agosto 24, 2014

Anatomia dos Mártires - João Tordo


Título original: Anatomia dos Mártires
Ano da edição original: 2011
Autor: João Tordo
Editora: Publicações D. Quixote

“Um jornalista insensato e ambicioso quer provar ao seu editor – um comunista irascível, alcoólico e com bastante desprezo pelos jovens – que não é só mais um na redacção. Escolhido para ir a Berlim entrevistar o biógrafo de um mártir religioso, aproveita a deixa para fazer, no seu artigo, uma analogia com a história de Catarina Eufémia, a camponesa que se tronou um ícone do Partido Comunista, mas de quem, na verdade, pouco ou nada sabe. Quando, porém, o artigo é publicado, as reacções de indignação por parte dos leitores não se fazem esperar, algumas das quais bastante ameaçadoras; e, na noite em que o editor é encontrado na rua em coma, aparentemente brutalizado, o jornalista pergunta-se se não terá sido por defender publicamente o seu artigo e começa a suspeitar de que existe muito mais em jogo do que a simples memória de uma camponesa assassinada pela GNR durante a ditadura. É então que decide investigar obsessivamente a vida de Catarina, desbravando por entre o nevoeiro que paira sobre os mártires e os transforma em mitos de que sempre alguém se apodera. E encontra realidades bem distintas – e mais tenebrosas – do que podia esperar.”

João Tordo tem sido um escritor que me tem dado algum gozo conhecer. Com Anatomia dos Mártires, embora o tema seja muito interessante e as reflexões que faz muito pertinentes, achei-o um pouco repetitivo ao longo de todo o livro, o que me deu uma sensação de estagnação. Ao longo da leitura só me lembrava de uma crítica algures que dizia que João Tordo utilizava demasiadas provocações, referindo-se muito a acontecimentos já passados mas dos quais o leitor nada sabe, ou seja levanta muito a ponta do véu e no fim, debaixo do véu não havia assim nada de muito extraordinário. Confesso que este Anatomia dos Mártires é um pouco assim. Não é que me tenha sentido defraudada nas minhas expectativas, mas esta técnica de prender o leitor à história terá sido utilizada em demasia. :)

Expectativas à parte, o meu gosto na descoberta de João Tordo em nada foi beliscado por este livro menos ao meu gosto. A escrita dele agrada-me e a forma como ele nos apresenta uma história, como explora as personagens e nos mantém interessados é algo com o qual me identifico. Neste Anatomia dos Mártires gostei sobretudo do tema. Da reflexão que faz sobre a relação das pessoas com a política, das crenças humanas e da religião. Gostei da interpretação que dá as estas personagens que vivem muito para além dos seus feitos, como Catarina Eufémia, nome que não me era estranho, mas não sabia ao certo quem era e qual o papel que lhe coube numa época tão cheia de mártires.
Achei a caracterização da personagem principal, o jornalista, muito bem conseguida. A representar muito bem a soberba dos jovens, o facto de acreditarmos que sabemos tudo e que não existe nada que a geração que nos criou tenha para nos ensinar. A ignorância de toda uma geração sobre um dos, senão mesmo o mais importante acontecimento da nossas vidas, como país e como sociedade, o 25 de Abril de 1974 e toda a luta que o tornou possível.
O jornalista representa a geração daqueles que ficou sem nada por que lutar, uma geração sem ideologias, sem fé, um pouco desenraizada da terra, culturalmente europeu, uniformemente europeu, sem nada que o distinga de um alemão ou francês.
Um jovem adulto, não estou a falar da geração que agora atravessa os 20, mas dos que já entraram há muito nos 30 e se aproximam dos 40, os filhos da revolução dos cravos. Um homem, adulto, egoísta, que não soube lidar com a morte da mãe e não sabe como viver com o envelhecimento do pai, que despreza e praticamente abandona. A forma como este homem lida com o pai é, à falta de melhor expressão, chocante. Um homem que vive obcecado consigo mesmo, até quando pensa que está a fazer coisas pelos outros, é só em si e na sua sanidade mental que pensa.
Este jornalista parece horrível... e na realidade não me ocorre nada de muito positivo sobre ele. É depressivo, centrado em si, incapaz de assumir responsabilidades pelos seus actos.

Resumindo, a história é boa, as personagens estão bem construídas. O que me deixou um travo amargo foi a repetição de ideias que acabam por não ser mais desenvolvidas a cada repetição e o uso excessivo do "se eu soubesse na altura o que ia acontecer...". Tirando isso, gostei. Não é o meu preferido dele, mas acho que tem coisas muito boas que fazem com que o recomende sem hesitações.

