janeiro 26, 2014

Desgraça - J. M. Coetzee

Título original: Disgrace
Ano da edição original: 1999
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: José Remelhe
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Com cinquenta e dois anos, o professor David Lurie perde o emprego e os amigos depois de um romance com uma das suas alunas, refugiando-se na quinta da filha, Lucy. As tentativas de David para se relacionar com Lucy e com uma sociedade feita de novas complexidades raciais são perturbadas por uma tarde de violência que os vai modificar, a ele e à filha, de uma forma que ele jamais poderia prever." 

J. M. Coetzee é um autor para o qual não devemos partir de ânimo leve. As suas histórias têm uma espécie de força para a qual temos de estar preparados . A violência, não apenas física, que lá vamos encontrar é, à falta de melhor palavra, desconcertante e toda a dinâmica que ele cria chega a ser desconfortável. 
Quando o título do livro é Desgraça, não podemos dizer que fomos apanhados desprevenidos.

(pode conter spoilers)

Desgraça passa-se na África do Sul, o país que todos conhecemos pelas piores razões, mesmo que pelo meio surjam coisas boas, quando o nome África de Sul surge, a nossa primeira reacção é, naturalmente, de apreensão. David Lurie é um dos brancos daquele país, tem cinquenta e dois anos, divorciado, com uma filha e professor universitário na Cidade do Cabo. Dá aulas apenas porque precisa da estabilidade financeira, não sente qualquer vocação e não sente por parte dos seus alunos qualquer afeição ou interesse particular pelas suas palestras literárias.
É, ao mesmo tempo, obstinado e fiel aos seus princípios, não pensa no país como sendo preto e branco, vê pessoas e principalmente vê mulheres, miúdas mais novas que lhe despertam interesse. É o que acontece com Melanie, uma das suas alunas com quem acaba por se envolver. Gosta dela, para além do físico, e em plena crise de meia idade, não vê qualquer sinal de perigo na relação que mantém com a rapariga. Naturalmente, nem tudo corre como esperado e David, após uma espécie de julgamento académico, levado a cabo pelos seus pares na universidade, é expulso da instituição, acusado de assédio sexual. Para além da questão moral, que é discutida por alguns colegas de David, principalmente colegas femininas, a sensação que fica é que, David foi expulso porque não entrou no jogo da expiação e remorso que os seus colegas teriam desejado. Não precisavam  de remorso verdadeiro apenas de um pedido de desculpa que David nunca esteve disposto a pedir. Desculpa porquê? Nunca fez nada de mal.

Sem nunca alcançar a gravidade do que lhe aconteceu mas sabendo que o melhor é desaparecer por uns tempos, parte para o interior, para viver uns tempos com a filha Lucy. E é aqui que tudo começa. É engraçado como deste livro de Coetzee as referências que tinha eram apenas a da história inicial, da relação da personagem com uma aluna e dos problemas raciais à volta. Na realidade esta é apenas uma parte da história e que fica mais ou menos resolvida assim que ele parte para junto da filha. A história com Melanie parece servir apenas para nos dar a conhecer David, a forma como vive e o que pensa. Serve também para mostrar dois mundos distintos, o meio urbano onde todos tentam ser o mais civilizados possível, e o meio rural onde a violência é uma realidade e a questão racial é um problema muito mais concreto.

