junho 18, 2023

O Peso do Coração - Rosa Montero

Título: El Peso del Corazón
Ano da edição original: 2015
Autor: Rosa Montero
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Três anos, dez meses e vinte e um dias.

É o tempo que resta a Bruna Husky. A detetive replicante, que é uma sobrevivente capaz de tudo, continua a debater-se com a independência total e a necessidade desesperada de carinho, como uma fera aprisionada na jaula de uma existência a prazo.

Contratada para resolver um caso aparentemente simples e lucrativo, Bruna vê-se envolvida numa trama de corrupção internacional de tal forma sinistra e ameaçadora que pode comprometer a existência da própria Terra. Num futuro no qual os direitos, outrora considerados essenciais, se tornaram reféns do dinheiro, a replicante revela-se uma guerreira empenhada na luta contra esquemas de organização social baseados em preconceitos, regras rígidas e fanatismo, que põem em causa a existência de todos os seres.

O Peso do Coração é um romance distópico que, a partir do debate claro e atual das consequências das opções do presente, reflete de forma madura sobre as condições de vida e da morte, e sobre aquilo que é, na essência, a própria definição de humanidade, constituindo um regresso extraordinário ao mundo fascinante de Lágrimas na Chuva."

Tenho a estranha sensação de que cada vez mais as distopias me parecem mais realistas, menos improváveis e, por isso, mais perturbadoras. É o caso deste O Peso do Coração de Rosa Montero, que se passa num futuro não tão longínquo, onde o Homem quase destruiu a Terra, conquistou o espaço, inventou Tecno-Humanos, batizou-os de Replicantes e, estes conquistaram direitos.

A Terra ainda existe, mas é um lugar diferente do que conhecemos e está em pleno processo de renascimento. A sociedade parece continuar assente numa lógica de dinheiro: quem o tem pode pagar qualidade de vida, quem não o tem, é como se não existisse. Pensando bem, afinal a Terra não é assim um lugar tão diferente. Talvez a diferença esteja no descaramento com que tudo é feito, sem dilemas morais porque, as coisas são como são. Uma questão de sobrevivência, a normalização da lei do mais forte, talvez.

Os replicantes são uma espécie de androides muito evoluídos que coabitam com os humanos, convivem com os humanos e relacionam-se com os humanos. Parecem humanos, agem como humanos, parecem sentir como os humanos mas não são humanos. Tem um tempo predeterminado de vida e "morrem" de uma forma feia e humana. Quando se aproxima a data em que são desativados, as suas partes orgânicas começam a degradar-se, até que deixam de funcionar por completo na data que estava programada desde a sua criação.

Bruna Husky é um replicante e, restam-lhe três anos, dez meses e vinte e um dias de vida e ela não consegue deixar de pensar nisso. Sente a toda a hora a sua finitude e o aproximar do seu fim.  Bruna é um Replicante de combate e, desde que foi dispensada do serviço militar, é detetive.
Bruna sempre foi diferente dos outros porque quem a criou, colocou em Bruna algumas das suas memórias pessoais, o que a tornou, se assim se pode dizer, mais humana, porque as memórias, para todos os efeitos, são reais. Não são dela, ela sabe que não lhe pertencem, mas a memória dos sentimentos que lhe foi implantada é real. Isto torna Bruna mais sensível, empática e até capaz de amar, romanticamente, os humanos.

O Peso do Coração é o segundo livro que Rosa Montero escreveu com Bruna Husky, o primeiro é Lágrimas na Chuva. Não tendo lido o primeiro, não me senti deslocada no mundo de Bruna. Parece-me que podem perfeitamente funcionar de forma independente.

Neste, Bruna vê-se envolvida numa investigação que coloca em risco os três anos, dez meses e vinte e um dias que lhe restam. Vê-se de volta às Zonas Zero, é mordida por uma miúda meio selvagem e, para lhe salvar a vida, aceita ficar responsável por ela, trazendo-a de volta consigo e, volta a trabalhar com Lizard, o polícia com quem tem um relação complicada, a todos os níveis.

Tendo como pano de fundo a investigação de Bruna, vamos vendo, através dos seus olhos, o estado da humanidade, as consequências de todas as decisões de humanos pouco escrupulosos, baseadas no dinheiro, no poder efémero mas, também as decisões de humanos bem intencionados que não souberam fazer de outra forma. 
São interessantes os dilemas de Bruna, que vive torturada, sabendo que não é humana mas sentindo-se como uma. Capaz de amar, de sentir prazer e dor, de questionar as suas ações e as dos outros, de tomar decisões que vão para além do seu bem-estar. Não deixa, no entanto, de pensar até que ponto tudo o que sente não está programado e, por isso, Bruna é tão Replicante como os seus semelhantes?
Até que ponto, nós humanos, não estamos também pré-programados? Até que ponto não somos apenas química e o que sentimos, não são apenas reações químicas, balanços energéticos que podem ser replicados num laboratório?
É um livro que é mais do que a investigação, o entretenimento e a ação. Levanta algumas questões sobre as quais devemos todos refletir, que nos assustam, mas das quais não devemos fugir. 