Boas leituras!

Excerto (pág. 156):
"«Claro que estás enganado. Olha para o país à tua volta: quem é que grita à porta dos tribunais hoje em dia? São as mulheres. Quem é que vai à frente das manifestações contra o governo? São as mulheres. Historicamente, elas tornam a repressão mais suave. Por um lado, e em certos contextos, são muito mais histriónicas; por outro têm a seu favor o poder da comoção, que lhes permite desafiar a autoridade.» Ouvi-a pigarrear. «Seria impensável que um polícia, hoje, se atrevesse a tocar numa mulher, que carrega um filho ao colo, pelo menos numa sociedade democrática. Ou talvez tenha sido isso que pensou Catarina e as outras mulheres que a acompanhavam: que, apesar de não conhecerem a democracia ou nunca terem ouvido falar nela, que nem uma besta como o tenente Carrajola se atreveria a tocar-lhe mesmo debaixo de um regime que usava a força como modo de repressão. Teoricamente, está correcto: é uma demonstração de força e, ao mesmo tempo, de fragilidade. Faz parte do reportório da resistência, em situações de manifestação, que os mais fracos tomem a liderança.»
«Enganaram-se.» rematei.
«E não nos enganamos todos?» (...) "

agosto 03, 2014

As Memórias de Cleópatra (2º Vol) - O Signo de Afrodite - Margaret George

Título original: The Memoirs of Cleopatra
Ano da edição original: 1997
Autor: Margaret George
Tradução: Sérgio Gonçalves
Editora: Saída de Emergência

"A autora do best-seller mundial A Paixão de Maria Madalena está de volta com o segundo volume de um convite irrecusável: a visita ao Antigo Egipto e à vida de Cleópatra, a rainha do Nilo. Escritas na primeira pessoa, As Memórias de Cleópatra começam com as suas recordações de infância e vão até ao seu glorioso reinado, quando o Egipto se torna um dos mais deslumbrantes reinos da Antiguidade. Mas, mais do que uma saga fascinante sobre ambição, traição e poder, As Memórias de Cleópatra são uma grande história de amor.
Na riqueza e autenticidade das personagens, cenários e acção, As Memórias de Cleópatra são um triunfo da ficção. Misturando história, lenda e a sua prodigiosa imaginação, Margaret George dá-nos a conhecer uma vida e uma heroína tão magníficas que viverão para sempre."

Terminado o 2° volume da trilogia que Margaret George dedicou a Cleópatra - As Memórias de Cleópatra - continuo moderadamente impressionada com a história que nos é contada. Cleópatra é, sem qualquer dúvida uma personagem histórica fascinante, no entanto continuo a sentir alguma estranheza na forma como a autora decidiu abordar a vida de Cleópatra, a Rainha do Egipto. Para mim está demasiado romanceada e, de certa forma, demasiado centrada nos homens da vida dela, Júlio César no 1º volume e, Marco António neste 2° volume. Estranhezas à parte, gostei mais deste volume e da vida de Cleópatra com Marco António. Este romano pareceu-me de longe bem mais interessante do que César! ;)

Neste O Signo de Afrodite, segunda parte das "Memórias de Cleópatra", a ainda Rainha do Egipto encontra-se a recuperar do choque que foi o assassinato de César e, depois da longa temporada que passou em Roma, regressa ao Egipto, para junto dos seus.

Enquanto recupera em Alexandria, o mundo romano movimenta-se para que o lugar de Júlio César não fique por ocupar muito tempo e para que o legado deste não seja usurpado pelos que planearam a sua morte. A ele correm Octávio, Marco António e Lépido. Como nenhum dos três vence, acabam por formar um triúnviro, uma espécie de liderança tripartida do vasto império romano, sendo que uns estão mais dispostos a partilhar que outros.
Depois destes três derrotarem Cássio e Bruto, os assassinos de César, Marco António, ainda no Oriente chama Cleópatra a Tarso, onde está acampado a reunir homens para os triúnviros, para que esta se defenda dos boatos de que teria ajudado Cássio e Bruto, com navios da sua frota. Cleópatra, decidida a não dar parte de fraca e a não perder a independência do Egipto, vai até Tarso, mas quem domina o encontro é ela, não Marco António. :)
A partir deste encontro, Cleópatra redescobre a vontade de viver e de partilhar a sua vida com outro homem, algo que ela não achou possível depois de César. Marco António é completamente diferente de César, mais humano, é um homem divertido que gosta de estar com as pessoas. É um apaixonado pelo Oriente e o seu exotismo. Completamente apaixonado por Cleópatra, vai fazer tudo para que a relação dos dois resulte. Num mundo em guerra, na qual ele é um dos protagonistas, este equilíbrio entre o que se quer e o que efectivamente se pode ter é complicado de conseguir e manter. Mas ele esforça-se. :)

Os dois mantêm uma relação bonita, sincera e intensa, os dois a tentar evitar que a política se intrometa entre os dois, algo que nem sempre conseguem, afinal de contas ela é a Rainha do Egipto e ele um dos mais promissores candidatos ao lugar de César.