A filha de David, já adulta, vive sozinha numa quinta no interior do país. Cultiva hortaliças, planta flores e tem um canil. É uma mulher branca a viver sozinha numa quinta e David não percebe como a filha não vê os perigos que isso pode trazer. Para Lucy, o pai é um homem da cidade, instruído e que vem para ali cheio de preconceitos e que simplesmente não percebe que a felicidade está nas coisas simples, trabalhar no campo, ajudar animais em perigo e viver de forma a não ofender ninguém. Ela acredita que vivendo de forma honesta, sem tiques de proprietária colonialista, nada de mal lhe pode acontecer. David acaba por se ir adaptando à vida no campo, ao contrário do que a filha pensa, ele não é um pseudo-intelectual preconceituoso. Ambos têm muito a aprender um com outro. Na verdade David gosta da oportunidade que a vida lhe está a dar para conhecer melhor Lucy, a filha independente que sempre fez o que quis, sem precisar de grande orientação por parte dos pais. Acima de tudo, existe em David uma necessidade de encontrar um lugar no mundo onde se possa sentir útil. Para David envelhecer não tem sido pacífico, principalmente por causa das mulheres, o seu calcanhar de Aquiles. :) Por isso pretende aproveitar toda a história com a aluna para recuperar o tempo perdido com a filha e ser um pai mais presente, protegê-la dos perigos e se conseguir sair de todo este processo uma melhor pessoa tanto melhor.

Infelizmente os receios de David acabam por ser concretizar no dia em que os dois são atacados na propriedade de Lucy, por um grupo de homens, quase uns miúdos, que fazem mais do que roubar o carro de David. A violência, mais insinuada do que descrita, é revoltante e as consequências vão muito para além do físico. 
David martiriza-se por não ter conseguido proteger a filha. Lucy após um período de isolamento, encontra uma forma de despersonalizar o que lhe aconteceu e tenta contextualizar, justificar o comportamento dos homens que a atacaram. Ela começa a encarar tudo aquilo como o preço a pagar para poder permanecer ali, como se a violência de que foi vítima estivesse escrita nas condições contratuais que vinham com a compra do seu pedaço de terra. Existe a partir dali uma dinâmica entre as personagens que é desconcertante. Com o pai a não saber lidar com as ideias de uma filha que achava ser mais inteligente, mais livre e evoluída, no seu entender. Sem conseguir perceber a teimosia da filha em querer continuar ali, a viver, lado a lado com um dos miúdos que violou. A lidar com a culpa, completamente incapaz de convencer a filha a sair daquele lugar, a relação entre os dois degrada-se. David regressa à Cidade do Cabo, apreensivo por deixar Lucy sozinha mas consciente de que lhe faz mais mal que bem, naquele momento. Volta para um cidade que já não reconhece e que deixou de o aceitar. Percebe finalmente o que precisa de fazer relativamente a Melanie e à família desta, pede perdão, e volta para junto da filha que, quer ela saiba quer não, precisa mais dele do que imagina. Volta redimido e predisposto a retirar-se da equação e concentrar-se na recuperação física e psicológica da filha.

Desgraça é um livro violento, com personagens difíceis de esquecer, complexas e inesperadas, que nos exasperam e nos comovem. Gosto de Coetzee e do que faz com as palavras. Gosto da forma como conta uma história e de como cria em nós, leitores, empatias. 

É um livro que deve ser lido, por toda a carga emocional e humana que transporta e porque Coetzee é realmente um escritor muito bom. 

Boas leituras!

Excerto:
"(...) Na minha opinião, aquilo que me aconteceu só a mim diz respeito. Noutra época, noutro local, talvez pudesse ser considerado um assunto público. Mas, neste local, nesta época, não é. É um assunto meu, apenas meu.
 - E a que local te referes?
 - A África do Sul.
 - Não concordo. Não concordo com o que estás a fazer. Pensas, porventura, que ao aceitares pacificamente o que te aconteceu, conseguirás diferenciar-te de agricultores como o Ettinger? Pensas, porventura, que o que aconteceu aqui foi um teste: se tiveres boa nota, recebes um diploma e um salvo-conduto para o futuro, ou uma tabuleta para colocares por cima da porta que fará com que a praga passe sem te atacar? Não é assim que a vingança funciona, Lucy. A vingança é como um incêndio. Quanto mais devora, mais fome tem."

