência ou não, um início que é composto por muitos autores portugueses.

fevereiro 13, 2011

A Amante Holandesa - J. Rentes de Carvalho

Título original: A Amante Holandesa
Ano de edição: 2003
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal Editores

"Ao deixar a sua remota aldeia transmontana para ser estivador no porto de Amsterdão, Amadeu, o Gato, estava longe de imaginar a aventura que o esperava - uma relação fugaz e fatal com uma bela mulher estrangeira e rica. Décadas volvidas e de novo na sua terra, reencontra um amigo de infância. Para lá da meia-idade, os dois redescobrem o prazer de caminharem juntos e de conversar sobre o passado. Porém, o Gato, que vive do pastoreio e da contemplação de memórias, não faz ideia do efeito que o seu relato amoroso vai ter no amigo - cuja existência resume a um casamento gasto, a uma carreira mediana a chegar ao fim e ao sentimento de que falhou em tudo na vida. As consequências serão nefastas. Fria, indiferente, meiga, desenfreada na cama, a amante holandesa vai magoá-los, dar-lhes a ilusão de que o amor existe, e aniquilá-los."

J. Rentes de Carvalho era um escritor, para mim, completamente desconhecido até que li sobre ele no blogue literário Estante Acidental. Fiquei curiosa e numa das visitas à livraria trouxe este A Amante Holandesa, mais ainda porque me comprometi que este ano seria o ano de ler mais escritores portugueses. Não o li logo e, descobri entretanto que o escritor tem um blogue, Tempo Contado, onde fui conhecendo a pessoa por detrás do escritor, ainda antes de conhecer o escritor. Depois de ler o livro pergunto-me, com alguma incredulidade, porque é que só agora começa a ser publicado em Portugal? Sim, é um português a viver em Amsterdão desde 1956, onde acabou por fixar residência depois de ter sido obrigado a abandonar o país, por motivos políticos, e ter passado pelo Brasil, EUA e França, mas não me parece que isso seja justificação para o pouco destaque dado a este escritor supreendente. Estou mais inclinada para acreditar que as editoras portugueses o acham demasiado polémico, demasiado duro, que toca demasiado na ferida do que é ser português hoje em dia. Talvez seja mais por isso... :)

Passemos ao livro, cuja história não quero esmiuçar muito porque não quero desvendar demasiado. A Amante Holandesa relata a história de dois amigos de infância, Amadeu, mais conhecido por Gato e o narrador, a quem o autor não dá nome (pelo menos não dei por isso...). Ambos transmontanos, Gato é pobre e analfabeto e sonha ser correio em Lisboa e, enquanto o sonho não se realiza, é pastor e distribui as poucas cartas que chegam à aldeia no comboio. O narrador é de famílias mais abastadas e não sabe bem o que quer fazer quando for grande, um dia quer ser capitão, no outro piloto, maquinista ou médico. Admirava e invejava a certeza de Gato em querer ser carteiro. Eram amigos, faziam-se companhia.
O livro começa com estes dois a conversarem, na aldeia onde cresceram, Gato a pastorear o seu rebanho e o narrador junto dele, dois homens com quase 60 anos. Gato, regressou da Holanda, há mais de vinte anos, onde esteve emigrado alguns anos e o narrador, professor em Bragança, regressa todas as férias de verão à casa da sua infância, o único sítio onde consegue ser ele próprio e fugir da vida medíocre que vive. Ganharam o hábito de se encontrarem e enquanto o rebanho pastoreia, Gato conta ao seu amigo de infância a sua aventura na Holanda. Conta sobre a mulher que lá conheceu e amou, Clarisse, uma rapariga com estudos e rica e que nunca foi capaz de esquecer. Fala em regressar para junto dela e para junto da filha que tiveram e que Gato nunca conheceu, sem nunca explicar ao amigo porque veio embora e nunca mais entrou em contacto com elas. Fala de uma história de amor que parece apenas possível nos romances. O amigo, homem infeliz e amargurado, por uma vida que sente ter desperdiçado, por ter casado sem amor, por nunca ter tido a coragem de romper com o que os outros esperavam dele, ouve a história de Gato e sente inveja por não ter sido ele, letrado e culto a ter vivido um amor daqueles. Enquanto o ouve fantasia que é ele quem abraça e beija Clarisse. Gato apaixonou-se por ela "no mercado, um sábado de manhã, tinha-a visto caminhar direita a ele e sentira-se entontecer como se alguém o empurrasse (...) Do primeiro encontro só lhe ficou essa imagem: o modo de andar", o narrador, por seu lado, apaixonou-se por ela através das palavras do amigo analfabeto e das fotografias que este ainda guardava ao fim de tantos anos.
O livro relata a vida de Gato na Holanda, mas também a sua vida em Portugal, com um mulher que nunca amou que lhe faz a vida num inferno e na qual bate sempre que esta ultrapassa os limites da sua paciência, com os dois filhos que perfilhou mas que tem a certeza não serem dele. Vivendo preso a uma lembrança, que por vezes parece mais ficcionada que real, mas que o corrói, que o impede de ser feliz que o amargura, mas que parece ter-lhe dado algum sentido à vida. Gato encontra no amigo de infância o confidente ideal, arrasta-o para a sua aventura, não se apercebendo do quanto o magoa. Inconscientemente mantém-no preso na sua história, enredado nas suas lembranças, forçando-o a confrontar-se com a vida infeliz que leva, forçando-o a comparações indesejadas e nas quais nunca sai a ganhar.
Do narrador vamos descobrindo as dúvidas que sente relativamente à veracidade da história de Gato, por ser tão díficil de conceber que uma estrangeira inteligente e bonita como as raparigas do cinema, se pudesse interessar pelo emigrante analfabeto, estivador no porto de Amsterdão. Esta é uma personagem perseguida por medos, pesadelos, angústias a que só mais tarde conseguimos dar nome, é tão infeliz que chegamos a sentir pena dele, apesar dos pesares. Regressa todos os Verões a uma aldeia que não gosta dele, que não o compreende mas que é o único sítio onde se consegue isolar e experimentar uma espécie de felicidade, onde vive uma espécie de tréguas com os seus fantasmas interiores. Sem a mulher, que não o acompanha, sente-se livre, não fossem as gentes da terra, naturalmente tacanhas e intolerantes e talvez pudesse ser feliz naquele lugar. Muitas coisas vão acontecer na vida deste homem, desde que se vê sugado pelas lembranças do amigo e alguns dos seus erros do passado voltam para o atormentar. E, sobre a história destes dois nada mais posso dizer.

