agosto 31, 2025

[Ebook] Torto Arado - Itamar Vieira Júnior

Título original: Torto Arado
Ano da edição original: 2018
Autor: Itamar Vieira Júnior
Editora: Leya


Bibiana e Belonísia são filhas de trabalhadores de uma fazenda no Sertão da Bahia, descendentes de escravos para quem a abolição nunca passou de uma data marcada no calendário. Intrigadas com uma mala misteriosa sob a cama da avó, pagam o atrevimento de lhe pôr a mão com um acidente que mudará para sempre as suas vidas, tornando-as tão dependentes que uma será até a voz da outra.

Porém, com o avançar dos anos, a proximidade vai desfazer-se com a perspectiva que cada uma tem sobre o que as rodeia: enquanto Belonísia parece satisfeita com o trabalho na fazenda e os encantos do pai, Zeca Chapéu Grande, entre velas, incensos e ladainhas, Bibiana percebe desde cedo a injustiça da servidão que há três décadas é imposta à família e decide lutar pelo direito à terra e a emancipação dos trabalhadores. Para isso, porém, é obrigada a partir, separando-se da irmã.

Numa trama tecida de segredos antigos que têm quase sempre mulheres por protagonistas, e à sombra de desigualdades que se estendem até hoje no Brasil, Torto Arado é um romance polifónico belo e comovente que conta uma história de vida e morte, combate e redenção, de personagens que atravessaram o tempo sem nunca conseguirem sair do anonimato.


Bibiana e Belonísia são irmãs, e é através delas que a história vai ser contada. As duas são filhas do curandeiro da fazenda onde a família vive e trabalha desde sempre. O pai. conciliador e ponderado, era respeitado por todos. Fazia partos, curava doenças e dava voz aos Encantados, os espíritos antigos que vagueavam pelo mundo, tão mais poderosos quanto o culto que os humanos lhes faziam.

Depois de um acontecimento trágico, que marca a vidas das duas irmãs, as duas seguem juntas, cada vez mais unidas. A adolescência afasta-as, cada uma com dificuldade em perceber a outra, inseguras e com visões aparentemente diferentes da vida que as espera. Seguem separadas mas a ligação que as une, o afeto que têm uma pela outra nunca desparece e, a vida tratará de as voltar a unir.

Belonísia gosta de trabalhar a terra, gosta de aprender com o pai. Não espera muito da vida. É pensativa, sossegada. Tem medo de perturbar o meio que a rodeia e das consequências que isso pode trazer. Só depois de muito sofrimento é que se vai encontrar, conhecer-se a si própria e ganhar o seu espaço no mundo.
Bibiana, também influenciada pelo futuro marido, começa a questionar as condições em que vivem. O facto de continuarem a trabalhar de graça, sem terem nada de seu. Sem qualquer possibilidade de sequer sonharem a terem uma vida diferente. 
Acaba por ir embora com o marido. Querem melhorar as suas vidas e ajudar todos os outros a terem condições para seguirem o caminho que quiserem, para que o único caminho não seja o herdado pelos pais - trabalharem uma terra que não é deles, terem uma casa que não permitia criar raízes, casarem e continuarem a gerar trabalhadores para a fazenda.

A história segue a vidas destas duas irmãs, descendentes de escravos libertados, dezenas de milhar de pessoas que foram libertadas sem qualquer apoio ou plano de integração. Sem terra, sem dinheiro e sem saber ler, andavam de terra em terra em busca de morada. Um sítio onde pudessem trabalhar as terras do proprietário e, em troca, poder construir uma casa, que não podia ser de pedra. Tinham também autorização para, nos poucos tempos livres, plantar para eles próprios, para comerem ou para venderem. 

Estas foram as condições que os escravos libertos encontraram quando a escravatura foi abolida. 
Conquistaram a liberdade de poderem ir embora para onde quisessem, quando quisessem, no entanto, quão livre é uma pessoa que não tem casa e que não recebe dinheiro pelo seu trabalho? Quão livre é alguém a quem foi negada educação?

Torto Arado está muito bem escrito e com personagens que são impactantes. Consegue passar a ideia das dificuldades que viviam, a violência latente, o preconceito, a acomodação ao conhecido a dificuldade em quere fazer diferente e quebrar o ciclo.

