junho 26, 2016

Feira do Livro de Lisboa - 2016


Na única ida à Feira do Livro de Lisboa deste ano, estes foram os escolhidos para virem morar cá em casa:

 - A Confissão da Leoa - Mia Couto

Um acontecimento real - as sucessivas mortes de pessoas provocadas por ataques de leões numa remota região do norte de Moçambique - é pretexto para Mia Couto escrever um surpreendente romance. Não tanto sobre leões e caçadas, mas sobre homens e mulheres vivendo em condições extremas.
A Confissão da Leoa é bem um romance à altura de Terra Sonâmbula e Jesusalém, já conhecidos do leitor português.


Esta é a história de Anna Blume e da sua jornada em busca do irmão desaparecido numa cidade sem nome. Mas tal como a cidade, a sua tarefa está condenada. A cidade transformou-se num campo de batalha onde imperam a miséria, violência e a selvajaria. Todos procuram algo ou alguém que desapareceu. Todos lutam para suprir a fome: no sentido literal, uma vez que os alimentos são escassos; e fome também no sentido abstracto, pois os últimos resquícios de humanidade impelem os cidadãos a procurar o amor e a partilha de linguagem e significado.

Através da solidão de Anna, Paul Auster conduz-nos a um mundo indeterminado e devastado no qual o eu desaparece entre os horrores a que o lento apagar da moral humana conduz. Não se trata apenas de um mundo imaginário e futurista - mas de um mundo que reflecte o nosso e, ao fazê-lo, lida com algumas das nossas mais sombrias heranças. Nesta visão apocalíptica de uma cidade despojada da sua humanidade, pulsa um inesquecível romance sobre a condição humana.

- O Jogo de Ripper - Isabel Allende

Indiana e Amanda Jackson sempre se apoiaram uma à outra. No entanto, mãe e filha não poderiam ser mais diferentes. Indiana, uma bela terapeuta holística, valoriza a bondade e a liberdade de espírito. Há muito divorciada do pai de Amanda, resiste a comprometer-se em definitivo com qualquer um dos homens que a deseja: Alan, membro de uma família da elite de São Francisco, e Ryan, um enigmático ex-navy seal marcado pelos horrores da guerra.

Enquanto a mãe vê sempre o melhor nas pessoas, Amanda sente-se fascinada pelo lado obscuro da natureza humana. Brilhante e introvertida, a jovem é uma investigadora nata, viciada em livros policiais e em Ripper, um jogo de mistério online em que ela participa com outros adolescentes espalhados pelo mundo e com o avô, com quem mantém uma relação de estreita cumplicidade.

Quando uma série de crimes ocorre em São Francisco, os membros de Ripper encontram terreno para saírem das investigações virtuais, descobrindo, bem antes da polícia, a existência de uma ligação entre os crimes. No momento em que Indiana desaparece, o caso torna-se pessoal, e Amanda tentará deslindar o mistério antes que seja demasiado tarde. 

- Contracorpo - Patrícia Reis

Uma mulher fica viúva com dois filhos. Alguns anos depois da morte do marido, a vida não se refez e o filho mais velho, agora adolescente, cresce contra a mãe, num silêncio obstinado que só quebra nas histórias que se conta para adormecer e nos desenhos que faz de forma compulsiva. Com o anúncio do chumbo escolar, a mãe decide, sem grandes reflexões, fazer uma viagem com este filho, deixando o pequeno com os avós. Não se trata de uma viagem com destino, mas antes uma procura.

Contracorpo é um livro contra o silêncio e sobre o silêncio. É uma história de procura de identidades distintas - da mulher e do quase homem - e ainda de descobertas. Uma mãe nunca é o que se espera. Um filho é sempre uma surpresa. O encontro dá-se enquanto procuram caminhos, de Lisboa a Roma, num jogo de claro escuro. Como se tudo fosse uma imagem.

- Deixem Falar as Pedras - David Machado

No dia em que se ia casar, Nicolau Manuel foi levado pela Guarda para um interrogatório e já não voltou. Viveu, assim, quase toda a vida na urgência de contar a verdade a Graça dos Penedo, a noiva que mais tarde lhe seria arrebatada pelo alfaiate que lhe fizera o fato do casamento. Porém, sempre que se abria uma possibilidade, uma ameaça desviava-o dramaticamente do seu destino - e agora, meio século volvido, está velho de mais para querer mudar as coisas, gastando os dias com telenovelas. De tanto ter ouvido ao avô a sua história rocambolesca, Valdemar - um rapaz violento e obeso apaixonado pela vizinha anoréctica - não desistiu, mesmo assim, de fazer justiça por ele. E, ao encontrar casualmente a notícia da morte do alfaiate, sabe que chegou a hora de ir falar com a viúva: até porque essa será a única forma de resgatar Nicolau Manuel da modorra em que se deixou afundar.
Alternando a narrativa dos sucessivos infortúnios de Nicolau Manuel - que é também a história de Portugal sob a ditadura, com os seus enganos, perseguições e injustiças - com a de um adolescente que mantém um diário com numerosas passagens rasuradas como instrumento de luta contra o mundo -, Deixem Falar as Pedras é um romance maduro e fascinante sobre a transmissão das memórias de geração em geração, nunca isenta de cortes e acrescentos que fazem da verdade não o que aconteceu, mas o que recordamos.

Foi uma única visita, infelizmente o novo local de trabalho afastou-me da Feira do Livro e das visitas quase diárias ao recinto. Embora única, julgo que foi uma visita produtiva! Estou contente com o que trouxe para casa.