É um livro difícil de descrever, pois a história é feita de pedaços dispersos das duas vidas destes homens, aparentemente tão diferentes um do outro, mas que afinal são mais parecidos do que se poderia supor. Com segredos inconfessáveis, uns que apenas adivinhamos, outros que se acabam por revelar. É uma história que por vezes não é fácil de ler, porque representa um povo português que, embora me custe admitir, está próximo da realidade. As diferenças culturais e não só, que se detectam nas personagens portuguesas e holandesas são curiosas e, embora pudesse haver a tentação, por parte do autor, de enaltecer os habitantes do país que o acolheu, isso não acontece. Nem uns nem outros saem particularmente beneficiados, cada um com as suas qualidade e defeitos. Os portugueses são retratados como sonhadores, os eternos poetas, apaixonados mas, ao mesmo tempo infelizes, sem saberem bem o que lhes falta para serem felizes. São mesquinhos, invejosos, violentos, intolerantes e incoerentes. As holandesas, porque dos homens não se fala tanto, são frias, calculistas, independentes, um pouco alheadas da realidade que as rodeiam fora do seu mundo confortável. São de certa forma elitistas mas são também tolerantes, abertas a novas experiências, inteligentes, joviais e despreocupadas.
A descrição que ele faz das paisagens da região transmontana, longe dos lirismos de outras obras, é fria, chegando a existir um sentimento de banalização das mesmas, como se fossem mais do mesmo, sem nada que as distinga de outros lugares no globo. Vindo de um transmontano, pode-se estranhar esta opção, mas a realidade é que ao mesmo tempo a imagem que acaba por passar é a de paisagens naturalmente belas, com recantos de uma beleza estonteante, que ficamos com vontade de visitar, porque "cheiram" a casa, a lar e a conforto.
Por último digo que A Amante Holandesa é um livro desconfortável, angustiante e amargurado, com alguns laivos de ternura, com momentos brilhantes e risonhos. É um livro que mexe com "aquilo" (a que não sei dar nome) que nos une como povo, "aquilo" que nos faz sentir, irracionalmente felizes e inchados de orgulho, quando algum estrangeiro nos diz como somos amistosos e como o país é lindo, mesmo que racionalmente muitas vezes tenhamos a sensação de que não será bem assim.

