julho 12, 2016

Deixem Falar as Pedras - David Machado

Título original: Deixem Falar as Pedras
Ano da edição original: 2011
Autor: David Machado
Editora: Publicações Dom Quixote

"No dia em que se ia casar, Nicolau Manuel foi levado pela Guarda para um interrogatório e já não voltou. Viveu, assim, quase toda a vida na urgência de contar a verdade a Graça dos Penedo, a noiva que mais tarde lhe seria arrebatada pelo alfaiate que lhe fizera o fato de casamento. Porém, sempre que se abria uma possibilidade, uma ameaça desviava-o dramaticamente do seu destino - e agora, meio século volvido, está velho demais para querer mudar as coisas, gastando os dias com telenovelas.
De tanto ouvir ao avô a sua história rocambolesca, Valdemar - um rapaz violento e obeso apaixonado pela vizinha anoréctica - não desistiu, mesmo assim, de fazer justiça por ele. E, ao encontrar casualmente a notícia da morte do alfaiate, sabe que chegou a hora de ir falar com a viúva: até porque essa será a única forma de resgatar Nicolau Manuel da modorra em que se deixou afundar.
Alternando a narrativa dos sucessivos infortúnios de Nicolau Manuel - que é também a história de Portugal sob a ditadura, com os seus enganos, perseguições e injustiças - com a de um adolescente que mantém um diário com numerosas passagens rasuradas como instrumento de luta contra o mundo -, Deixem Falar as Pedras é um romance maduro e fascinante sobre a transmissão das memórias de geração em geração, nunca isenta de cortes a acrescentos que fazem da verdade não o que aconteceu, mas o que recordamos."

As minhas últimas leituras têm sido agradáveis descobertas de escritores nunca antes lidos. David Machado andava debaixo de olho há algum tempo, e nesta Feira do Livro de Lisboa veio comigo para casa.

Deixem Falar as Pedras é um livro sobre as memórias e a transmissão das mesmas, neste caso de um avô ao seu neto. Valdemar cresceu a ouvir as histórias do seu avô excêntrico. O avô viveu uma vida impossível e absurda. De tanto ouvir as histórias de Nicolau e ao ver o estado debilitado em que o avô se encontra, Valdemar chama a si a responsabilidade de vingar as injustiças sofridas por ele e de contar a verdade do avô à única mulher que este amou em toda a vida, Graça dos Penedo, e com quem esteve mais de 50 anos sem conseguir falar.

O livro divide-se entre as histórias que Nicolau Manuel contou ao neto e as angústias e preocupações de um adolescente.
Valdemar registou religiosamente num caderno as histórias que foi ouvido do avô, para que na transmissão da verdade do avô, não fossem introduzidas alterações devido a falhas de memória ou falsas memórias que ele pudesse ter das histórias que ouviu, vezes sem conta.
Curiosamente é no registo do que lhe acontece que Valdemar vai exercendo alguma censura, com algumas partes da narrativa rasuradas. As histórias do avô são incontestáveis.


Nicolau Manuel concentra a sua sede de justiça pelo que lhe aconteceu numa única pessoa, o alfaiate que fez o seu fato de casamento e que, veio a casar com a sua noiva Graça dos Penedo. Culpa o alfaiate de todos os males que lhe aconteceram, de toda a tortura que sofreu às mãos da PIDE. Culpa-o porque lhe é impossível acreditar que a perseguição possa ter sido fruto do azar? Culpa-o porque lhe parece impensável que toda a sua vida tenha sido condicionada sem que a polícia política tivesse razões efectivas para tal, sem que tenha havido lugar a denúncias? Culpa-o porque é menos assustador acreditar na crueldade e no ciúme de um único homem, do que acreditar que um grupo de homens possa torturar e perseguir um homem anos a fio, apenas e só porque um dia foi apanhado nos seus radares e estava no sítio errado à hora errada, apenas e só porque sim? 

Até  que ponto as memórias que todos temos reflectem a realidade do que se passou? Até que ponto deturpamos a realidade, de forma consciente ou não, quando contamos uma história?
Eu, por exemplo, apercebi-me há bem pouco tempo de que uma das minhas memórias de infância não podia ser real... terei sonhado? Provavelmente. Porque é que tive esta memória como certa até tão tarde? Não sei, talvez porque era uma boa memória, porque desejei como só as crianças sabem desejar que fosse real. :)

Isto leva-nos a questionar a veracidade daquilo que nos dizem ter acontecido. No mínimo a não dar como certo tudo o que nos dizem. Se nem nas nossas memórias podemos confiar, porque haveremos de acreditar cegamente nas dos outros?

Gostei bastante deste livro. A escrita é fluida, as personagens bem construídas e a história original. David Machado é um escritor a manter debaixo de olho. Além disso tem um título fabuloso! :)

Recomendo.

Boas leituras!

Nota: Recomendo também o livro de Carlos Machado, Um Amor sem tempo, pai de David Machado. A minha opinião aqui:

Excerto (pág. 328):
"O meu pai começou a contar uma história sobre o meu avô, uma história que eu não conhecia, que o meu avô nunca me tinha contado, uma história onde o meu avô não era perseguido, nem torturado, nem atraiçoado, uma história sobre um dia qualquer há mais de trinta anos, quando o meu avô ensinou o meu pai a nadar, só eles os dois, sozinhos, a falar e a rir, a tarde a na outra margem da barragem e eles a chapinharem na água... Eu não quero pensar muito sobre a história (que nem sequer é exactamente uma história). Tenho medo de serpentear demasiado pelas palavras do meu pai e perceber que se calhar algumas são falsas, que a possibilidade de alguma coisa ser mentira existe. Acredito na história. Um dia peço ao meu pai que a conte outra vez. Porque é uma das melhores histórias sobre o meu avô que já ouvi alguém contar."

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