Vou regressar a Itamar Vieira Júnior, não tenho dúvidas sobre isso e, por isso, só posso recomendar.

Boas leituras!

Excerto:
"Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento.
Esse dia vive em minha memória. Não se apaga nem se afasta ainda que envelheça. O sol era tão forte que quase tudo ao alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intenda do céu sem nuvens. Meu pai retirou o chapéu, calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lavava seu rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grandes manchas em sua camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o seu chapéu largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. «Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento», apertou os olhos olhando para a cova diante de seus pés, «aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho "moço, o senhor me dá morada?"». De pronto seu olho se ergueu para meu irmão, «Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu». Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços. «O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa.» Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um cigarro. «Está vendo esse mundão de terra aí? O olho cresce. O homem quer mais. Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão? Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa  que a gente trabalha. Essa terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada.»"

agosto 30, 2025

À Sombra das Raparigas em Flor - Em Busca do Tempo Perdido (vol. 2) - Marcel Proust

Título original: À La Recherche du Temp Perdu -Á L'Ombre des Jeunes Filles en Fleur
Ano da edição original: 1919
Autor: Marcel Proust
Tradução: Mário Quintana
Editora: Edição "Livros do Brasil"

"Prosseguindo a publicação de "Em Busca do Tempo Perdido, a Editora Livros do Brasil apresenta agora ao público leitor e apreciador de Marcel Proust o segundo volume desta obra fundamental da literatura francesa.
E aquele reino inteiramente fora do comum que começou a ser desvendado nas páginas anteriores surge agora sob outras nuances, em que as personagens se patenteiam revestidas de novos aspectos, revelando pormenores que anteriormente não teriam sido talvez tão determinados como agora sucede.
Tal como numa sinfonia, os temas vão-se desenvolvendo, como que completando-se, mas sem nunca abandonarem a ideia básica sobre a qual assenta esta obra admirável, símbolo de uma época que Marcel Proust tão magistralmente soube retratar e transmitir à posterioridade."


Neste À Sombra das Raparigas em Flor, 2º volume de Em Busca do Tempo Perdido, continuamos a seguir a vida do narrador do volume anterior, o rapaz de idade mais ou menos indefinida que, agora é presença assídua em casa de Swann e Odette, amigo íntimo de Gilberta por quem continua obcecadamente apaixonado.
Nesta primeira parte o narrador, agora claramente um adolescente, de 15 ou 16 anos, tímido e educado, passa os dias em casa dos Swann, onde vive fascinado com tudo o que diz respeito não só a Gilberta mas também a Odette que, com a sua elegância, os seus vestidos, o seu sentido de humor e a sua descontração fazem com se sinta feliz, acolhido e bem-vindo. A vida social em casa dos Swann, faz com que se esqueça, por momentos, da sua fragilidade e da sua pouca saúde, que de vez em quando o atira para a cama, cheio de febre.

Embora seja presença diária em casa dos Swann, a verdade é que continua a conhecer pouco a menina, tem uma ideia idealizada da mesma e é por essa ideia de perfeição feminina que é apaixonado. NO entanto Gilberta é uma rapariga caprichosa, mimada pelos pais e, ao mesmo tempo com vontade de desafiar todos os que a rodeiam e, quando sente que o nosso narrador não é capaz de a acompanhar e que a aconselha no sentido de obedecer e ser uma boa filha, a relação entre os dois acaba por esfriar. Ela parece seguir a sua vida como se nada fosse e nunca mais o procura. Ele, naturalmente, sofre muito e, não querendo dar parte de fraco também deixa de a procurar, à espera que ela se aperceba da falta que ele lhe faz, o que acaba por não acontecer. Como no primeiro volume, ele imagina as cartas que lhe vai escrever e as respostas apaixonadas que ela lhe dará. 