Já vai longa esta minha opinião, e por isso não vou prolongar mais, embora muito mais houvesse para dizer. Termino recomendando, mais do que este livro em particular, o escritor e a sua visão do mundo tão desempoeirada, sem pudores e sem receios de desagradar. Recomendo!

Boas leituras!

Excerto:
"Mantenho os olhos abertos e escuto-o, mas às imagens que ele evoca sobrepõem-se em mim outras, numa fantasia em que se misturam a inveja, ilusões, desejos recalcados. Como é que um pobre diabo pode ter vivido um amor assim? Porquê ele? Que força manda que o destino duns seja mesquinho e o doutros uma sorte grande?"

fevereiro 10, 2011

Morte no La Fenice - Donna Leon

Título original: Death at La Fenice
Ano da edição original: 1992
Autor: Donna Leon
Tradução: Lídia Geer
Editora: Editorial Presença

"O esplendor de Veneza. Onde o Tempo obedece a estranhas leis que nos fazem viajar para um outro século. Os labirínticos canais de escuras águas. Pórticos secretos que de repente se abrem para sítio nenhum em antiquíssimos muros. Este é o cenário onde decorre a intriga que conduz à morte do maestro Helmut Wellauer, encontrado morto no seu camarim, no intervalo de uma ópera. Guido Brunetti, atraente detective que Donna Leon criou, percorre os meandros de uma sociedade pervertida, onde a vingança é soberana, em busca da resposta. Mas esta irá introduzir uma inquietante ambiguidade nas suas próprias convicções..."

Andava com vontade de ler um policial porque, embora este não seja um género prefira, às vezes sinto vontade de ler algo dentro do estilo. Donna Leon surgiu, não só porque já tinha lido boas críticas aos livros dela mas, também porque li algures que seria a sucessora de Agatha Christie. Não sei se o é, porque se da Agatha Christie li um livro já foi muito. Como disse, não faz o meu género. No entanto, há vontades que se têm e que não sendo assim tão complicadas de realizar, porque não satisfaze-las? :) E assim Donna Leon e o seu detective Guido Brunetti vieram das estantes da biblioteca para as minhas mãos. E foi uma boa leitura, nada de muito surpreendente, mas boa.

A história propriamente dita começa com a morte do maestro Helmut Wellauer, um dos músicos mais respeitados pelos críticos, um génio musical, que é encontrado morto no seu camarim, envenenado. Helmut morreu durante o intervalo da ópera que estava a dirigir na altura, no teatro La Fenice, um lugar emblemático em Veneza. Guido Brunetti é destacado para investigar a estranha e inesperada morte do maestro. Não havendo um suspeito óbvio, a única solução que Brunetti encontra para desvendar o mistério é tentar perceber quem era o maestro, na sua vida privada, longe das luzes da ribalta e dessa forma esperar encontrar quem lhe quisesse fazer mal.
O livro acaba por ser essa deambulação do detective, pelo passado do maestro, interrogando as pessoas que dele fizeram parte, mas também as pessoas que no presente conviviam com ele, quer profissionalmente, quer na intimidade.
Brunetti com as suas perguntas que aparentemente não tinham importância acaba por levar a investigação a bom porto e o mistério por detrás da vida e morte do maestro acaba por vir ao de cima. O que Brunetti não estava à espera era de descobrir o que acabou por descobrir e que essa descoberta o fizesse violar algumas regras morais e de comportamento a que está obrigado por pertencer a uma força policial. Mas sobre isso não digo mais nada. Digo apenas que me agradou muito que o detective Guido Brunetti não fosse um super-polícia, com uma inteligência e poder de dedução para além dos limites humanamente possíveis. Gostei que fosse um polícia do qual emanava até alguma preguiça, um homem que não era obcecado pelo trabalho, não o levando para casa. Gostei deste polícia mais humano e por isso mais real.