Fica o trailer do filme inspirado na obra de J. M. Coetzee - "Disgrace" de Steve Jacobs, com John Malkovich no papel de David Lurie:

janeiro 02, 2014

La Coca - J. Rentes de Carvalho

Título original: La Coca
Ano da edição original: 2011
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal Editores

"Manuel Galeano - que sempre tivera "o contrabando no sangue" - desapareceu inesperadamente antes de um segundo encontro. O primeiro, em Amesterdão, fora uma conversa saborosa no bar de um hotel (memórias de juventude e certas confidências sobre o presente), e é o ponto de partida para uma longa evocação e uma viagem sentimental: cinco décadas de história do tráfico entre o Minho e a Galiza. Negócios de cigarros, uísque, barras de ouro, gado, café e, mais recentemente, droga. Com a história seguem também os seus deliciosos protagonistas (Diogo Romano, El Min, Sítio Minanco, o Pardal, o Pepe Mustafá e o Laurestim), que compõem o imaginário pícaro da região que o autor revisita para lembrar a sua primeira idade adulta."

Gosto muito de J. Rentes de Carvalho, não é novidade para ninguém. Mas este La Coca não me encheu as medidas. Achei-o um pouco desligado e a história pouco fluída. Está lá o cunho de J. Rentes de Carvalho, que não existam duvidas em relação a isso, não deixou de ser um livro que se leu muito bem e com gosto, só não será dos mais inspirados dele. :-)

Feita esta parte difícil da opinião, a de dizer que não amamos um livro de um escritor que nos diz muito, passemos ao livro propriamente dito. 

La Coca é, à semelhança de outros livros de J. Rentes de Carvalho, um livro de memórias, nostálgico por natureza e, por isso, muito mais do que um livro sobre os contrabandistas minhotos e galegos do século passado e dos narcotraficantes deste século. A história inicia-se quando o nosso escritor, a viver em Amesterdão, reencontra um amigo de longa data, um daqueles que fazem parte das nossas brincadeiras de infância. Desse encontro inesperado, nasce no narrador (que supomos ser o próprio escritor) uma vontade de revisitar os lugares que o viram crescer. Sob o pretexto de um trabalho de investigação acerca do novo contrabando praticado na fronteira, parte para Portugal. Lá encontra, para além do rastro perdido e incerto dos amigos de outrora, as memórias das paixonetas, as angústias da adolescência e lugares que já não são exactamente como se recorda deles. Mudanças que doem, que quase põem em causa toda uma vida estruturada em função de memórias que sempre acreditou serem concretas e reais. 
J. Rentes de Carvalho vai, desta forma, relatando as vivências dos minhotos y sus hermanos galegos numa época onde quase tudo era proibido. Recorre às suas próprias recordações e às conversas que vai tendo com quem faz, hoje em dia, a história da região.


Enfim, gostei mais uma vez da escrita de J. Rentes de Carvalho, da familiaridade que os lugares nos transmitem e da história. Não me identifiquei muito com a forma como é contada, achei-a menos envolvente, talvez porque ele acaba por não aprofundar o tema do narcotráfico e este acaba por ser pouco mais do que o fio condutor das memórias do escritor.

Recomendo por ser um livro de J. Rentes de Carvalho, o que quer dizer que, mesmo menos inspirado, vale a pena ler! ;-)

Boas leituras!

Excerto:
"Seguindo ao longo da margem refaço, pois, o que foi o caminho de casa. Mas chegado ao pequeno jardim fronteiro ao convento de Corpus Christi - o convento das freiras, como ainda se diz - paro num banco, sem vontade de me meter calçada acima e subir a escadaria medieval feita de pedras grosseiras e desiguais. Também, de facto, sem vontade de rever o largo onde nasci, porque todas as vezes que lá volto, e por muito que me esforce por reter a sua imagem actual, por mais atentamente que procure captar os rostos das pessoas, o aspecto das casas, dos armazéns de vinhos, a cor dos muros dos quintais, a amplidão do panorama, mal me vou embora logo essa imagem se desfaz. Como se a memória, ao filtrar as impressões, desdenhe das recentes e prefira aquelas sobre que pesa a recordação."