Título original: تفصيل ثانوي
Ano da edição original: 2020
Autor: Adania Shibli
Tradução: Hugo Maia
Editora: Publicações D, Quixote
"No verão de 1949 - um ano depois da Nakba, a catástrofe que expulsou mais de 700 mil palestinianos das suas terras, e que os israelitas celebram como a Guerra da Independência -, uma unidade de soldados israelitas, ataca um grupo de beduínos no deserto do Negueve, dizimando-o. Entre as vítimas encontra-se uma adolescente que sobrevive ao massacre. É capturada e violada, e depois assassinada e enterrada na areia. É a manhã de 13 de agosto de 1949.Muitos anos mais tarde, quase na atualidade, uma jovem mulher em Ramallah descobre acidentalmente uma breve menção a esse crime brutal. Obcecada com o assunto, não só devido à natureza macabra do caso, mas também devido ao detalhe menor de ter acontecido precisamente vinte e cinco anos antes de ela nascer, irá embarcar numa viagem para tentar desvendar alguns dos detalhes que envolvem o crime.
Adania Shibli sobrepõe magistralmente estas duas narrativas translúcidas para evocar um presente para sempre assombrado pelo passado. Com uma prosa inquietante e precisa, Um Detalhe Menor evoca a experiência palestiniana do apagamento, da expropriação e da vida sob a ocupação, ao mesmo tempo que revela a complexidade permanente de se juntar as peças de uma narrativa ocultada por fragmentos de linguagem."
O livro está dividido em duas partes. A primeira parte passa-se em 1949, quando uma unidade de soldados israelitas ataca um grupo de beduínos no deserto do
Negueve. Uma adolescente sobrevive e é trazida pelos soldados para o acampamento, onde é violada por praticamente todos os soldados daquela unidade. A rapariga nunca baixa os braços, grita e luta até ao fim. Talvez por isso, porque percebem que ela nunca vai ser submissa e vergar-se às suas vontades, acaba por ser levada de volta para o deserto, onde é abatida e enterrada, sem qualquer demonstração de compaixão por parte dos seus carrascos.
O relato destes dois, três dias é de certa forma sufocante e ao mesmo tempo entediante.
Adania Shibli centra o relato na personagem do comandante da unidade e descreve, julgo que de forma propositada, de forma repetitiva, as rotinas do comandante, desde a higiene às saídas para patrulhar as áreas circundantes. Pelo meio, uma jovem é violada, o cão que nunca a deixou sozinha ladra incessantemente, a rapariga é arrastada para o deserto, é abatida a tiro e o comandante regressa para a sua tenda, lava o rosto, desinfeta a ferida que tem na perna, muda de camisa e segue com os seus deveres.
Esta forma de nos contar o que se passou tem um efeito entorpecedor, como se o que é relatado não devesse afetar-nos. De certa forma desumaniza o que aconteceu e isso foi algo que me deixou, naturalmente desconfortável, porque eu deveria estar horrorizada mas, na verdade o que eu sentia era alguma indiferença. Aquela espécie de cantilena deixou-me adormecida. Faz sentido?
A segunda parte, passa-se muitos anos depois. Em
Ramallah, no
Estado da Palestina, uma jovem mulher lê uma referência ao que aconteceu a esta rapariga em 1949 e, quando percebe que a rapariga foi morta no dia do seu aniversário, precisamente 25 anos antes de ela nascer, fica obcecada com o assunto. Sem conseguir esquecer a rapariga e com a certeza de que o que leu não é o mais fiel retrato do que se passou, porque foi escrito por um jornalista israelita, decide investigar ela própria o que aconteceu. Para isso tem de entrar em território de Israel. Não tem os documentos necessários para o fazer mas, acaba por ser ajudada por colegas de trabalho. Uma colega entrega-lhe o seu passe pessoal que lhe permite circular pelos territórios ocupados por Israel e um outro colega aluga-lhe o carro para a viagem.
Nesta segunda parte, mantém-se o mesmo ritmo de escrita, embora a cantilena seja menos evidente.
Impressiona a referência aos dois mapas que ela utiliza para se orientar, um pré-ocupação e o oficial de Israel. No primeiro faz-se referência a localidades, aldeias inteiras, que no segundo mapa pura e simplesmente não existem ou que foram destruídas e substituídas por colonatos. Embora as aldeias já não existam de facto, porque foram forçadas a deixar de existir, o não serem sequer mencionadas, é como se nunca tivessem existido. É como se todas as pessoas que lá nasceram, viveram e morreram, nunca tivessem existido.