Gostei da forma como Veneza é descrita, não conheço a cidade, mas sinto que o livro me passou alguma da mística que a cidade carrega. Gostei que Donna Leon não tivesse enaltecido a cidade, retratou-a como a cidade velha que é, mas também como a cidade histórica que é, com os seus encantos escondidos e o seu ambiente por vezes mágico. Gostei! :)
O que não me entusiasmou assim tanto, foi o facto de o livro ser um pouco parado. Muita da investigação de Brunetti é feita a partir de conversas informais às pessoas que privavam com a vítima, muitas perguntas, muita conversa fiada e pouco desenvolvimentos no crime propriamente dito. Achei, nesse aspecto o livro menos bem conseguido, embora a sua leitura até tenha sido rápida porque a escrita é fluída. Mas não senti uma curiosidade assim tão grande, porque o clima que se cria não o proporciona. O final foi, de certa forma, inesperado e só mesmo na parte final senti alguma urgência em desvendar o mistério.
Outro pormenor que me fez franzir o sobrolho algumas vezes foi a fixação da autora por olhos e narizes, as descrições de grande parte das personagens incluíam olhos "bem espaçados" e narizes às vezes demasiado longos e outras vezes com o tamanho perfeito. :)

É um livro com uma escrita acessível, com uma história relativamente bem estruturada e com personagens interessantes e suficientemente ambíguas para que não as descartássemos como possíveis assassinos. Pessoalmente o que mais gostei no livro foi mesmo do cenário de Veneza, a dinâmica da cidade e dos seus habitantes foi o que mais me agradou descobrir neste livro.

Gostei. Se vou ler mais algum da autora? Não sei... se se proporcionar não vejo porque não.

Boas leituras!

Excerto:
"Contudo, aquelas eram as horas em que, para Brunetti, a cidade adquiria mais beleza, altura em que ele, veneziano até à medula, conseguia apreender alguma da sua glória passada. As trevas da noite ocultavam o musgo que cobria os degraus de pedra dos palazzi que flanqueavam o Grande Canal, cobriam as fendas das paredes das igrejas, ocultando ainda os bocados de estuque que haviam caído das fachadas dos edifícios públicos. Tal como muitas mulheres de uma certa idade, a cidade tinha necessidade de uma luz enganadora, que mostrasse favoravelmente uma beleza que se havia dissipado."

Nota: Embora ache Lisboa linda, tanto de dia como à noite, a verdade é que algumas descrições de Veneza me fizeram lembrar Lisboa e o seu envelhecimento cada vez mais visível. Foi estranho...

fevereiro 08, 2011

Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis

Título original: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Ano da edição original: 1881
Autor: Machado de Assis
Editora: Edições Cotovia (Biblioteca editores Independentes)

"Memórias Póstumas de Brás Cubas representa um marco decisivo tanto no desenvolvimento da obra do seu autor como na evolução da literatura brasileira. Rompendo com o estilo Romântico dos anteriores livros de Machado de Assis, é considerado o romance inaugural do Realismo brasileiro.
Publicado originalmente em folhetim, em 1880, na Revista Brasileira, saiu em livro em 1881, causando espanto à crítica da época: a obra era extremamente ousada do ponto de vista formal e apresentava as mais radicais experimentações na prosa brasileira até então, rompendo definitivamente com as fórmulas consagradas pelo Romantismo. Narrado por um defunto, o romance apresenta uma visão irónica do mundo e das pessoas, numa crítica mordaz à hipocrisia reinante. Livre e descomprometido com a sociedade, Brás Cubas, o narrador, revela e analisa não só os motivos secretos do seu próprio comportamento como também põe a nu as hipocrisias e vaidades das pessoas com quem conviveu. Um retrato da elite carioca do final do século XIX: uma burguesia rica com anseios de nobreza.
Fiel ao humor, à ironia e também à liberdade do texto machadiano, e antecipando procedimentos modernistas e descobertas da psicanálise, Memórias Póstumas de Brás Cubas elevou a literatura brasileira a um patamar que esta jamais havia atingido."

Foi com grandes expectativas que parti para a leitura deste livro, outra coisa não seria de esperar depois de ter lido o magnífico Dom Casmurro (já comentado aqui) e que adorei. Este Memórias Póstumas de Brás Cubas é bastante diferente do Dom Casmurro e, talvez por isso não tenha sido bem aquilo que eu esperava. Gostei do livro, acho que vale a pena lê-lo, mas também o achei por vezes aborrecido, sem que a vida do defunto Brás Cubas sofresse grandes desenvolvimentos. A verdade é que, no início, ou no fim, depende da perspectiva, achei que Brás Cubas iria ser uma personagem mais interessante. No início da narrativa pareceu-me que ele iria ser um bon-vivant do século XIX: rico, mulherengo e pouco preocupado com o que os outros pensam dele. Mas afinal Brás Cubas até era boa pessoa e de mulherengo tinha muito pouco, uma vez que, anda praticamente todo o livro com apenas uma mulher, Virgília, o seu único amor. Estava à espera de uma vida mais agitada e fechei o livro com a sensação de que a vida de Brás Cubas foi um bocadinho aborrecida e previsível...

