dezembro 26, 2022

[Ebook] A Filha das Flores - Vanessa da Mata

Título: 
A Filha das Flores
Ano da edição original: 2013
Autor: Vanessa da Mata
Editora: Quetzal Editores

"Neste romance de estreia, Vanessa da Mata demonstra uma incrível destreza linguística e a capacidade de criar uma história atmosférica e magnética.
Giza cresce numa pequena cidade brasileira e ajuda, com o seu trabalho, num negócio de flores muito especial gerido por Florinda e Margarida que a tratam como irmã.
Aos 18 anos, Giza apaixona-se por Tito, mas Florinda apressa-se a pôr um fim à sua paixão.
À medida que Giza vai crescendo, a vila parece ir diminuindo, o que faz com que ela comece a procurar novos territórios e encontre a "Vila" - um bairro periférico, detestado pela população em geral. Aí faz novos amigos que a iniciam na história secreta daquele lugar que se revela estar ligada à sua própria origem."

Da Vanessa da Mata conhecia apenas a música e tinha alguma curiosidade em ler A Filha das Flores, o primeiro, e acho que até à data o único, livro que escreveu.

A sinopse resume bem a história. Giza é uma menina, pré-adolescente, que cresce numa cidade pequena, e vive com duas irmãs, Florinda e Margarida, a quem trata por Titias, embora não saiba o verdadeiro grau de parentesco que tem com elas. Giza é desajeitada, tem pouca auto-estima, acha-se feia e pouco interessante. Embora não saiba explicar porquê, sente que há qualquer coisa na vida dela e na sua história que não consegue encaixar. Sente-se deslocada, olhada de lado por toda a gente na cidade, como se todos lhes escondessem alguma coisa e sente-se pouco amada pelas duas irmãs com quem vive, algo que se vai tornando cada vez mais evidente, à medida que Giza vai crescendo e começa a despertar a atenção do sexo oposto.

As pessoas na pequena cidade, começa a reparar Giza, são invejosas, mentirosas e maldosas, escondendo o que verdadeiramente sentem. Em público são simpáticas e sorridentes, como se tudo estivesse bem, mas revelam-se no que fazem e dizem quando pensam que ninguém as está a ver ou a ouvir.

Tudo se precipita na vida de Giza quando, no dia em que faz 18 anos, conhece e se apaixona perdidamente por Tito. E quando vai, pela primeira vez à "Vila", um bairro nos arredores da pequena cidade e que é o oposto da cidade. Na "Vila" as pessoas são francas e alegres, não escondem os seus defeitos e vivem como querem sem qualquer preconceito. São afáveis e acolhedoras.
A cidade e a "Vila" vivem de costas voltadas uma para a outra. Os habitantes da "Vila" não descem à cidade e os habitantes da cidade não sobem à "Vila", pelo menos, não de forma a que todos saibam. 
Giza, que não sabia da existência da "Vila", não percebe como é possível que, em toda a sua vida nunca ninguém lhe tenha falado daquele local? Sem que consiga perceber porquê sente-se em casa na "Vila", algo que nunca sentiu na cidade onde sempre viveu.
Giza vai perceber que sempre esteve ligada aquele lugar, que todos os seus desconfortos, todas as suas impressões tinham um fundo de verdade. Giza vai descobrir quem é e de onde veio e, sabendo tudo isso, está preparada para conhecer o mundo.

Gostei do início e do meio da história, para o fim achei que ela se perdeu um bocadinho e depois acabou por se encontrar novamente. Acho que se nota que a Vanessa da Mata não é uma escritora profissional. Percebe-se em alguns diálogos e em alguns acontecimentos menos interligados, no entanto, acho que acabou por resultar num livro interessante, com passagens muito bonitas e bem escritas e, com uma história diferente, que se lê muito bem. Gostei especialmente das personagens que me pareceram todas muito bem desenvolvidas e com quem conseguimos criar empatia.

Gostei e recomendo sem qualquer reserva.

Boas leituras!