Este é um volume onde se explora mais o lado pessoal de Cleópatra, como mulher e como mãe, uma vez que no primeiro ela estava demasiado ligada a César e aos objectivos dele e de Roma, não havendo muito espaço para ela. Neste segundo volume a postura dela é diferente, mais madura, a orientar Marco António, a espicaçar nele a ambição de ser mais. Embora não existam dúvidas de que ama Marco António, provavelmente mais do que amou César, o homem, a realidade é que, sem um Marco António forte Cleópatra teria muita dificuldade em manter a independência do Egipto e, portanto existe obviamente algum interesse político na ligação pessoal que tem com ele e na forma como o influencia.

Neste segundo volume deixamos Roma, a cidade, para trás,e passamos mais tempo em Alexandria e nos territórios conquistados. Apercebemo-nos da riqueza do Egipto, da organização que tinham, da forma como viviam, tão diferente da vida em Roma, e das suas crenças.

Como disse, a escrita de Margaret George não me convence e a forma como conta a história não é a que mais me agradaria, no entanto, de uma forma geral, estou a gostar de conhecer as memórias de Cleópatra. Acho que os livros valem pela história e pela personagens históricas, já de si muito interessantes.

Gostei e, até agora recomendo. :)

Boas leituras!

Exerto (pág. 132):
"Ser-se estadista significa ser-se mestre em  muitas áreas - até nas mais improváveis. Enquanto adormecia, eu sabia que tinha aprendido aquilo com César, e que ele teria orgulho de mim. Tinha orgulho de mim. Talvez António estivesse certo. Ele sabia que eu podia travar as minhas próprias batalhas."

julho 06, 2014

Feira do Livro de Lisboa - 2014

Embora a Feira já tenha acabado há umas semanas, a verdade é que não tenho tido oportunidade de actualizar este meu cantinho com a frequência que gostava... E a Feira do Livro este ano foi um pouco como o blogue, estou mesmo lá ao lado e apenas consegui ir lá uma vez para comprar livros. :)

Estes foram os que vieram comigo para casa (curiosamente todos de autores portugueses):

João de Melo - "O Mar de Madrid" -  Para os livros de João de Melo não preciso de justificação. São bons e eu gosto, portanto tenho de os ter aqui por casa.

"A primeira vez em que viajou até ao país vizinho, Francisco Bravo Mamede, o senhor poeta, viu que as cidades de Espanha ficavam no fim de todos os caminhos. Para se ir de uma para a outra, e não havendo passagem para a cidade seguinte, andava-se por ali ao deus-dará, às voltas e mais voltas para não se enredar a gente no fio de orientação que levava para fora do emaranhado urbano, como quem procura e finalmente encontra a porta de saída de uma casa desconhecida. Ia-se então adiante, sem rumo nem certeza alguma sobre a hora de chegada ao destino que se havia traçado (se haciendo el camino al andar, como no verso do querido mestre Antonio Machado) - e logo toda ela se recortava ao longe, muito nítida de luz, como um baixo-relevo que emergisse do fundo da paisagem."

Patrícia Reis - "Por Este Mundo Acima" - Desta autora apenas li um livro "Morder-te o Coração" (opinião aqui) e a verdade é que me deixou uma boa impressão. Achei que estava na altura de voltar a ler alguma coisa dela.

"Um cenário de terrível desastre assola Lisboa. Poderia ser em qualquer outro lugar do mundo. Os escombros passam a ser paisagem, a cidade e as relações humanas transformam-se vertiginosamente. Entre os sobreviventes há um homem, um velho editor. Procurando amigos e amores desaparecidos encontra um manuscrito e um rapaz e, neles, a porta para uma outra dimensão da vida.
Por Este Mundo Acima é uma peregrinação futurista e um relato de memória. Consagração dessa melhor forma de amor a que chamamos amizade, é também uma história sobre a importância redentora dos livros."




