agosto 30, 2024

O Dia da Expiação - David Liss

Título original: The Day of Atonement
Ano da edição original: 2014
Autor: David Liss
Tradução: Inês Castro
Editora: Clube de Autor

"Lisboa é o palco desta história fascinante narrada por um dos principais romancistas históricos norte-americanos.

O Dia da Expiação combina minuciosos pormenores de época com a história de um homem que deseja justiça e vingança.

1755. Um homem regressa do exílio determinado em vingar-se da Inquisição, que lhe havia destruído a família. Mas numa cidade marcada pela pobreza, injustiça e intolerância religiosa, não será fácil distinguir os aliados dos inimigos."

Tenho um carinho especial por David Liss. Não sei porquê, talvez por fazer tantas referências a Portugal, não sei, mas desde que Benjamin Weaver entrou na minha vida com A Conspiração do PapelDavid Liss ganhou um lugarzinho especial no meu coraçãozinho de leitora. 

O Dia da Expiação, passa-se numa altura em que a Inquisição ainda aterrorizava Portugal, com muita atividade, especialmente em Lisboa. 
Os novos cristãos (judeus convertidos) eram o alvo preferido dos inquisidores da Santa Fé, tinham algumas posses e, também por isso, acabavam por criar à sua volta alguns inimigos que os iam denunciando pela prática proibida do judaísmo, mesmo que isso não fosse verdade. Ao serem presos e condenados, toda a sua fortuna e todos os seus bens eram transferidos para a Inquisição. 

O nosso protagonista, Sebastião Raposa, é filho de novos cristãos, denunciados à Inquisição por praticarem a fé judaica. Os pais acabam por morrer nas masmorras da Inquisição, não sem antes assegurarem que o único filho, uma criança de 12 anos, consegue fugir para Londres, ficando ao cuidado no nosso já conhecido Benjamin Weaver. 

Londres, na altura era o refúgio de muitos cristãos-novos e de judeus praticantes. Era uma cidade tolerante nesse sentido. Desde que os negócios não fossem prejudicados, todas as religiões eram toleradas. Para além disso, Londres era um refúgio porque muitos ingleses viviam em Lisboa onde tinham negócios muito lucrativos. Os ingleses e seu protestantismo eram tolerados em Lisboa porque, enfim mais uma vez havendo dinheiro envolvido tudo se vai resolvendo. 

Benjamin Weaver vai ensinar tudo o que sabe ao nosso protagonista e o nosso protagonista vai aprender tudo, nunca esquecendo o nome do padre que prendeu os pais. Não consegue ultrapassar o ódio que sente e, é por isso que, assim que pode, regressa a Lisboa com uma identidade falsa, para se vingar do padre Pedro Azinheiro, o mais temível inquisidor do país.

Sebastião parte para Lisboa com o coração cheio de raiva e com sede de vingança mas parte também com o desejo de reencontrar parte da sua infância. Tem esperança de reencontrar Gabriela, a namorada na época e que a separação forçada não permitiu esquecer. 
Em Lisboa, Sebastião vai encontrar muito mais do que aquilo que o levou até lá, vai conhecer novas pessoas, reencontrar outras, vai ser enganado e vai enganar e as suas ações vão provocar reações que ultrapassam as suas intenções.

Quando confrontado com a possibilidade de cumprir as sua vingança, destruindo Pedro Azinheiro, Sebastião hesita porque o Sebastião que decidiu regressar a Lisboa não é o mesmo que fugiu dela com 12 anos e, todas as peripécias que viveu desde que desembarcou na cidade, colocaram em causa muito do que o movia antes. Irá Sebastião dar ouvidos à sua raiva e ao seu ódio pela Inquisição ou, o regresso a Lisboa acabou por apaziguar a sua dor?

Este O Dia da Expiação, talvez por não ser um livro de Benjamin Weaver, embora ele tenha um papel breve mas importante na história, não me encheu as medidas. Achei-o um pouco aborrecido porque a história se estendeu e tornou-se repetitivo e previsível.  No entanto, gostei bastante da descrição da Lisboa do século XVIII, antes de ser dizimada pelo terramoto de 1755, evento que faz parte da história contada no livro. 

Gosto de David Liss e, por isso só posso recomendar. É um livro bastante interessante e que se lê muito bem.

Boas leituras!

Excerto (pág. 47):
"Desviei o olhar. Abandonara o meu pai na prisão da Inquisição. Deixara a minha mãe sozinha. A sobrevivência não era, em si mesma, heroica. A mera sugestão enraiveceu-me e, para minha surpresa, dei por mim a abraçar a raiva. Era a primeira vez desde que me escondera no porão do paquete que sentia outra coisa para além de medo ou tristeza. Queria agarrar-me àquela raiva, alimentá-la como a faísca que se torna chama, porque talvez queimasse e fizesse desaparecer tudo o resto." 

agosto 28, 2024

E Três Maçãs Caíram do Céu - Nariné Abgarian

Título original: C неба уnалu mpu яблока
Ano da edição original: 2015
Autor: Nariné Abgarian
Tradução (do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Editorial Presença

"Em Maran, uma pequena aldeia aninhada nas montanhas arménias, os sonhos, as pragas e os milagres são produtos da realidade, intocados pelo tempo. É neste lugar perdido que encontramos Anatólia, tranquila, deitada na sua cama, à espera da morte, convicta de que só isso pode acontecer. Anatólia teve uma vida longa, não foi mãe como tanto desejou, passou anos a cuidar da biblioteca da aldeia, centro da sua pouca felicidade, e foi mulher num casamento em que o sofrimento substituiu o amor. Agora, sabe-o, vai morrer. Porém, Vassíli, o vizinho, entra de surpresa em sua casa: ele tem outros planos e uma proposta inesperada para lhe fazer.

