"A Leste do Paraíso (1952), de John Steinbeck, relata, sob a forma de um grande «fresco histórico», a vida de várias gerações californianas, os Trask e os Hamilton, de 1860 a 1920. Nas palavras do próprio autor: «O assunto é o mesmo que cada Homem tem utilizado como tema: a existência, o equilíbrio, a batalha e a vitória, na eterna guerra entre a sabedoria e a ignorância, a luz e a treva, o bem e o mal»."
Acabei de reler o primeiro volume do A Leste do Paraíso e, acho que faz algum sentido separar também a minha opinião em "dois volumes". :) Isto porque, no segundo livro dá-se um salto no tempo, com algumas personagens a morrerem e onde os filhos de Adam Trask, Caleb e Aaron, assumem uma maior notoriedade que não têm no primeiro volume.
É a terceira vez que leio esta saga familiar que John Steinbeck, um dos meus escritores favoritos, escreveu em 1952. Na primeira vez fiquei apaixonada pela história, pelas personagens enfim, pelo livro. Voltei a lê-lo numa altura em que precisava de me sentir próxima de alguém que julguei ter perdido e por isso foi uma leitura de saudade, li-o não pela história mas pelas recordações que me trazia o livro em si.
Por isso achei que estava na altura de lê-lo novamente apenas e só porque me apetecia, sem a sofreguidão da primeira leitura e os fantasmas da segunda.
O mais estranho é que continua a ser uma leitura surpreendente, porque estando eu mais velha, identifico-me com outras coisas, reconheço-me noutras partes da história, anseio pelo que sei que vai acontecer e sofro por antecipação. No fim, a sensação de que o livro é muito bom permanece! Gosto desta capacidade que os livros têm de nos surpreender mesmo quando os estamos a reler. Acho que é por isso que não tenho qualquer pudor em reler livros que gostei, porque sei que há livros que não se esgotam numa primeira leitura, exigindo que voltemos a eles passados uns anos.
Bem, vamos então ao livro, porque é para isso que aqui estou. Aviso desde já que a partir daqui está cheio de spoilers. :)
Em A Leste do Paraíso, John Steinbeck apresenta-nos duas famílias, os Trask e os Hamilton, contando-nos tudo sobre as suas vidas entre 1860 e 1920, ao mesmo tempo vamos percorrendo a história dos EUA nessa época.
Neste primeiro volume, conhecemos Adam Trask, ainda criança, o seu estranho meio-irmão Charles e o pai de ambos, Cyrus Trask.
Adam e Charles têm uma relação difícil. Charles é pura força física, um bruto que resolve tudo à pancada. Adam odeia o pai e tem pelo irmão sentimentos ambíguos, teme-lhe a capacidade destrutiva mas não o odeia. É um rapaz que repudia a violência tendo uma natureza sonhadora. Por isso não é de estranhar que se apaixone perdidamente pela mulher que um dia aparece à porta da casa que partilha com o irmão. Esta mulher, Cathy Ames, aparece no rancho dos irmãos Trask, quase morta, depois de ter sido violentamente espancada por um homem que tentou enganar. Adam acolhe-a como se esta fosse um anjo caído do céu, completamente cego a todos os sinais de perigo que emanam desta mulher com aparência de anjo.
Cathy Ames é uma personagem fascinante de tão cruel e desumana que é. John Steinbeck descreve-a como um monstro, dizendo: "Se há monstros físicos, não haverá monstros mentais ou psíquicos? A cara e o corpo podem ser perfeitos; mas se um esperma deficiente ou um factor hereditário produzem monstros físicos, porque não hão-de produzir almas disformes?" E Cathy é assim, uma criança que não nasceu com a capacidade de amar, nasceu antes com a convicção de que todos os seres humanos são intrinsecamente maus e aprendeu desde logo a aproveitar-se dessa maldade para atingir os seus objectivos.