José Luís Peixoto -  "Nenhum Olhar" - Depois de "Livro" (opinião aqui) de que gostei muito, nunca mais li nada de José Luís Peixoto. A principal razão creio que tem sido o preço dos livros dele... Este, comprei-o num dos alfarrabistas e, para além de estar em excelentes condições, traz como brinde a assinatura do escritor. :)

"Numa aldeia do Alentejo, com um pano de fundo de uma severa pobreza, o autor vai tecendo histórias de homens e mulheres, endurecidos pela fome e pelo trabalho, de amor, ciúme e violência: o pastor taciturno que vê o seu mundo desmoronar-se quando o diabo lhe conta que a mulher o engana; o velho e sábio Gabriel, confidente e conselheiro; os gémeos siameses Elias e Moisés, cuja terna comunhão se degrada no momento em que um deles se apaixona; ou o próprio Diabo. As suas personagens são universais, assim como a sua esperança face à dificuldade. «... a partir da segunda ou terceira sequência ficamos seguros de que a inclinação é fatal: vamos embater num limite, num muro, num enigma, na origem do mundo e no desastre final...»"


Embora só lá tenha ido uma vez para comprar livros para mim, estive lá no dia da criança com as minhas pipocas e este ano já foram elas a escolher os livros para elas. Dentro do que conseguiam ver, dada a multidão que deambulava por lá... :)

Quiseram livros da Dora, A Exploradora e foi isso que levaram para casa. :)




As visitas relâmpagos que fiz ao recinto, depois de sair do trabalho já tarde, sem tempo para uma voltinha a sério, foram para matar a gula de doces, com as Bolas da Praia e as farturas! :p

E foi a Feira do Livro deste ano. Achei-a mais dinamizada, mais atractiva e o facto de terem começado mais tarde foi uma boa ideia. Apanharam a semana dos feriados em Lisboa e o tempo esteve fantástico.


Para o ano há mais! Espero ter mais tempo para gastar dinheiro!

Boas leituras!

julho 05, 2014

Um Gato, um Chapéu e um Pedaço de Cordel - Joanne Harris

Título original: A Cat, A Hat and a Piece of String
Ano da edição original: 2012
Autor: Joanne Harris
Tradução do Inglês: Ana Saldanha
Editora: Edições Asa

"Crianças de vida difícil e coração vibrante, fantasmas domésticos, velhas senhoras em busca de aventura, uma paixão impossível sob os céus de Nova Iorque, a improvável magia de uma sanduíche, as extravagâncias a que a saudade obriga...
O universo romântico, místico e sempre especial de Joanne Harris está de volta em dezasseis histórias que são como bombons: deliciosas, tentadoras e irresistíveis."
 
Não é nos contos que o talento e encanto de Joanne Harris mais se destacam. Esta colectânea tem alguns bons momentos mas, no geral, não é memorável.
Gostei de reencontrar as simpáticas velhotas, Faith e Hope,  do  Danças & Contradanças (comentário aqui), das quais é impossível não gostar.
Gostei particularmente da primeira história, "Canção do Rio", cuja menina me fez lembrar a saudosa Framboise de "Cinco Quartos de Laranja" (comentário aqui). :) E gostei das duas bonitas histórias de amor, "Fantasmas na Máquina" e "Dríade".
As que referiam poderes sobrenaturais, os Deuses ou Aspectos não me cativaram por não ser um universo que conheça ou associe à escritora e porque as histórias em si me pareceram mais direccionadas para um público juvenil.
 
Embora goste muito de Joanne Harris, já aqui tinha dito que nos contos ela perde algum do brilho que lhe é tão característico e, embora a imaginação faça claramente parte das histórias, parece que a autora se perde um pouco sem saber como lidar com o formato conto.

De uma forma geral é um livro que acima de tudo entretém e que, embora não vá ficar na minha memória por muito tempo, acho que é um livro que vale a pena ler. Além disso, o título do livro é bonito e a capa é mais uma vez bem catita!!! :)

Recomendo sempre Joanne Harris e este não será a excepção.
 
Boas leituras!