Excerto:
"Havias duas buganvílias entrelaçadas que cruzavam a casa, foram plantadas de modo a agradar as vistas das titias. Cada uma de uma cor, ordenadas desde filhotes a passar de um lado ao outro e acimas das janelas dos quartos, eram de copas cheias e, quando floriam, pintavam a casa inteira de pequeninas formas. Infinitos pontos avermelhados e alaranjados causando nos olhos um furta-cor, como se fossem flores de papel - o começo de uma no final da outra, origamis de seda que se misturavam.
Percebi então, com os rasgos da parte nova da minha maioridade que quebrou, o que eu nunca quis tornar consciente: jamais tive uma grama da atenção delas. Antes achando que era pelo motivo da ignorância da infância, mas depois, crescida, vendo que era porque o que elas podiam me dar era, somente ou o bastante, um comportamento educado. Nada de dar beijo suado, exagerado e abraço demorado. Conversar o desnecessário ou chorar perto delas - isso era coisa de fracos, de impulsivos, mas entre elas havia o insuportável, elas estavam dispostas a essas manifestações humanas dentro de ambientes fechados, cuidadosamente controláveis.
Fui tomada por uma dor no peito que nem na época em que os meus seios irromperam sobre as costelas eu havia sentido, jamais achei que existia algum problema físico sério - a não ser a morte, é claro - que trouxesse uma dor tão insuportável. Pensei que poderia com todas elas, que era maior, e as dominaria se fosse necessário, mas entendi que aquela era a dor mais imponente, impiedosa, severa, indigesta e impossível de lidar para mim. Desnorteou toda a minha base, deixando descomandado o meu pensamento, desmantelado o resto do meu corpo. A dor que eu sentia não dava trégua, era permanente e me tomava da fronte aos pés, me envolvendo em um manto de chumbo de todos os sem-rumo e trazendo à tona os tristes e as tristezas do mundo inteiro. Tudo deitado em mim, como se ser adulto fosse isso: se encontrar, dentro de um feioso caixão, com a perda da infância e com o disparate da sua morte. A decepção é mesmo senhora do demônio, ainda mais quando o demônio está do nosso lado e se revela dissimulado durante tantos anos, dentro de um vestido bordado de bondade e amizade. Era muito tempo me construindo dentro de uma casa onde eu me inventava amada e querida e tudo se desmoronava, eu não me tinha mais. Me mastigava compulsivamente e, mesmo assim, não sentia um ínfimo gosto agradável depois de tidas as unhas arruinadas, restava apenas o fel no fundo do paladar.
Era possível ser de alguém, não sendo?"

O Prisioneiro do Céu - Carlos Ruiz Zafón

Título original: El Prisionero del Cielo
Ano da edição original: 2011
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Tradução: Sérgio Coelho
Editora: Editorial Planeta

"Barcelona, 1957, Daniel Sempere e o amigo Fermín, os heróis de A Sombra do Vento, regressam à aventura, para enfrentar o maior desafio das suas vidas.

Quando tudo lhes começava a sorrir, uma inquietante personagem visita a livraria Sempere e ameaça revelar um terrível segredo, enterrado há duas décadas na obscura memória da cidade. Ao conhecer a verdade, Daniel vai concluir que o seu destino o arrasta inexoravelmente a confrontar-se com a maior das sombras: a que está a crescer dentro de si.

Transbordante de intriga e de emoção, O Prisioneiro do Céu é um romance magistral, que o vai emocionar como da primeira vez, onde os fios de A Sombra do Vento e de O Jogo do Anjo convergem através do feitiço da literatura e nos conduzem ao enigma que se esconde no coração do Cemitério dos Livros Esquecidos. Este romance de Carlos Ruiz Zafón é um verdadeira promessa de felicidade."

Livro lido nas férias de Verão de há uns dois anos atrás. Os pormenores já se desvaneceram na memória, é certo mas, conservo a mística de Barcelona e as personagens que Carlos Ruiz Zafón tão bem sabia criar. Misteriosas e assustadoras.

O Prisioneiro do Céu, traz-nos Daniel Sempere, à frente da livraria, casado, com um filho e feliz. Os dias passam sem grandes sobressaltos, para além dos que atormentam todos os donos de livrarias. Não serão os negócios mais rentáveis e estáveis do mundo. :)
Um dia, um estranho homem, entra na vida do casal e, com ele traz a dúvida e o medo. Daniel Sempere descobre dentro dele sentimentos que não sabia serem possíveis. Torna-se um homem inseguro, desconfiado e agressivo. Fica obcecado por este homem que de repente tornou a sua vida num inferno.