A premissa é, no mínimo original, Brás Cubas decide escrever as suas memórias depois de morto, que a bem da verdade é quando elas fazem sentido e quando o autor terá mais tempo para se dedicar a esses afazeres. :) Brás Cubas foi, na infância, um pequeno terrorista que pregava partidas e fazia a vida dos criados e escravos num inferno. Protegido pelo pai que o adorava, foi crescendo no seio de uma família bem estruturada, feliz à sua maneira. Brás Cubas cresce, apaixona-se por uma espanhola que leva parte da fortuna do pai de Brás, parte para Portugal obrigado pelo pai, forma-se e regressa ao Brasil para estar junto da mãe que estava a morrer. Abalado com esta perda, parte para a Tijuca, para a propriedade da família, onde pretende restabelecer-se e pensar no que fará da sua vida no Brasil. Aí rouba o primeiro beijo da filha de uma das amigas da mãe, com quem não pensa casar, pois a rapariga é coxa, um defeito que não se coaduna nem com a beleza dela nem com o estatuto que Brás sonha para si: "Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?". A pedido do pai, regressa ao Rio, com o objectivo de ingressar na vida política e casar, pois político solteiro é algo que não cai bem na opinião da sociedade. A noiva que lhe está reservada é Virgília, uma rapariga de 16 anos, com quem Brás acaba por não casar, porque o pai desta decide patrocinar outro candidato a político, um mais bem preparado e posicionado, um que ambiciona tornar a sua filha Baronesa. Anos mais tarde, Virgília e Brás reencontram-se e o amor que não teve tempo de despertar no passado, arrebata-os desta vez. Tornam-se amantes e... é isto. O livro vai relatando a relação destes dois até ao dia, muitos anos depois, em que Brás Cubas está no seu leito às portas da morte.

Para além da história propriamente dita, está sempre presente uma crítica muito mordaz à sociedade carioca da época, o jogo das aparências e dos interesses, da importância que a opinião pública tinha na tomada de decisões relacionadas com a vida privada de cada um e de como o dinheiro compra quase tudo, inclusive a moral. Acredito que tenha sido uma pedrada no charco quando foi lançado. Tem passagens de humor deliciosas e que só por si valem a leitura do livro. :) Machado de Assis cria, na personagem de Quincas Borba, uma nova filosofia, o Humanitismo. Uma filosofia que professa a lei do mais forte, as guerras como selecção dos mais capacitados e afins. Alguns críticos indicam que esta terá sido a forma que Machado de Assis encontrou de ironizar a teoria da evolução de Darwin, contemporânea de Machado de Assis.

Está muitíssimo bem escrito, isso é inegável, foi a história central que achei fraca, com momentos em que senti vontade de saltar parágrafos. Recomendo porque é Machado de Assis e vale sempre a pena ler este autor, porque a escrita é do mais actual e divertido que existe.

Excerto:
" Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma cousa que não era dor nem prazer, uma cousa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembranças da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de M. Prudhon..."

Boas leituras!

Fica aqui o trailer de uma das adaptações da obra para o cinema, Memórias Póstumas:

fevereiro 03, 2011

Perto da Felicidade - Richard Yates

Título original: Cold Spring Harbor
Ano da edição original: 1986
Autor: Richard Yates
Tradução: Nuno Guerreiro Josué
Editora: Quetzal Editores (Círculo de Leitores)

"Cold Spring Harbor é um subúrbio tradicional de Nova Iorque, o pano de fundo de um retrato da América dos anos quarenta, na ressaca de uma guerra e sob a ameaça de outra. Charles Shepard é um militar na reforma, que vive resignadamente a frustração de nunca ter combatido; Gloria Drake é uma mulher abandonada à solidão e à proximidade da loucura, fumando e falando sem cessar; Evan Shepard é um jovem à deriva, que procura uma formação superior, mas a quem os casamentos, que faz e desfaz distraidamente, travam o passo; Rachel Drake entrega-se a um marido imperfeito e ausente, tentando cumprir o papel da «esposa perfeita».
Nesta América deprimida e imóvel, cada um desempenha o papel que lhe cabe desempenhar. Porém, no coração de alguns brilha o desejo e germina a semente de um futuro maior."

De Richard Yates apenas li mais um livro, Revolutionary Road, já aqui comentado e que adorei. Este Perto da Felicidade embora não tenha a força do primeiro livro que escreveu é também muito bom.