Excerto (pág. 202):
"Ele sente o coração a bater com força.
Ela sente a cabeça a andar à roda.
E se ela não estiver lá?, pensa ele.
E se ele não vier?, pensa ela.
E ele escreve: Há uma coisa que precisas de saber.
E ela escreve: Há uma coisa que eu não disse.
Mas agora também os computadores foram abaixo; o ecrã está em branco; não se vê nada a não ser o cursor a piscar contra um fundo azul; não se sente nada a não ser a linha Braille paralisada na sua onda final."

junho 22, 2014

Crime e Castigo - Fiódor Dostoiévski

Título original: Prestuplénie i Nakazánie
Ano da edição original: 1866
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução do Russo: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Editorial Presença

"Com Crime e Castigo, a Editorial Presença inaugura a publicação da obra de um dos maiores escritores de sempre, numa nova e criteriosa tradução, feita directamente a partir do russo. Datado de 1866, este é o primeiro dos grandes romances que Dostoiévski escreveu já na plena maturidade literária, e provavelmente, a mais bem conhecida de todas as suas obras. Recriando um estranho e doloroso mundo em torno da figura do estudante Raskólnikov, perturbado pelas privações e duras condições de vida, é uma das obras por excelência fundadoras da modernidade. Pelo inexcedível alcance e profundidade psicológica, sobretudo no que implica a exploração das motivações não conscientes e a aparente irracionalidade nos comportamentos das personagens, este autor russo tornou-se uma referência universal na literatura, sem perda de continuidade até aos nossos dias. Esta nova versão em língua portuguesa das obras de Dostoiévski, cuja qualidade permite ao leitor fruir plenamente da extraordinária riqueza dos textos originais, é da responsabilidade de Nina Guerra e Filipe Guerra."

Sem grande inspiração para opinar sobre tão grande obra... Como é que vou dar a volta a isto? Esta é uma dificuldade que me assalta, normalmente quando sinto que me faltam capacidades (e tempo) para uma análise mais profunda de uma obra que de certeza o merecia. Depois penso, o que posso dizer sobre este clássico e que já não tenha sido dito? Dilemas e mais dilemas, piores só mesmo os que assaltam Raskólnikov durante todo o livro. :) Enfim, vamos manter isto simples.

Raskólnikov é um ex-estudante de direito, que deixou os estudos, aparentemente por falta de condições económicas para continuar a sua formação. Digo aparentemente, porque ao longo do livro o próprio Raskólnikov admite que se deixou cair numa prostração e falta de vontade, passando dias inteiros fechado no seu cubículo minúsculo e claustrofóbico, e que poderia ter continuando a pagar os estudos com as explicações que dava a acabou por abandonar.
Quando conhecemos Raskólnikov este já nos é apresentado como alguém com um feitio complicado, dado a explosões de raiva quando é contrariado, com súbitas mudanças de humor e, embora já nessa altura ande atormentado pela possibilidade de levar a cabo o plano monstruoso que traçou, a verdade é que esta é uma característica que todos os que lhe são próximos lhe atribuem, é temperamental e irritadiço. No entanto, também o conhecemos como uma pessoa desapegada dos bens materiais, que é capaz de dar a sua última moeda a desconhecidos apenas e só porque lhe parece a coisa certa de se fazer naquele momento. Posto isto, as razões que levaram este jovem a planear e executar o assassínio da "velha", uma agiota cujo negócio é a compra e venda de objectos de valor, são ainda menos racionais e objectivas. Embora possa parecer que o fez por dinheiro, a verdade é que, Raskólnikov não ficou mais rico e o medo de ser descoberto quase o matou.

Já aqui se disse que Raskólnikov era especial, tinha um temperamento difícil, vivia angustiado pela normalidade da sua vida e confessa, algures no livro, que o principal motivo para assassinar a velha foi o tentar perceber a que categoria de humanos pertencia, se era alguém superior, que ultrapassava limites e regras estabelecidas, sem ser apanhado e sem ser alterado por isso. Raskólnikov vivia obcecado com esta questão, seria ele capaz de cometer assassinato e conseguir escapar impune, vivendo o resto da sua vida sem qualquer arrependimento? Que tipo de pessoa é então Raskólnikov? Um ser extraordinário ou apenas uma pessoa normal? A verdade é que vi muito pouco arrependimento em Raskólnikov, vi muito medo de ser descoberto, vi muita frustração por não encontrar nele a capacidade de enganar os outros, de não conseguir controlar o seu temperamento. Vi essencialmente um Raskólnikov desiludido com o facto de ter chegado à conclusão de que afinal seria apenas uma pessoa "normal" e com enorme dificuldade em aceitar esse facto. Arrependimento pelo acto em si, nunca o senti da parte de Raskólnikov, pela morte da "velha" nunca, pela morte de Lizaveta a irmã da velha, talvez alguma pena pelo azar que a rapariga teve ao aparecer naquela altura. Por isso, Raskólnikov, para mim, estaria longe de ser uma pessoa "normal" e, embora tenha sido apanhado, mais por sua culpa que por habilidade dos que investigavam os crimes, a verdade é que, noutras circunstâncias, acredito que Raskólnikov teria conseguido viver com o facto de ter tirado a vida, de forma brutal, a duas pessoas.