E quem será este homem misterioso que parece trazer a desgraça para os Sempere? O que vamos conhecendo desta personagem e a sua história foi o que mais me cativou no livro. As descrições, o mistério, a dualidade - será bom? será mau?, foi o que mais me manteve interessada na leitura.
Julgo que não é novidade que a personagem do Daniel Sempere, sempre me irritou um bocadinho. Essa impressão não se alterou, agora que é um homem adulto. :)
Com a ajuda de Fermín, o amigo de sempre, e que parece estar, de alguma forma envolvido na história que o homem misterioso está a querer desenterrar, Daniel vai percorrendo as ruas e ruelas de Barcelona para tentar descobrir o que trouxe aquela personagem para a sua vida.

A história está bem escrita, outra coisa não seria de esperar do Carlos Ruiz Zafón. Consegue manter uma aura de mistério, quase terror, que nos mantém em suspenso até ao fim. Foi muto bom voltar a estar com Fermín. Acho que é uma das personagens mais bem conseguidas deste universo do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Para quem gosta de Carlos Ruiz Zafón e deste universo, O Prisioneiro do Céu é um livro que não podem não ler. 

Recomendo sem reservas.

Boas leituras!

Excerto (pág. 95):

"A cela era um rectângulo escuro e húmido, com um pequeno orifício aberto na rocha, por onde entrava ar frio. As paredes estavam cobertas de mossas e marcas gravadas pelos inquilinos anteriores. Alguns gravavam os seu nomes, datas ou deixavam algum indício de que haviam existido. (...)
Fermín estava ali há meio hora, quando reparou, no outro extremo da cela, num vulto na sombra. Levantou-se e aproximou-se devagar, acabando por descobrir tratar-se de uma saca de serapilheira suja. O frio e a humidade haviam começado a penetrar-lhe nos ossos e, por mais que o cheiro emanado daquele fardo salpicado de manchas escuras não augurasse agradáveis conjecturas, Fermín pensou que talvez a saca tivesse uma farda de prisioneiro, que ninguém se dera ao trabalho de lhe entregar e, com um pouco de sorte, um cobertor para se aquecer. Ajoelhou-se em frente à saca e desatou o nó que atava uma das extremidades.
Ao abri-la, a iluminação das candeias que cintilavam trémulas no corredor revelou o que, por momentos, julgou tratar-se do rosto de um boneco, de um manequim como os que os alfaiates colocavam nas montras para exporem os fatos. O fedor e a náusea fizeram-no compreender que não se tratava de um boneco. Cobrindo o nariz e a boca com uma das mãos, retirou o resto do tecido e atirou-se para trás, contra a parede da cela.
O cadáver parecia ser de um adulto de idade indeterminada, entre os quarenta e os setenta e cinco anos, que não deveria pesar mais do que cinquenta quilos. Os cabelos compridos e a barba branca cobriam-lhe uma boa parte do tronco esquelético. As mãos ossudas, de unhas compridas e retorcidas, assemelhavam-se às garras de uma ave. Tinhas os olhos abertos e as córneas pareciam ter-se-lhe enrugado, como frutos maduros. A boca estava entreaberta e a língua, inchada e enegrecida, ficara presa entre os dentes apodrecidos.
- Tire-lhe a roupa antes que o levem - entoou uma voz de uma cela do outro lado do corredor. - A si, ninguém lhe vai dar outras roupas até ao próximo mês."

dezembro 18, 2022

[Ebook] Um Detalhe Menor - Adania Shibli

Título original: تفصيل ثانوي
Ano da edição original: 2020
Autor: Adania Shibli
Tradução: Hugo Maia
Editora: Publicações D, Quixote

"No verão de 1949 - um ano depois da Nakba, a catástrofe que expulsou mais de 700 mil palestinianos das suas terras, e que os israelitas celebram como a Guerra da Independência -, uma unidade de soldados israelitas, ataca um grupo de beduínos no deserto do Negueve, dizimando-o. Entre as vítimas encontra-se uma adolescente que sobrevive ao massacre. É capturada e violada, e depois assassinada e enterrada na areia. É a manhã de 13 de agosto de 1949.
Muitos anos mais tarde, quase na atualidade, uma jovem mulher em Ramallah descobre acidentalmente uma breve menção a esse crime brutal. Obcecada com o assunto, não só devido à natureza macabra do caso, mas também devido ao detalhe menor de ter acontecido precisamente vinte e cinco anos antes de ela nascer, irá embarcar numa viagem para tentar desvendar alguns dos detalhes que envolvem o crime.
Adania Shibli sobrepõe magistralmente estas duas narrativas translúcidas para evocar um presente para sempre assombrado pelo passado. Com uma prosa inquietante e precisa, Um Detalhe Menor evoca a experiência palestiniana do apagamento, da expropriação e da vida sob a ocupação, ao mesmo tempo que revela a complexidade permanente de se juntar as peças de uma narrativa ocultada por fragmentos de linguagem."