Este é o terceiro livro que li de Rosa Montero, e acho-os a todos muito diferentes uns dos outros e todos eles são muito bons e surpreendentes. Gosto muito da escrita dela, da forma como desenvolve as histórias e gosto dos temas. Gosto mesmo muito de Rosa Montero. Para além do conteúdo dos livros, acho que têm dos títulos mais originais e bonitos e, adoro todas as capas que circulam por cá. É o pacote completo! :)

Recomendo sem qualquer hesitação.

Boas leituras! :)

Excerto (pág. 9)
"Os humanos são paquidermes, lentos e pesados, ao passo que os Replicantes são tigres rápidos e desesperados, pensou Bruna Husky, consumida pela impaciência de ter de esperar na fila. Recordou uma vez mais a frase de um autor antigo que, um dia, o seu amigo arquivista citara: «As ininterruptas idas e vindas do tigre diante dos barrotes da jaula para que não se lhe e escape o único e brevíssimo instante da salvação.» Impressionada, Bruna decorara-a. Ela era esse tigre, preso no minúsculo cárcere que era a sua vida. Os humanos, com as suas existências longuíssimas e velhice intermináveis, costumavam glorificar com vaidade as vantagens da aprendizagem; até das mas experiências, defendiam, se podiam tirar lições. Husky é que não tinha tempo a perder com tais tontices; como qualquer androide, só vivia uma década, que terminaria dentro de três anos, dez meses e vinte e um dias, e tinha a certeza de que havia saberes que não valia a pena interiorizar. Por exemplo, teria vivido feliz sem conhecer a imundície das Zonas Zero; no entanto ali estava ela no que parecia agora ser uma viagem inútil à miséria."

junho 03, 2023

A Breve Vida das Flores - Valérie Perrin

Título: 
Changer l'eau des Fleurs
Ano da edição original: 2018
Autor: Valérie Perrin
Tradução: Maria de Fátima Carmo
Editora: Editorial Presença

"Íntimo, poético e luminoso.
O romance protagonizado por uma mulher que, contra tudo e contra todos, nunca deixa de acreditar na felicidade.
Violette Toussaint é guarda de cemitério numa pequena vila da Borgonha. A sua vida é preenchida pelas confidências - comoventes, trágicas, cómicas - dos visitantes do cemitério e pelos seus colegas: três coveiros, três agentes funerários e um padre. E os seus dias pareciam ser assim para sempre. Até à chegada do chefe de polícia Julien Seul, que quer deixar as cinzas da mãe na campa de um desconhecido.
A história de amor clandestino da mãe daquele homem afeta de tal forma Violette, que toda a dor que tentou calar vem ao de cima. É tempo de descobrir o responsável pela tragédia que afetou a sua vida.
Atmosférico, tocante e - tantas vezes - hilariante, este é um romance de vida: dos que partiram e vivem em nós, da luz que se pode revelar mesmo na mais plena escuridão. Porque às vezes basta a simplicidade de um gesto, basta a frescura da água viva para nos devolver ao mundo, a nós mesmos e aos outros."

A Breve Vida das Flores é um livro que tem andado nas bocas do mundo literário e do qual toda a gente fala. 

Não quero alongar-me muito sobre a história porque teria dificuldade em não contar demais. Corro o risco de estragar a vossa viagem pela vida de Violette Toussaint. Por isso, digo apenas que é um romance, cheio de tristezas, desgostos, lágrimas, desespero, de raiva e de dor mas, que ao mesmo tempo, está cheio de esperança, de bondade, amizade, aromas reconfortantes e cor. 
Tudo isto, tendo como pano de fundo, uma passagem de nível e um cemitério. Digamos que são os sítios menos prováveis para servirem de abrigo a todos estes sentimentos e, muito menos para serem os sítios onde há encontros e desencontros e onde se iniciam verdadeiras histórias de amor, que é o que este A Breve Vidas das Flores acaba por ser. Dos vários tipos de amor e não apenas o amor romântico.