Paralelamente surgem outras histórias e personagens que apenas tornam a acção de Raskólnikov ainda mais incompreensível. Idolatrado pela mãe e irmã, inteligente, com alguns amigos fiéis, enfim, com tudo para ser alguém na vida e ser feliz, é difícil perceber o que leva Raskólnikov a fazer o que faz, a pensar da forma que pensa Eu, na minha "normalidade" apenas consigo entender a necessidade de Raskólnikov e justificá-la se pelo meio houver referência a doença mental. De outra forma, o mundo seria um lugar demasiado assustador! :)

Concluindo, este é mais um grande livro do genial Dostoiévski, provavelmente o maior. Mais um grande livro sobre obsessões, paranóias, defeitos de carácter e personagens irracionais e desequilibradas na sua aparente normalidade. Mais um grande livro com uma escrita envolvente e uma história dos diabos! :)

Como é óbvio, recomendo. Mais do que recomendar, é de leitura obrigatória!

Boas leituras!

Excerto:
"De repente, parou; uma questão nova, inesperada e extremamente simples fê-lo perder o tino e espantou-o amargamente: «Se tudo aquilo foi feito conscientemente, e não por estupidez, se foi de facto um desígnio teu determinado e firme, porque não abriste ainda o porta-moedas e não sabes sequer quanto te rendeu o acto tão vil, tão abominável e tão abjecto que cometeste conscientemente? Não quiseste até atirá-lo à água, o porta-moedas, juntamente com os outros objectos que também ainda mal viste?... Como é então?»"

abril 28, 2014

Homem na Escuridão - Paul Auster

Título original: Man in the Dark
Ano da edição original: 2008
Autor: Paul Auster
Tradução: José Vieira de LIma
Editora: Edições ASA

"E se a América não estivesse em guerra como Iraque mas consigo própria? Nesta América, as Torres Gémeas não caíram e as eleições presidenciais de 2000 conduziram à secessão, com estado após estado a abandonar a união e uma sangrenta guerra civil a instalar-se. Este mundo paralelo é criado pela mente e coração perturbados de August Brill, um crítico literário vítima de insónias. Com 72 anos, Brill está a recuperar de um acidente de viação em casa da filha e, para afastar recordações que preferia esquecer - a morte da mulher e o violento assassinato do namorado da neta -, conta histórias a si próprio. Gradualmente, o que Brill tenta desesperadamente impedir insiste em ser contado. Com a neta a juntar-se-lhe de madrugada, ele arranja finalmente coragem para revisitar os seus piores dramas.

Chocante e apaixonante, Homem na Escuridão é o exemplar romance do nosso tempo, um livro que nos obriga a confrontar a escuridão da noite celebrando a existência das pequenas alegrias do dia-a-dia num mundo capaz da mais grotesca violência."

Paul Auster é um dos meus autores favoritos e quando pego num livro dele é sempre com a certeza de que serão dias bem passados. Este Homem na Escuridão, felizmente, confirmou a regra não sendo a excepção. :)

O Homem na Escuridão é August Brill, um septuagenário, que sofreu um acidente de viação e está a recuperar em casa da filha. Sofre de insónias e as noites que passa sozinho no escuro do quarto, passa-as a tentar não recordar tudo aquilo e todos aqueles que perdeu ao longo da vida. Para conseguir sobreviver a mais uma noite sem enlouquecer, Brill inventa histórias, vive-as na sua cabeça, e algumas dessas histórias parecem ganhar vida, numa outra dimensão. Na história que Brill conta a si mesmo na escuridão do quarto, as Torres Gémeas nunca caíram e os EUA não estão em guerra com o Iraque. Nas eleições de 2000, George W. Bush foi o vencedor, no entanto, muitos dos Estados revoltaram-se, proclamaram independência, dando-se início a uma dura guerra civil que se arrasta há uma série de anos.

E de que tenta fugir Brill? Tenta esquecer a morte e a solidão. Tenta não pensar na sua companheira de uma vida, que recentemente lhe morreu, e que nem sempre valorizou. Tenta não pensar no arrependimento. Tenta esquecer a dor da filha, ela própria uma mulher solitária depois de um divórcio complicado com um homem que nunca deixou de amar e tenta ultrapassar a dor de envelhecer sem a mulher e com limitações físicas.