O livro está dividido em duas partes. A primeira parte passa-se em 1949, quando uma unidade de soldados israelitas ataca um grupo de beduínos no deserto do Negueve. Uma adolescente sobrevive e é trazida pelos soldados para o acampamento, onde é violada por praticamente todos os soldados daquela unidade. A rapariga nunca baixa os braços, grita e luta até ao fim. Talvez por isso, porque percebem que ela nunca vai ser submissa e vergar-se às suas vontades, acaba por ser levada de volta para o deserto, onde é abatida e enterrada, sem qualquer demonstração de compaixão por parte dos seus carrascos.

O relato destes dois, três dias é de certa forma sufocante e ao mesmo tempo entediante. Adania Shibli centra o relato na personagem do comandante da unidade e descreve, julgo que de forma propositada, de forma repetitiva, as rotinas do comandante, desde a higiene às saídas para patrulhar as áreas circundantes. Pelo meio, uma jovem é violada, o cão que nunca a deixou sozinha ladra incessantemente, a rapariga é arrastada para o deserto, é abatida a tiro e o comandante regressa para a sua tenda, lava o rosto, desinfeta a ferida que tem na perna, muda de camisa e segue com os seus deveres. 
Esta forma de nos contar o que se passou tem um efeito entorpecedor, como se o que é relatado não devesse afetar-nos. De certa forma desumaniza o que aconteceu e isso foi algo que me deixou, naturalmente desconfortável, porque eu deveria estar horrorizada mas, na verdade o que eu sentia era alguma indiferença. Aquela espécie de cantilena deixou-me adormecida. Faz sentido?

A segunda parte, passa-se muitos anos depois. Em Ramallah, no Estado da Palestina, uma jovem mulher lê uma referência ao que aconteceu a esta rapariga em 1949 e, quando percebe que a rapariga foi morta no dia do seu aniversário, precisamente 25 anos antes de ela nascer, fica obcecada com o assunto. Sem conseguir esquecer a rapariga e com a certeza de que o que leu não é o mais fiel retrato do que se passou, porque foi escrito por um jornalista israelita, decide investigar ela própria o que aconteceu. Para isso tem de entrar em território de Israel. Não tem os documentos necessários para o fazer mas, acaba por ser ajudada por colegas de trabalho. Uma colega entrega-lhe o seu passe pessoal que lhe permite circular pelos territórios ocupados por Israel e um outro colega aluga-lhe o carro para a viagem.

Nesta segunda parte, mantém-se o mesmo ritmo de escrita, embora a cantilena seja menos evidente. 

Impressiona a referência aos dois mapas que ela utiliza para se orientar, um pré-ocupação e o oficial de Israel. No primeiro faz-se referência a localidades, aldeias inteiras, que no segundo mapa pura e simplesmente não existem ou que foram destruídas e substituídas por colonatos. Embora as aldeias já não existam de facto, porque foram forçadas a deixar de existir, o não serem sequer mencionadas, é como se nunca tivessem existido. É como se todas as pessoas que lá nasceram, viveram e morreram, nunca tivessem existido.

Impressiona a paisagem que parece sempre igual, deserta, sem gente. Locais de onde as pessoas foram forçadas a sair mas que não foram reocupados, apenas destruídos e, todo e qualquer vestígio dos anteriores habitantes foi eliminado, literalmente eclipsado do mapa.

E porquê? É a pergunta que me vai passando pela cabeça. Porquê?
Não tenho reposta, nem capacidade para procurar a resposta.

Impressiona o carrossel emocional desta mulher, entre o medo de ser apanhada e a vontade, incompreensível, que tem de conhecer melhor a rapariga e as circunstâncias que levaram à sua morte em 1949.

Impressiona toda esta viagem, e o seu fim é, infelizmente, o único fim que fazia sentido. 