O livro está bem escrito, lê-se bem, não obstante ser um livro grande, lê-se rápido porque a escrita é fluida. A história é interessante e foge ao típico romance de mulher conhece homem perfeito, enfrentam desafios pelo meio e depois, vivem felizes para sempre. Achei que ia ser algo deste género e não é de todo esse tipo de romance.
Agora que penso sobre o livro, acho que está mais para o drama, uma daquelas histórias da vida real, ficcionada, para ser mais comercial.
Ou seja, Violette Toussaint, a ser real, poderia ser a convidada, de um qualquer programas das tardes televisivas, onde iria partilhar a sua história de superação e onde todos iríamos chorar muito. E acho que é por isso que, embora reconheça qualidades no livro, até alguma originalidade, não consegui gostar assim tanto dele. 
A verdade é que não me identifico com o género de história e, para além disso achei que às tantas, a história se tornou repetitiva.

Não tinha grandes expectativas, por isso, não me sinto defraudada e não dou por perdido o tempo que passei a lê-lo. De todo. Como disse, lê-se bem, está bem escrito e é suficientemente interessante para que continuasse a passar à página seguinte.
É um livro que me vai ficar na memória? Provavelmente não. Mas se tudo o que lêssemos nos ficasse gravado na memória, não teríamos espaço para mais nada. :)

Recomendo, porque dentro do género me pareceu bastante interessante e original.

Boas leituras!

Excerto (pág.10):

"Chamo-me Violette Toussaint, Era guarda de passagem de nível, agora sou guarda de cemitério.
Saboreio a vida, bebo-a em que pequenos goles como chá de jasmim com mel. E quando chega o final de tarde e os portões do meu cemitério se fecham e a chave se pendura à porta da minha casa de banho, fico no paraíso.
Não o paraíso dos meus vizinhos da frente, Não.
O paraíso dos vivos; um trago de porto - colheita de 1983 -, que me traz José-Luís Fernandez todos os dias 1 de setembro. Um resto de férias vertido num cálice de cristal, uma espécie de verão extemporâneo que desarrolho por volta das sete da tarde, faça chuva, neve ou vento.
Dois dedais de líquido rúbi. O sangue das vinhas do Porto. Fecho os olhos. E saboreio. Um único trago basta para me alegrar o serão. Dois dedais porque adoro a embriaguez, mas não o álcool.
José-Luís Fernandez põe flores na campa de Maria Pinto, nome de casada Fernandez (1956-2007), uma vez por semana, exceto em julho, que é quando faço eu o turno. Daí o porto, para me agradecer.
O meu presente é um presente do céu. É o que digo a mim mesma todas as manhãs, quando abro os olhos.
Eu estava muito infeliz; aniquilada, mesmo. Inexistente. Vazia. Estava como os meus vizinhos, mas para pior. As minhas funções vitais mantinham-se, mas sem que eu estivesse no interior. Sem o peso da alma, que pesa, ao que parece, quer sejamos gordos ou magros, altos ou baixos, jovens ou velhos, vinte e um gramas.
Contudo, como nunca tive gosto pela infelicidade, decidi que isso não iria durar. É necessário que a infelicidade acabe, um dia."

junho 02, 2023

Vinte e Quatro Horas da Vida de uma Mulher - Stefan Zweig

Título: Vierundzwanzig Stunden aus dem Leben einer Frau
Ano da edição original: 1927
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Alice Ogando
Editora: Publicações Europa-América

"A rotina de um hotel na Riviera é abalada por uma notícia escandalosa. Uma mulher abandona o marido e as duas filhas, em nome de uma paixão por um jovem que havia acabado de conhecer. Este episódio despoleta uma acesa discussão entre os hóspedes do hotel e leva a Senhora C., uma aristocrata inglesa de sessenta e sete anos, a recordar um episódio secreto da sua vida que a tortura há mais de duas décadas. Vinte e quatro horas na vida de uma mulher é um relato apaixonante e intimista sobre a vida de uma mulher que se liberta das correntes do pudor e do preconceito social em nome de uma paixão avassaladora."

Num hotel na Riveira, quando uma mulher abandona o marido e as filhas para fugir com um homem que tinha acabado de conhecer, todos ficam chocados e todos os hóspedes têm uma opinião sobre o assunto, sendo que a maioria é bastante crítica e intolerante com a mulher fugitiva. Nenhum deles a conhece, no entanto, todos eles não hesitam em classificar como inaceitável e vergonhoso o comportamento desta mulher.
Apenas um jovem homem parece sentir necessidade de, de certa forma, apoiar a mulher fugitiva, tentando trazer para a discussão pontos de vista que vão para além dos argumentos do socialmente aceitável, para uma mulher casada e com filhos.