Charles Shepard é um militar do exército reformado que nunca combateu. Para sua grande frustração desembarcou em solo Europeu uns dias depois da 1ª Grande Guerra ter terminado. Quando Pearl Harbor é atacado e os EUA se vêem forçados a intervir no conflito mundial, Charles ainda pensa em tentar uma nova incorporação, no entanto a sua gradual mas constante perda de visão levam-no a desistir da ideia. Charles é casado com Grace Shepard, uma mulher de quem apenas sabemos que é muito doente, sem que seja especificada a doença que a aflige desde sempre e que levou Charles a abandonar a carreira militar, numa altura em que até começava a sentir-se realizado nela, pois Grace não suportava continuar a viver em bases militares. O que sabemos desta mulher é que, para além de ser alcoólica, passa os dias sentada numa cadeira na varanda da casa de ambos em Cold Spring Harbor, nos subúrbios de Nova Iorque. Aparentemente sofre dos nervos, é depressiva, não sei, para mim é apenas preguiçosa e egoísta. Não tem uma vida social e é o marido que trata de tudo em casa, inclusive da educação do filho Evan Shepard.
Evan Shepard foi um miúdo rebelde na adolescência até que descobriu a paixão pelos automóveis. A única coisa em que é realmente bom é a conduzi-los e sabe tudo o que há para saber da sua mecânica. Sonha tirar um curso de Engenharia Mecânica, mas vai adiando o seu sonho, primeiro por causa do seu primeiro casamento com a namorada que engravidou e, depois por causa do seu segundo casamento com a namorada que não engravidou, mas cuja pressão familiar acabou por resultar igualmente num casamento apressado e inconsciente. A trabalhar numa fábrica desde o seu primeiro casamento, Evan torna-se um fantasma daquilo que o pai sonhou para ele, é desinteressado, sem ambição e energia para lutar por aquilo que deseja, é manipulável e desinteressante. Casa com Rachel Drake, em segundas núpcias, nem se sabe bem porquê. Antes de a conhecer tinha planos para entrar na faculdade, conhece-a, não é arrebatado por nada nela, gosta dela, é certo, mas não a ama, isso é visível. Rachel é uma miúda de aparência frágil que se encanta pela beleza física de Evan e pela segurança das suas acções, pela sua postura, pelos seus movimentos e pela sua galantearia. Rachel tenta ser feliz, representa o papel da esposa perfeita da forma que acha que Evan gosta. Tive sempre a sensação de que ela estava a viver como se estivesse dentro de um filme ou de um romance. Pouco natural nas suas expressões e na maneira como lidava com todos à sua volta. É, no entanto, a par com Charles Shepard a personagem mais equilibrada e menos deprimida da história.
Nos primeiros tempos o casal parece ter encontrado o seu lugar no mundo, vivendo felizes mas, depois de se mudarem para uma casa com a mãe de Rachel, Gloria Drake, por razões económicas, as coisas começam a não correr tão bem.
Gloria é um mulher à beira da loucura que fala sem parar, extremamente solitária e necessitada de atenção. É uma personagem de quem, embora sentisse alguma pena, não se consegue gostar. É muito chata, muito pegajosa, muito presente em tudo, descontrolada e, embora não seja má mãe, também não é assim lá grande coisa como tal. Como personagem literária é das criaturas mais infelizes que já conheci, tal é a sofrimento interior que sentimos emanar dela. Phil é o seu filho mais novo, irmão de Rachel.
Phil é um adolescente quando Evan entra na vida da sua irmã. É um rapaz franzino, pequeno para a idade, mais dado a leituras e ao pensamento que ao desporto e à brincadeira de rua. Evan têm por ele uma aversão instantânea, achando-o amaricado. Phil sente essa aversão desde o início e apenas o amor que sente pela irmã e a sua cobardia natural o coíbe de expressar tudo o que pensa do cunhado. É um miúdo solitário, que tem vergonha da mãe e que apenas quer estar longe de casa. Internado num colégio interno, sonha com o dia em que terá idade suficiente para ser incorporado no exército e ir combater na Europa, mais ainda depois do cunhado ter sido dispensado por razões médicas. A guerra parece ser a única saída para os jovens na altura, a única perspectiva de vida que conseguiam conceber.