Boas leituras!

junho 25, 2016

Instruções Para Salvar o Mundo - Rosa Montero

Título original: Instrucciones para Salvar el Mundo
Ano da edição original: 2000
Autor: Rosa Montero
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Num cenário de subúrbio, onde a noite reclama o seu território e os fantasmas reivindicam o seu espaço, um taxista viúvo que não consegue superar a perda da mulher, um médico desiludido, uma cientista anciã e uma belíssima prostituta africana sedenta de vida cruzam os seus caminhos, para nos obsequiarem com uma visita guiada ao mundo vertiginoso e convulso que cada um encerra dentro de si.
Mas esta não é uma história de horrores, é antes uma fábula de sobreviventes, de quatro personagens que reúnem todos os elementos necessários para serem considerados uns desgraçados, que se movem nos mundos limítrofes à máfia, ao tráfico de mulheres brancas, e a universos virtuais como Second Life, mas que conseguem encontrar um apoio que lhes permite a remição e a saída das trevas que os mantinha prisioneiros.
Uma intensa e hipnótica história de esperança que deambula entre o humor e a emoção e nos mergulha na sociedade caótica dos nossos dias. Uma história que pode ser a de qualquer um de nós."

Nunca tinha lido nada desta escritora e nunca tinha sequer ouvido falar nela. Fui atraída pela capa e pelo título. O que encontrei foi um livro muito bem escrito, uma história muito bem contada e personagens difíceis de esquecer.

É um livro que tão depressa nos faz rir como nos provoca desconforto. É fácil criar empatia com as personagens embora sejam tão diferentes umas das outras e de nós próprios. O que os une? Talvez a solidão e a perda. A incapacidade para serem felizes e a resignação. E o que nos leva a sentir empatia com um taxista viúvo, uma prostituta africana, um idosa alcoólica e um médico infeliz viciado em Second Life? Não sei, talvez o facto de serem todos muito humanos e evidentemente tão infelizes, sem que aparentemente o mereçam, leva a que desejemos que a vida lhes reserve coisas boas. A empatia que criamos com personagens tão diferentes de nós, talvez venha da nossa capacidade de nos colocarmos na pele do outro e sentir as suas dores e alegrias. É de facto um livro muito humano, acho eu... :)
 
Não vale a pena aprofundar aqui a história. Julgo que é um livro cuja história é importante, no entanto acho que vive, essencialmente das personagens e da forma como interagem.

Gostei muito e recomendo sem qualquer reserva. Rosa Montero é uma escritora a repetir.

Boas leituras!

junho 04, 2016

Contos de São Petersburgo - Nikolai Gógol

Autor: Nikolai Gógol
Tradução do russo: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Biblioteca Editores Independentes

"Estão aqui reunidas as cinco «Histórias de Petersburgo» - Avenida Névski (1834), Diário de um Louco (1834), O Nariz (1836), O Retrato (1841) e O Capote (1841). Acrescentou-se A Caleche (1836), pequeno conto que alguns autores integram neste ciclo. Trata-se do chamado «segundo período» da obra do autor, que se seguiu ao período das histórias ucranianas - Noites na Granja ao pé de Dikanka e Mírgorod. Estes contos do fantástico-real (ou real-fantástico?), integrando o humor e a sátira inconfundíveis de Gógol, tiveram grande influência no ulterior desenvolvimento da prosa literária russa e, também, no de todas as literaturas ocidentais. A modernidade das propostas de Gógol continua mais viva do que nunca nestas histórias em que a personagem principal é a cidade de Petersburgo: mesquinha, sufocante, ridícula, irrisória e ilusória."

Nunca tinha lido nada de Nikolai Gógol e estes contos parecem ter sido uma boa iniciação à obra deste escritor ucraniano e russo.
 
Não sabia o que iria encontrar nestas pequenas histórias de Gógol, mas não estava a contar com histórias divertidas, absurdas até, escritas de uma forma descontraída e de certa forma moderna, se é que podemos falar de modernidade no que à literatura diz respeito.

Inconscientemente julgo que estava à espera de algo sério, pesado e profundo. Não sei de onde me terá ficado essa ideia. Se calhar por isso demorei algum tempo a deixar de estranhar as histórias. Dou por mim a pensar, que raio este homem não é bom da cabeça, que absurdo... porquê escrever sobre um homem que perde o nariz e sobre o mesmo do nariz que se passeia por São Petersburgo? Mas a verdade é que o conto é mesmo para ser absurdo e ridículo, como aparentemente era São Petersburgo naquela época. :) Deixados os preconceitos de lado, este é um livro cheio de humor inteligente, de passagens divertidas, de crítica social acutilante e, ao mesmo tempo cheio de fantasia e imaginação.

Concluindo, gostei muito desta introdução às obras de Gógol. 

Recomendo sem quaisquer reservas.

Boas leituras!

Excerto (pág.221):
"O próprio funcionário parace ter ficado comovido com a situação difícil de Kovaliov. Para lhe atenuar um pouco a amargura, achou conveniente exprimir a sua compaixão com algumas palavras simpáticas:
 - Acredite que lamento muito o ter-lhe sucedido um episódio destes. É servido de uma pitada? É bom para as dores de cabeça e a melancolia; até ajuda em caso de hemorróidas.
Dizendo isto, o funcionário ofereceu a Kovaliov da sua caixa de rapé, cuja tampa, ornada por um retrato de uma senhora com chapéu, abriu com bastante preciosismo.
Este procedimento nada premeditado esgotou a paciência de Kovaliov.
 - Não compreendo como é possível o senhor brincar com isto - disse indignado -, então não vê que me falta precisamente aquilo com que se toma a pitada? Que o leve o diabo, ao seu rapé! Nem o posso ver à frente, e não só o seu tabaco nojento, mas o melhor dos râpés!"