Brill tenta fugir das recordações que o atormentam e a história da guerra civil parece ser a forma que encontrou de continuar a viver com as imagens horríveis que não consegue esquecer, do assassinato do namorado da neta. Se a guerra com o Iraque nunca tivesse acontecido, a neta de Brill nunca teria perdido o namorado que foi, voluntariamente, trabalhar para o Iraque. Brill e a neta nunca teriam assistido ao vídeo onde o namorado é morto pelos rebeldes que o raptaram e ele nunca teria de conviver com a profunda tristeza da neta.

Quando numa dessas intermináveis noites, a neta, também ela a fugir dos fantasmas que vivem na escuridão, vem ter com ele ao quarto e lhe pergunta como conheceu a avó, Brill acaba por reviver toda a sua vida. É neste desfiar de memórias que acabamos por nos ir apercebendo, ao mesmo tempo que o próprio Brill, que a felicidade é feita de pequenas coisas, que no fim aquilo que recordamos é essencialmente bom e que as coisas menos boas, muitas delas provocadas por más escolhas, são também elas essenciais para seguirmos em frente com outras certezas. O que Brill contou à neta foi uma bonita história de amor, que sofreu alguns percalços pelo caminho, mas que nunca deixou de ser uma bonita história de amor, de cumplicidade e de amizade entre duas pessoas bastante diferentes uma da outra.
É nesta fase que sentimos que o processo de luto destes dois se aproxima do fim. A fase em que, pensar nas pessoas que perdemos não nos provoca apenas dor e angústia, a dor e a angústia vêm acompanhadas pela saudade, que nunca nos deixa, e pela memória das coisas boas, que são as que acabam por prevalecer.

Paul Auster recorre mais uma vez às suas histórias dentro da história, arte que domina como ninguém, às referências cinematográficas e às personagens angustiadas e sofredoras. Escreve como ninguém sobre a perda e sobre o processo de sobreviver à perda, ou não, porque nem todos conseguem sobreviver.

Recomendo! Tenho dúvidas de que alguma vez não vá recomendar Paul Auster. Quem o conhece não precisa de recomendações, quem nunca leu, deveria ler. :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 46):
"Porque é que eu estou a fazer isto? Porque é que teimo em meter por estes caminhos velhos e gastos; porquê esta compulsão para remexer em velhas feridas e fazer-me sangrar de novo? Seria impossível exagerar o desprezo que às vezes sinto por mim. Eu deveria estar a ler o manuscrito de Miriam e, afinal, estou de olhos fitos numa fenda da parede enquanto vasculho nos poços da memória em busca de fragmentos do passado, coisas que se quebraram e que nunca poderão ser reparadas. Dêem-me a minha história. É tudo o que eu quero agora - a minha insignificante história para manter os fantasmas longe, muito longe de mim."

abril 13, 2014

Beatriz e Virgílio - Yann Martel

Título original: Beatrice and Virgil
Ano da edição original: 2010
Autor: Yann Martel
Tradução: Fátima Andrade
Editora: Editorial Presença

"Henry, um escritor reconhecido, decide escrever um livro, meio ficção e meio ensaio, como forma de abordar todos os aspectos de um mesmo tema. Completamente desencorajado pelos seus editores, desiste do projecto e vai viver para outra cidade. Aí, contudo, continua a receber cartas de leitores e, um dia, um taxidermista escreve-lhe a pedir ajuda. Henry apercebe-se então de que estão ambos a tentar escrever sobre o mesmo tema. Um livro polémico e provocador, que confirma o autor de A Vida de Pi, o Man Booker Prize de 2002, como um dos mais surpreendentes escritores canadianos da actualidade."

Embora tivesse alguma curiosidade para voltar a ler Yann Martel, autor do surpreendente A Vida de Pi, não tinha grandes expectativas porque a maioria das críticas que li aos outros livros que escreveu eram mais ou menos desencorajadoras. Na realidade, este Beatriz e Virgílio não me encantou, achei-o até um pouco pretensioso.

Henry é um escritor conhecido que tem dedicado os últimos anos ao livro que está a escrever sobre o Holocausto. Na realidade Henry está a trabalhar em dois livros, uma obra de ficção e um ensaio sobre o Holocausto e Henry gostaria que os dois fossem publicados como um único livro, com a ficção a complementar a dura realidade. Quando os seus editores, de forma, mais ou menos simpática lhe dizem que a ideia é péssima e que os livros não são assim tão geniais, Henry fica em choque. Sem capacidade para recomeçar a escrever, parte com a mulher para uma cidade na Europa onde acabam por se ir integrando e ficando, e uma viagem que começou por ser isso mesmo, uma viagem, acaba por ser tornar na nova casa do casal que não pensa regressar à sua vida passada.