Há uma pergunta que não me deixa em paz desde que li este livro. Não consigo entender a relação que os Israelitas, povo que já habitava o território que acabou por ser oficialmente reconhecido como Estado de Israel, depois do fim da 2ª Guerra Mundial, têm ou tinham com os Judeus perseguidos pelos Nazis? Tenho dificuldade em aceitar que estão relacionados. Como é que, um povo que passou pelo que passou, que foi dizimado e perseguido, consegue ocupar, de forma ilegal, território que não lhe pertence, e continuar, há décadas, a alimentar um conflito desigual, injusto e desumano. Não consigo perceber...
Sei que tudo isto não é simples e que as coisas não são pretas ou brancas. Sei, no entanto que, muitas vezes as coisas são tão complexas quanto nós, ou alguém, por nós, quer que sejam. Simples, complexas é tudo uma questão de perspetiva.

Gostei muito. É um livro pequeno que se lê muito rápido e que, julgo que vai ficar na minha cabeça por algum tempo.

Recomendo sem hesitações.

Boas leituras!

Excerto:
"Não sei se já terei percorrido esta estrada anteriormente, como me pareceu ao início, ou não. A estrada que me era familiar até há uns anos era estreita e repleta de curvas, enquanto está é demasiado larga e reta. Além disso, o muro com cinco metros de altura que emerge de ambos os lados, é sucedido por imensos novos edifícios agrupados em colonatos, que não existiam antigamente ou quase que não se viam, enquanto a maioria das aldeias palestinianas que aqui havia desapareceram. 
De cabeça erguida e olhos bem abertos, procuro quaisquer vestígios dessas aldeias e das suas casas que se enxameavam espontaneamente, à semelhança das rochas sobre as colinas, ligadas entre si por estreitos caminhos que vagarosamente serpenteavam. Mas em vão. Já não é possível avistar nenhuma. E quanto mais avanço, menos sei onde estou! Até que vislumbro, à esquerda da estrada, um outro caminho bloqueado, e é aí então que tenho a certeza de que já passei nesta estrada dezenas de vezes, pois este caminho secundário, que agora está barrado por uma pilha de terra e alguns vultos os blocos de betão, conduz até às aldeias de al-Jib. Paro o carro no entroncamento desse caminho, apeio-me e aproximo-me do monte de terra e betão que o bloqueia para me certificar que ele existe mesmo e que é impossível movê-lo, assim como é também impossível atravessá-lo com o meu carro ou com outro qualquer. É belo este caminho, que ziguezagueia ora para a direita, ora para a esquerda, passando por entre as colinas pontilhadas com oliveiras e pequenas aldeias envoltas em silêncio, até Beit Iksa. (...) Examino a zona junto à autoestrada n°1, que parece, de acordo com o que o mapa mostra, povoada principalmente de colonatos. As únicas duas  aldeias palestinianas que aparecem são Abu Ghosh e Ein Rafá. Abro o mapa que reproduz a Palestina antes de 1948 e deixo o meu olhar percorrê-lo, movendo-se entre os numerosos nomes de aldeias palestinianas, que foram destruídas depois da expulsão dos seus habitantes nesse ano. Reconheço o nome de algumas, de onde alguns colegas meus e conhecidos são provinientes, como, por exemplo, Lifta, al-Qastal, Ein Kárim, al-Maliha, Jimzu e Deir Tarif. Mas a maioria são nomes que me parecem desconhecidos, a ponto de me causarem um estranho sentimento de melancolia. (...) Olho de novo para o mapa israelita. Um enorme parque, chamado Parque Canadá, cobre agora a área de todas estas aldeias. Fecho o mapa, ligo o motor do carro, e arranco pela autoestrada n°50, desta vez sem encontrar nenhum obstáculo, até que acabo por chegar à longa autoestrada."

dezembro 17, 2022

Essa Puta Tão Distinta - Juan Marsé

Título original: Esa Puta tan Distinguida
Ano da edição original: 2015
Autor: Juan Marsé
Tradução: Maria Manuel Viana
Editora: Publicações D. Quixote