Perto da Felicidade não é um livro bonito, com personagens felizes e com finais felizes. É sim, um livro depressivo, angustiante, muitas vezes exasperante e triste. Com pessoas que levam vidas miseráveis, frustrantes, deprimidas e sem qualquer esperança de dias melhores. Pessoas que se agarram a qualquer migalha de felicidade e a tentam fazer durar até ao absurdo. É um livro carregado de inércia e de inacção, as pessoas limitam-se a viver o dia-a-dia e a fazer aquilo que é esperado delas. Vivem como a sociedade espera que elas vivam, mesmo que dessa forma acabem por abandonar os seus projectos para um futuro mais risonho.

O título que a edição portuguesa adoptou é muito acertado, todas as personagens passam por momentos em que a felicidade espreita, quase a conseguem tocar, mas acontece sempre qualquer coisa que os torna a arrastar para a vida triste e monótona que levavam. Richard Yates parece perito em arruinar os sonhos das suas personagens e em fazê-las cada vez mais angustiadas. Nada de finais felizes nos livros deste senhor, que levou ele próprio uma vida depressiva e problemática e portanto sabe que na vida real é raro haver finais felizes.

Não é tão bom como o Revolutionary Road, falta-lhe talvez alguma da sua eficácia em nos fazer sentir o que as personagens sentem, e que é uma das suas mais-valias. Perto da Felicidade é, no entanto, um livro muito bem escrito e que vale a pena ler. Se andarem um pouco deprimidos com as vossa vidas eu aconselharia que adiassem esta leitura para tempos mais risonhos, que ao contrário do que Richard Yates julgava, também acabam por surgir na vida das pessoas reais. :)

Boas leituras!

Excertos:
"Ela podia não ter mais de cinquenta anos, mas pouco restava do que quer que em tempos tivera de aparência física. O seu cabelo era uma mistura de amarelo desbotado e cinzento claro, como que pintado por muitos anos de fumo de cigarro à deriva, e ainda que se pudesse dizer que o seu corpo tinha mantido a linha, era uma linha tão frágil, frouxa e miúda que não se podia imaginar que fizesse outra coisa que não sentar-se ali, naquele sofá manchado de café. A sua própria maneira de sentar sugeria uma ansiosa necessidade de ser ouvida e compreendida, e, se possível, que gostassem dela: encurvada para a frente, com os antebraços sobre os joelhos, e as mãos juntas contorcendo-se ao ritmo da sua própria conversa."

"«Oh, mas que agradável», dizia Gloria frequentemente na iminência de um jantar, e se Phil porventura olhasse para ela podia sempre ver como naquela noite ela estava com medo, uma vez mais, que não houvesse à volta da mesa outra voz que não a dela. Por duas vezes durante as primeiras semanas ela tornou o desconforto de todos ainda maior ao queixar-se: «Bem, sempre pensei que a hora de jantar fosse para conversar.» E nem o próprio filho conseguia reunir coragem para olhar para ela quando ela disse aquilo."

fevereiro 02, 2011

Dolores Claiborne - Stephen King

Sinopse retirada do site do Stephen King, aqui.

"
By her own account she's an old Yankee bitch. Dolores Claiborne: foul temper, foul mouth, foul life. Folks on Little Tall Island have been waiting thirty years to find out just what happened on the eerie dark day her husband, Joe, died--the day of the total eclipse. The police want to know what happened yesterday, when rich, bedridden Vera Donovan, the island's grand dame sans merci and Dolore's longtime employer, died suddenly in her care.

With no choice but to talk, Dolores Claiborne talks up a storm. "Everything I did, I did for love," she says, and this spellbinding novel is at once her confession and her defense. Given a voice as compelling as any in contemporary fiction, her story centers on a disintegrating marriage's molten core, where the mind's unblinking eye becomes huge with hate and a woman's heart turns murderous. It unfolds the strange intimacy between Dolores and Vera, and the link that binds them. It shows, finally, how fierce love can be, and how dreadful its consequences. And how the soul, harrowed by the hardest life, can achieve a kind of grace.

But that is for readers to judge. They will come away with different verdicts for Dolores, perhaps. But once taken inside the dark room of her life, lit by the brilliant intensity of Stephen King's storytelling, they will never forget her."