E assim começa a história que vai transformar a aldeia de Maran, uma história que mescla realidade e fábula, que confunde as fronteiras do racional e do onírico, e não deixa ninguém - naquela aldeia ou deste lado do romance - indiferente."


Acho que a primeira palavra que me vem à cabeça quando penso neste livro é Beleza. Beleza nas palavras, beleza nas paisagens, beleza nas pessoas que nele são retratadas, beleza na forma como se relacionam entre si, beleza em praticamente tudo, exceto na dureza das vidas de todos em Maran, uma aldeia isolada nas montanhas da Arménia.

A história inicia com Anatólia, que se prepara para morrer, sozinha na sua casa. Sendo a mais nova de Maran, com cerca de 50 anos, acha que já viveu e sofreu o suficiente, está preparada para morrer e não quer que nenhuma das vizinhas saibam que se está a esvair em sangue e que a obriguem a ir para o Hospital no vale ou, que tentem curá-la com mezinhas. Está pronta para morrer e deixar Maran. 
Quando acorda no dia seguinte e se apercebe que ainda está viva, sente-se um pouco desesperada, quer morrer e se não for rápido como achou que iria ser, não vai conseguir esconder o seu problema dos vizinhos.

A história começa por aqui, é-nos apresentada uma aldeia sem crianças, apenas velhos, que se conhecem desde sempre. Vivem como sempre viveram, com as suas rotinas, as suas birras e as suas alegrias. Tentam manter uma vida normal, mesmo sabendo que a aldeia desaparecerá quando o último habitante de Maran morrer.
A história de Maran e dos seus habitantes é uma história dura, cheia de perdas. É uma aldeia isolada numa montanha da Arménia onde, com o passar dos anos é cada vez mais difícil chegar, vindos do vale, onde se situa a cidade mais próxima. 
Tal como toda a região, passou por guerras, fome e perdeu praticamente todos os jovens e crianças que lá nasceram, para a fome e para a guerra. Não há uma única pessoa na aldeia que não tenha perdido um filho.
No entanto, não se sente essa tristeza nas pessoas, talvez por terem perdido tanto e a desgraça ser tão democrática, ninguém se sinta no direito de andar infeliz porque o vizinho do lado perdeu tanto ou mais do que ele. Vivem em comunidade, são afáveis e preocupam-se uns com os outros e, à sua maneira acreditam no amor e na felicidade.

A história está repleta de algum misticismo, algum realismo mágico, que resulta muito bem em toda a narrativa. É quase normal que as coisas não sigam uma lógica racional e certinha em Maran. É um local isolado, meio perdido no tempo onde, para sobreviver a tanta perda, as pessoas recorrem a explicações menos racionais. Veem os seus mortos, encontram neles proteção e interpretam certos acontecimentos como sinais que podem indicar o caminho certo.

É uma história muito bonita, muito bem escrita e que, embora relate muita tristeza, me manteve com um sorriso no rosto porque está repleta de bom humor, de ternura, de aconchego e de gente muito mas muito real e próxima, que sentimos que podemos abraçar.

Gostei muito e recomendo sem qualquer hesitação.

Nariné Abgarian é para manter debaixo de olho. 

Boas leituras!


Excerto (pág. 41):

"Cada linhagem da aldeia de Maran tinha a sua alcunha. Na maioria dos casos, era cómica e engraçada, às vezes irónica, mas havia, embora raramente, as muito ofensivas. A alcunha da linhagem estava em conformidade com o comportamento da pessoa, boa ou indecente, e depois o apelido era herdado pelos descendentes. 
Por exemplo, o bisavô de Iassaman, na sua juventude, visitava muito o seu primo, ator principal de um dos maiores teatros do Vale. O primo levava-o aos espetáculos, apresentava-o nos círculos da alta-roda, ensinava-lhe como era preciso vestir-se. Uma vez, o bisavô voltou do vale com um chapéu nunca visto, até provocatório do ponto de vista dos conterrâneos. Quando lhe perguntaram que coisa era aquela que trazia enfiada na cabeça, o bisavô respondeu em tom de desafio:< Chlapka! > Pelo que foi apelidado de Chlapka, e os seus descendentes de Chlapkants. 
Quanto à alcunha da linhagem dos Chalvarants, a história foi outra. O avô de Ovanés preparou-se para a guerra mundial como se fosse para uma festa: retorceu o bigode, enfiou na testa o gorro, cingiu a tiracolo duas cartucheiras em cruz, vestiu umas calças novas, caríssimas. Não chegou, porém, a juntar-se ao seu regimento, pelo caminho viu-se sob um canhoneio. Um estilhaços atingiu-lhe uma perna abaixo do joelho, o ferimento foi tão grave que lhe amputaram uma parte da perna e, acabado o tratamento, mandaram-no para casa. No hospital, o avô de Ovanés, em vez de se preocupar com a perna mutilada, lamentou as calças novas que teve de deitar fora. 
- Chalvars, Chalvars - queixava-se às irmãs de misericórdia e aos médicos. Pelo que foi alcunhado de Chalvars, e todos os seus descendentes, de Chalvarants. 
Na aldeia, brincavam que Iassaman e Ovanés se completavam como peças de vestuário."