Henry ocupa os seus dias a descobrir novas vocações em si, tem aulas de música, está integrado numa companhia local de teatro amador e aguarda com ansiedade a chegada do primeiro filho de ambos. O único contacto que vai tendo com a sua carreira literária são as cartas dos leitores que lhe chegam e às quais faz questão de responder uma a uma. E é nesse correio de leitores que surge um envelope, de um leitor misterioso, que por coincidência vive perto de Henry. Ao contrário dos outros leitores este envia a Henry um excerto de uma peça de teatro, cujos protagonistas são Beatriz e Virgílio, duas personagens que parecem ter sido inspiradas nas homónimas de Dante, na sua Divina Comédia. O tom no pequeno bilhete que o misterioso leitor enviou com a peça de teatro e a qualidade literária da mesma, deixam Henry curioso e com vontade de conhecer o seu autor. E é o que faz, num dos seus passeios diários com o seu cão, vai até à porta da morada que constava no envelope que recebeu e, após um momento de hesitação, por estar defronte de um taxidermista, entra. O misterioso leitor e autor da peça de teatro é um sexagenário, homem duro, de poucas palavras, ríspido e pouco simpático.
Aparentemente o homem precisa da ajuda de Henry para acabar de escrever a sua peça.

E o livro vai decorrendo desta forma, com Henry a tentar perceber quem é o taxidermista e como é que alguém, aparentemente tão frio, tem a capacidade de escrever algo tão profundo em termos de emoções e de sensibilidade. À medida que vai conhecendo o estranho homem, Henry vai descobrindo alguém que carrega uma culpa, que não sabe como se redimir e que tenta pedir desculpa através de uma peça de teatro, cujos protagonistas são um burro e um macaco. Mais uma vez Yann Martel a recorrer aos animais para fazer passar a mensagem.
Nós, leitores, nunca temos a certeza de que o taxidermista tenha noção de quão monstruoso foi aquilo da qual fez parte, mas também nunca sabemos em que condições e que papel desempenhou no Holocausto, porque é disso que estamos a falar.

Não tenho muito mais a dizer sobre o livro. Não que não haja por onde esmiuçar, sobre o Holocausto existiria sempre muito para dizer. Mas no que ao livro diz respeito, não encontro muito mais que dizer. Como disse no início, achei-o um pouco pretensioso. Tenho sempre alguma aversão a livros sobre escritores onde nas entrelinhas se vão percebendo alguns auto-elogios.
Destaco a peça que o taxidermista está a escrever, Beatriz e Virgílio são as verdadeiras estrelas deste livro e a descrição que Virgílio faz de uma pêra, porque Beatriz nunca viu ou comeu tal fruto, é deliciosa.

Embora não tenha sido um livro que me tenha prendido particularmente, não deixa de ser uma obra que vale a pena ler. Sei de muito boa gente que a considera uma obra-prima.  Mais por isso que pela minha opinião muito pessoal, recomendo! :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 43):
"Beatriz: Mas a que sabe? Não aguento mais.
Virgílio: Uma pêra madura transborda de suculência doce.
Beatriz: Oh, isso parece bom.
Virgílio: Corta uma pêra e verás que a sua polpa é de um branco incandescente. Brilha com uma luz interior. Aqueles que trazem consigo uma faca e uma pêra nunca têm medo do escuro.
Beatriz: Tenho de provar uma.
Virgílio: A textura de uma pêra, a sua consistência, é outra coisa difícil de pôr em palavras. Algumas pêras são um tudo ou nada crocantes.
Beatriz: Como uma maçã?
Virgílio: Não, nada parecido com uma maçã! Uma maçã resiste a ser comida. Uma maçã não +e comida, é conquistada. A qualidade crocante de uma pêra é muito mais atraente. É generosa e frágil. Comer uma pêra é semelhante a... beijar.
Beatriz: Oh, céus! Parece tão bom.
Virgílio: A polpa de uma pêra pode ser ligeiramente granulosa. Contudo, derrete-se na boca.
Beatriz: Tal coisa é possível?
Virgílio: Com todas as pêras. E isso é só o aspecto, o toque, o cheiro, a textura. Ainda nem te falei do sabor.
Beatriz: Meu Deus!"