Há muito tempo que não lia Stephen King e foi muito bom regressar à sua escrita.
Este Dolores Claiborne é um livro pequeno, onde se conta a vida de uma mulher igual à de tantas mulheres por este mundo fora. Dolores é uma mulher já com alguma idade que se vê forçada a relembrar e reviver a sua vida com Joe St. George, o marido que morreu, de forma violenta, há trinta anos atrás, como forma de enquadrar a relação que mantinha com Vera Donovan, a patroa irascível de quem cuidava e que morreu de forma aparentemente suspeita. Dolores Claiborne torna-se a principal suspeita deste possível crime, mais que não seja, porque era a única pessoa presente quando o acidente ocorreu.
O livro é o relato de Dolores, na esquadra da polícia, onde a primeira coisa que faz é confessar ter morto o marido há trinta anos atrás, mas que nada teve a ver com a morte de Vera Donovan. Numa primeira parte, Dolores relata a história da sua família: porque casou com Joe St. George, a violência de que foi alvo, até ao dia em que ensinou o marido a temê-la, a relação deste com os três filhos, uma relação pouco saudável, a descoberta de algo que lhe gelou o coração e o plano que engendrou para acabar com a vida do marido.
Numa segunda parte relata o que se passou com Vera Donovan, o declínio físico e mental da patroa. As maldades de que esta era capaz nos momentos em que se encontrava lúcida e da insegurança que era capaz de sentir quando se encontrava completamente alheada do mundo real. De como ela, anos antes, a ajudara relativamente ao marido e de como no fim se apercebeu de que eram mais parecidas do que imaginava.

É um livro que se lê muito bem, com uma história bem ao estilo do Stephen King, com personagens muito bem criadas e com descrições realistas, daquelas que nos fazem semicerrar os olhos, como fazemos nos filmes de terror. A descrição da morte do marido de Dolores é dolorosa de ler e a aflição e desorientação dela difíceis de aguentar. Até o medo de Vera Donovan das terríveis bolas de cotão que a perseguiam nos momentos de alheamento da realidade, embora sendo um medo ridículo, me fizeram encolher e olhar de lado para os cantos obscuros do meu quarto... :)
Gostei muito das duas personagens femininas, Dolores e Vera, por serem destemidas e espirituosas, com um sentido de humor de que gostei. São também duas mulheres muito sozinhas que encontraram alternativas, é certo que por vezes moralmente pouco aceitáveis, de aliviar a dor que sentiam. Viviam as duas num jogo do gato e do rato, odiando-se uma à outra mas sem poderem, no entanto, viver separadas.

A violência doméstica, é um dos temas fetiche do autor, a par com os escritores com bloqueios e o Maine, e neste livro este é o tema subjacente à história. Só vos digo que em todos os que li relacionados com o tema, o homem que bate, e não só, na mulher e nos filhos tem sempre um final trágico e violento. Acho até que os homens com essas tendências deveriam ler estes livros como elemento dissuasor e, as mulheres como inspiração. ;)

Não é o melhor livro de Stephen King que já li, mas é um livro que vale a pena ler e por isso recomendo.

Excerto:
"Ouviu-se um grande estalo e depois ele gritou...
Não, não é verdade.
Ele não gritou, e acho que vocês o sabem tão bem como eu. Ele guinchou como um coelho que tivesse ficado com a pata presa numa sebe. (...) No meio via-se a cabeça do Joe, que se agarrava com toda a força a uma tábua rachada. Tinhas as mãos a sangrar e um fio de sangue escorria-lhe do canto da boca até ao queixo. Tinha os olhos do tamanho de puxadores de porta. (...)
Ele gritou outra vez, lá em baixo. Fez eco nas paredes do poço. Era outra coisa que eu não imaginara: o grito dele ao cair. Depois ouviu-se um estrondo e ele calou-se. De repente. Tal como um candeeiro se apaga quando alguém desliga o interruptor."

Notas:
  1. Neste livro Stephen King volta a incluir na história o eclipse solar que ocorreu a 20 Julho de 1963. Já o havia referido no livro "O Jogo de Gerald" (a minha opinião aqui), como parte de uma das lembranças de infância da protagonista. Aliás Dolores Claiborne é a mulher que Jessie Burlingame, "vê" no dia do eclipse depois a experiência traumática com o pai. Dolores Claiborne também refere, neste livro, que teve a visão de uma rapariga de 10 anos, triste e assustada, essa rapariga é Jessie. É típico de Stephen King misturar as histórias dos seus livros.
  2. Existe uma adaptação para o cinema deste livro do Stephen King. O filme tem o mesmo nome, Dolores Claiborne e é com a maravilhosa Kathy Bates, que interpretou uma assustadora Annie Wilkes no filme Misery (trailer aqui), também adaptado do livro homónimo do Stephen King. Fica aqui o trailer do Dolores Claiborne:


Boas leituras!