Impressiona a paisagem que parece sempre igual, deserta, sem gente. Locais de onde as pessoas foram forçadas a sair mas que não foram reocupados, apenas destruídos e, todo e qualquer vestígio dos anteriores habitantes foi eliminado, literalmente eclipsado do mapa.
E porquê? É a pergunta que me vai passando pela cabeça. Porquê?
Não tenho reposta, nem capacidade para procurar a resposta.
Impressiona o carrossel emocional desta mulher, entre o medo de ser apanhada e a vontade, incompreensível, que tem de conhecer melhor a rapariga e as circunstâncias que levaram à sua morte em 1949.
Impressiona toda esta viagem, e o seu fim é, infelizmente, o único fim que fazia sentido.
Há uma pergunta que não me deixa em paz desde que li este livro. Não consigo entender a relação que os Israelitas, povo que já habitava o território que acabou por ser oficialmente reconhecido como
Estado de Israel, depois do fim da 2ª Guerra Mundial, têm ou tinham com os Judeus perseguidos pelos Nazis? Tenho dificuldade em aceitar que estão relacionados. Como é que, um povo que passou pelo que passou, que foi dizimado e perseguido, consegue ocupar, de forma ilegal, território que não lhe pertence, e continuar, há décadas, a alimentar um conflito desigual, injusto e desumano. Não consigo perceber...
Sei que tudo isto não é simples e que as coisas não são pretas ou brancas. Sei, no entanto que, muitas vezes as coisas são tão complexas quanto nós, ou alguém, por nós, quer que sejam. Simples, complexas é tudo uma questão de perspetiva.
Gostei muito. É um livro pequeno que se lê muito rápido e que, julgo que vai ficar na minha cabeça por algum tempo.
Recomendo sem hesitações.
Boas leituras!
Excerto:
"Não sei se já terei percorrido esta estrada anteriormente, como me pareceu ao início, ou não. A estrada que me era familiar até há uns anos era estreita e repleta de curvas, enquanto está é demasiado larga e reta. Além disso, o muro com cinco metros de altura que emerge de ambos os lados, é sucedido por imensos novos edifícios agrupados em colonatos, que não existiam antigamente ou quase que não se viam, enquanto a maioria das aldeias palestinianas que aqui havia desapareceram.
De cabeça erguida e olhos bem abertos, procuro quaisquer vestígios dessas aldeias e das suas casas que se enxameavam espontaneamente, à semelhança das rochas sobre as colinas, ligadas entre si por estreitos caminhos que vagarosamente serpenteavam. Mas em vão. Já não é possível avistar nenhuma. E quanto mais avanço, menos sei onde estou! Até que vislumbro, à esquerda da estrada, um outro caminho bloqueado, e é aí então que tenho a certeza de que já passei nesta estrada dezenas de vezes, pois este caminho secundário, que agora está barrado por uma pilha de terra e alguns vultos os blocos de betão, conduz até às aldeias de al-Jib. Paro o carro no entroncamento desse caminho, apeio-me e aproximo-me do monte de terra e betão que o bloqueia para me certificar que ele existe mesmo e que é impossível movê-lo, assim como é também impossível atravessá-lo com o meu carro ou com outro qualquer. É belo este caminho, que ziguezagueia ora para a direita, ora para a esquerda, passando por entre as colinas pontilhadas com oliveiras e pequenas aldeias envoltas em silêncio, até Beit Iksa. (...) Examino a zona junto à autoestrada n°1, que parece, de acordo com o que o mapa mostra, povoada principalmente de colonatos. As únicas duas aldeias palestinianas que aparecem são Abu Ghosh e Ein Rafá. Abro o mapa que reproduz a Palestina antes de 1948 e deixo o meu olhar percorrê-lo, movendo-se entre os numerosos nomes de aldeias palestinianas, que foram destruídas depois da expulsão dos seus habitantes nesse ano. Reconheço o nome de algumas, de onde alguns colegas meus e conhecidos são provinientes, como, por exemplo, Lifta, al-Qastal, Ein Kárim, al-Maliha, Jimzu e Deir Tarif. Mas a maioria são nomes que me parecem desconhecidos, a ponto de me causarem um estranho sentimento de melancolia. (...) Olho de novo para o mapa israelita. Um enorme parque, chamado Parque Canadá, cobre agora a área de todas estas aldeias. Fecho o mapa, ligo o motor do carro, e arranco pela autoestrada n°50, desta vez sem encontrar nenhum obstáculo, até que acabo por chegar à longa autoestrada."