Por causa dos problemas de saúde que o afligem, o nosso narrador e a avó, acompanhados por Francisca, partem para Balbec, uma estância balnear, onde pretendem passar uma temporada para que ele possa restabelecer energias. 
A chegada a Balbec é atribulada, tem dificuldade em dormir no seu quarto de hotel, estranha tudo e todos. Com os cuidados da avó e de Francisca, pouco e pouco começa a ser capaz de explorar o hotel, as pessoas que nele estão instaladas e a paisagem em volta.
No mesmo hotel, está instalada a Senhora de Villeparisis, uma conhecida de Combray. Uma senhora muito distinta que se torna companhia diária para ele e para a avó.
Ainda antes de conhecer o sobrinho da Senhora de Villeparisis, Roberto de Saint-Loup, que irá visitar a tia e ficar uns dias no hotel, o nosso narrador fica obcecado por ele, imaginando na sua cabeça que irá ser o seu melhor amigo e que se vão tornar inseparáveis. 
O primeiro impacto não é positivo, o sobrinho é carrancudo e distante e despreza o rapaz. Esta primeira impressão depressa de desvanece e, num ambiente mais privado, os dois entendem-se e tornam-se companheiros. Com ele o rapaz começa a sair para fora do seu círculo habitual, indo a festas e jantares.

Um grupo de raparigas, mais ou menos da sua idade, que andam sempre juntas, junto à praia, começa a chamar a sua atenção, principalmente uma delas. Não a conhece e, não fugindo à sua natureza, fica obcecado por descobrir tudo sobre a rapariga. Quando as vê todas juntas não tem a certeza de conseguir distinguir qual delas é aquela por quem se apaixonou. São todas leves, cheias de vida, criaturas perfeitas e felizes cheias de luz e de alegria. 
Quando finalmente é apresentado às raparigas, não quer saber de mais nada, passa os dias com elas e, embora a sua predileta seja Albertina, todos os dias sente que se apaixona por uma delas. É o único rapaz no grupo e elas também o disputam, de forma inconsciente e meio inocente. É nesta interação com as raparigas que conhecemos uma nova faceta do narrador, parece que cresceu, já não é o menino tonto com relações platónicas, imaginadas. Olha de forma quase fria para este grupo de raparigas, como se elas fizessem parte de um catálogo e ele pudesse escolher e mudar de opinião quantas vezes fosse necessário sem grande respeito pelos sentimentos das raparigas.

E, basicamente este segundo volume é isto, uma espécie de desabrochar do narrador, habituado a viver no meio de adultos e de velhotas e que se vê, de repente, rodeado de raparigas que estão a viver, muito provavelmente o último Verão das suas infâncias e isso tem, em alguém com a sensibilidade deste rapaz um efeito inebriante de deslumbramento.

Este segundo volume custou-me a ler. Não achei a história tão interessante, na verdade não acontece nada digno de nota. Toda a narrativa gira em volta do rapaz, havendo muito poucas linhas dedicadas a outras personagens e, o rapaz é, por enquanto, um miúdo aborrecido e não me é muito fácil gostar dele. É um bocado irritante e, não havendo mais nada para além dele, o livro tornou-se mais difícil de acompanhar

Continuo a gostar da escrita e vou avançar para o 3º volume mas, preciso de dar um tempo, porque sinto que posso sentir-me saturada e desistir desta saga. :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 364):
"Era então irrealizável a felicidade de conhecer aquelas raparigas? Por certo não era a primeira desse género a que eu havia renunciado. Bastava lembrar tantas desconhecidas que, mesmo em Balbec, o carro que se afastava a toda a velocidade me fizera abandonar para sempre. E até o prazer que me dava o pequeno bando, nobre como se fosse composto de virgens helénicas, provinha de ter qualquer coisa  da fuga das passantes pela estrada. Essa fugacidade das criaturas que não são nossas conhecidas, que nos obrigam a desprender da vida habitual em que as mulheres que frequentamos acabam por revelar as suas taras, coloca-nos nesse estado de perseguição em que nada mais detém a fantasia. Ora. despojar dela os nossos prazeres é reduzi-los a si mesmos, a nada. Oferecidas por uma dessas alcoviteiras, que eu aliás não desprezava, como já se viu, retiradas do elemento que lhes dava tantas cambiantes e imprecisão, aquelas raparigas ter-me-iam encantado menos. Cumpre que a imaginação, despertada pela incerteza de poder atingir o seu objecto, crie uma finalidade que nos oculte a outra e, substituindo o prazer sensual pela ideia de penetrar numa vida, nos impeça de reconhecer esse prazer, de sentir o seu verdadeiro gosto, de restringi-lo aos seus limites."