Adam casa-se com Cathy e muda-se com ela para o Vale de Salinas, onde sonha construir um jardim para a mulher e para o filho que esta carrega na barriga. Cathy, no entanto tem outros planos, assim que se restabelece do parto dos filhos (afinal eram dois e não um) vai-se embora abandonando Adam e os gémeos. Afinal eles foram um percalço e Adam nunca significou mais do que uma oportunidade para sair da situação em que se encontrava. Sem quaisquer remorsos abandona-os, deixando Adam completamente perdido e alienado do mundo.
Os Hamilton são uma família irlandesa que se estabelece no vale do Salinas, no pedaço de terra mais pobre e seco da região. Samuel é um homem cheio de ideias, um inventor. Inteligente e culto, quase um filósofo. No início é olhado de lado pelos habitantes da região, no entanto, depressa todos se rendem à sua boa disposição, pois é um homem honesto e trabalhador e a sua forma de olhar o mundo é vista como sendo apenas uma excentricidade inofensiva. É casado com Lizzie uma mulher pequena e seca, extremamente religiosa que, ao contrário de Samuel, nunca questiona nada, aceitando tudo como sendo desígnios de Deus. Têm nove filhos todos diferentes uns dos outros.
Samuel é uma personagem fascinante, o oposto de Cathy, por ser tão humano. Torna-se conselheiro de Adam, não sendo exagero dizer-se que lhe salvou a vida mais que uma vez.
John Steinbeck ter-se-à inspirado nos seus avós maternos para criar esta família, uma vez que A Leste do Paraíso começou por ser uma história que explicaria aos seus filhos como era o vale de Salinas, na Califórnia, vale onde nasceu e cresceu, que amava e que serviu de cenário a praticamente todas as suas histórias.
Paralelamente à história central destas duas famílias, vão sendo feitas algumas reflexões sobre a sociedade da época e sobre o progresso tecnológico que começava a surgir. Estas são feitas pela voz do narrador que neste caso é o próprio John Steinbeck. Outras reflexões mais filosóficas e bíblicas são protagonizadas por Samuel Hamilton e Lee, o criado chinês de Adam que terá um papel muito importante para o desenrolar da história. Lee é uma personagem muito interessante e curiosa.
Estas reflexões fazem com que este livro seja muito mais do que um livro sobre duas famílias, pois levanta questões pertinentes que são, curiosamente, ainda muito actuais.
Para além de tudo isto, nota-se sempre em cada palavra escrita sobre o vale de Salinas o amor que Steinbeck nutria pela terra onde nasceu e cresceu e que imortalizou nos seus livros. Terra difícil, com um clima instável, onde os anos de seca podiam destruir o fruto de anos de trabalho árduo. No entanto, eram poucos os que abandonavam as suas terras, era como se a terra exercesse uma espécie de feitiço sobre eles. Todos pressentiam nela qualidades ainda por descobrir.
É muito interessante conhecer o modo de vida das pessoas, as dificuldades que enfrentavam e as suas maiores preocupações. Nestas páginas e em outras escritas por Steinbeck, está bem patente o espírito inovador e progressista dos americanos. A resistência e a capacidade de transformarem tudo à sua volta. As histórias de Steinbeck são "muito americanas" porque são sobre os americanos, os verdadeiros, não os heróis inverosímeis retratados nos filmes de Hollywood. Retratam uma época muito complicada, de grandes mudanças e de grandes dificuldades. Steinbeck escreveu muito sobre os problemas sociais que assolaram o país durante a Grande Depressão com a pobreza e os consequentes fenómenos migratórios e sobre a guerra. Problemas que, não sendo exclusivamente americanos, nos permitem uma identificação com a história. Não sentimos a distância de um oceano entre nós e aquelas pessoas.
Se nunca leram nada dele, façam-no e já! Recomendo, para além do A Leste do Paraíso, o As Vinhas da Ira (à espera de ser relido um dia destes) e o Ratos e Homens. Eu gosto de todos, mas estes talvez sejam os mais emblemáticos.
Boas leituras! :)