A Senhora C., sexagenária, e uma das hóspedes, fica impressionada com a atitude deste jovem na defesa da mulher fugitiva. Talvez por isso julga ter encontrado, neste total desconhecido, o ouvinte perfeito para a sua história. Uma história, que aconteceu há vinte anos atrás, e que nunca partilhou com ninguém. Talvez se a partilhar, se a contar em voz alta, a alguém que não a julgue, consiga expurgar todos os sentimentos de culpa e de vergonha que a atormentam desde então.

Há vinte anos atrás, a Senhora C., recentemente enviuvada e devastada por ter perdido o companheiro de uma vida inteira, sente-se perdida, por não saber como viver sem o marido, e solitária, com os filhos crescidos e ocupados nos seus afazeres. Decide, por isso, sair da cidade onde vive e ir até ao casino passar algum tempo entre desconhecidos. Foi algo que sempre gostou de fazer e o objetivo nunca foi jogar. O que a atrai é poder observar os jogadores, mais precisamente as suas mãos. É fascinada por mãos e, é impressionante aquilo que se consegue saber sobre desconhecidos, quando estes não se sabem observados, principalmente quando se encontram mais vulneráveis, como acontece num casino, a apostar muitas vezes tudo o que têm e o que não têm.
É no casino que a Senhora C. repara num par de mãos como nunca tinha visto até então. Umas mãos delicadas, nervosas e agitadas e que espelham o turbilhão de emoções que habitam o homem a quem pertencem.
Fascinada pelo que observa, quando o homem sai do casino, arruinado e claramente perturbado, a Senhora C., é incapaz de não sair atrás dele.

Toda a história começa aqui, na interação desta viúva, nos seus quarentas, com um desconhecido com metade da idade dela, que não consegue abandonar à sua sorte, embora não perceba muito bem porquê. Não percebe, ou não quer perceber, porque teria de admitir que o interesse que o homem desperta nela e parece ir além do instinto maternal. 
A vergonha e a perplexidade não a abandonam ao longo daquelas vinte e quatro horas mas, ao mesmo tempo não a retraem ou impedem de continuar e de não abandonar o homem.
A vergonha e a perplexidade nunca a abandonaram durante os vinte anos que separam aquelas vinte quatro horas e a noite no hotel da Riviera em que decide partilhar a sua história com mais um desconhecido.

É um livro pequeno, que se lê num instante mas que está cheio de conteúdo e, está muito bem escrito, num tom meio irónico e leve. 

Não conhecia Stefan Zweig, não me recordo porque entrou na minha lista de autores a conhecer. O mais provável é ter sido sugerido por alguém cujas opiniões valorizo mas, o que importa é que fiquei agradavelmente surpreendida e vou querer ler mais livros dele.

Recomendo sem qualquer hesitação.

Aproveitem a Feira do Livro de Lisboa para encontrarem os livros dele a preços mais convidativos.

Boas leituras!

Excerto (pág. 63)
"Nunca, até esse momento (não me canso de o repetir), vira um rosto onde a paixão brotasse tanto a descoberto, tão bestial na sua impudica nudez, e fiquei para ali completamente entregue à contemplação fixa desse rosto... tão fascinada, tão hipnotizada pela sua loucura, como estava o seu olhar pelos movimentos palpitantes da bola em rotação.
A partir desse momento, não vi mais nada na sala, tudo me parecia apagado, embaciado, tudo se me afigurava obscuro em comparação com o fogo que brotava daquele rosto; e, sem dar atenção a mais ninguém, observei, talvez durante uma hora, apenas aquele homem e cada um dos seus gestos. Um luz brutal iluminou-lhe os olhos, o novelo convulso das mãos foi bruscamente desfeito como por uma explosão, e os dedos alargaram-se com violência, frementes, mal o croupier empurrou, em sua direcção, vinte moedas de ouro.
Nesse momento, o seu rosto iluminou-se e rejuvenesceu por completo; as rugas desfizeram-se lentamente; os olhos começaram a brilhar; o corpo antes contraído, endireitou-se, tornou-se leve como um cavaleiro impelido pelo entusiasmo do triunfo; os dedos faziam tilintar com amor e vaidade as moedas redondas, obrigando-as a escorregar umas de encontro às outras, fazendo-as dançar e tinir como numa brincadeira. Depois, voltou de novo a cabeça com inquietação, percorreu o pano verde com as narinas dilatadas como um cãozinho de caça farejando a boa pista, e, a seguir, num gesto rápido e nervoso, atirou todas as suas moedas de ouro para um dos quadros.
E logo começou a mesma atitude de expectativa, a mesma hipertensão."