"Embora deteste a filmografia do realizador e produtor que contrata os seus serviços, um escritor célebre por retratar nos seus romances a ruína moral dos anos do pós-guerra aceita com relutância a encomenda para escrever um guião cinematográfico sobre um caso real da Barcelona dos anos 40. Trata-se de um crime que teve lugar no cinema Delícias, em cuja sala de projeção foi assassinada  uma prostituta, estrangulada com uma tira de película de filme enquanto o público assistia à estreia de Gilda. Durante o processo de pesquisa o escritor irá verificar como, por vezes, na vida real os crimes carecem de sentido e os seus protagonistas nem sempre são heróis ou anti-heróis, algo que, na ficção, nem todos parecem dispostos a tolerar.
Neste magnífico romance, Juan Marsé, transmutado num escritor descrente e incapaz de se levar a sério, reflete sobre as armadilhas da memória e os limites da ficção, enquanto ajusta contas com aqueles que manipulam o nosso passado para gerar produtos de simples entretenimento, que pervertem a memoria histórica e banalizam a dor e a miséria de toda uma geração."

Um escritor é contratado para escrever uma espécie de guião tendo como base a história real de um assassinato que ocorreu na cabine de projeção do cinema Delícias, nos anos 40.
Uma prostituta, Carol, foi assassinada pelo projeccionista, Sicart, enquanto na tela passa Gilda, com a sensual Rita Hayworth, um filme polémico devido a algumas cenas mais quentes, pelo menos para a época. 
Sicart, confessou o crime e cumpriu a pena que lhe foi imposta,  mas nunca conseguiu explicar porque é que o fez. Não se lembra do motivo.

Para tentar perceber melhor o que se passou, conhecer as pessoas envolvidas para além do que consta na documentação de investigação, da impressa da altura e do processo judicial, decide contratar o próprio Sicart. 
Sicart já saiu da prisão e vive agora como um homem livre, e aceita contar a sua história, ou, pelo menos aquilo de que se lembra.

E é pelas memórias de Sicart que visitamos e conhecemos a Barcelona dos anos 40, a Encarnita, a Puta cega e amiga de Carol Bruil, Ramon Mirt o franquista que as explora e, o próprio Sicart, um jovem de vinte e poucos anos que trabalha na cabine de projeção do Delícias e que gostava de ter companhia na cabine enquanto os filmes eram projetados na sala. 

Paralelamente o escritor vai percebendo que a história que Sicart conta tem interesse apenas para si, porque o produtor e o novo realizador, não estão interessados em histórias mais ou menos profundas sobre política, sobre relações e até sobre o próprio crime e as possíveis motivações de Sicart. Ficam antes fascinados com o facto de Encarnita ser uma puta cega. :)

Gostei muito. A escrita de Juan Marsé é natural e bem-disposta, o que torna a leitura muito fluida. Gosto das personagens e da ironia subjacente em todo o livro.

Recomendo sem quaisquer reservas. Juan Marsé é para continuar a conhecer.

Boas leituras!

Excerto (pág. 112):
" - Foi informadora da polícia, não se esqueça.
 - Ó homem, será que não percebe?! Foi tudo uma invenção daqueles malparidos da Brigada Social! - Acalmou-se, logo a seguir. - Bom, e se alguma vez fez uma coisa desse tipo, foi obrigada por aquele cabrão. Equivocada ou não, tudo o que a Carol fez, primeiro pelo marido, depois pelo filhinho doente e por ela mesma, foi sempre com a melhor das intenções...
 - Eu percebo. Mas diga-me uma coisa. Parece-lhe lógico que depois do que ocorreu mantivesse uma relação com o Mir, um tipo repugnante?
 - Não sei que dizer. Nunca me atrevi a perguntar-lho.
 - Acha que pode tê-lo feito como... uma forma de expiação?
Sicart abanou a cabeça, confuso.
 - O que é que quer dizer? Ouça, eram tempos muito difíceis e era preciso aguentar de qualquer maneira. Se fosse preciso vender a alma para sair da miséria, vendia-se. Se a Carol acabou por ter uma ligação com aquele filho da puta, fê-lo para sair da miséria. E pelo filho. Tenho a certeza. Foi sempre o que pensei.
Eu tinha muitas dúvidas, mas não lhe disse nada, porque percebi que a suspeita também o angustiava. Com toda a certeza, no coração daquela mulher só podia haver restos amargos de sexo e remorso. Quanto a falangista Mir, estaria a viver com ela uma panóplia de amores furtivos e luzeiros apagados..."