março 29, 2024

A Louca da Casa - Rosa Montero

Título original: 
La Loca de la Casa
Ano da edição original: 2003
Autor: Rosa Montero
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Um romance? Um ensaio? Uma autobiografia? A Louca Da Casa é, em qualquer dos casos, a obra mais pessoal de Rosa Montero: uma viagem através do misterioso universo da fantasia, da criação artística e das recordações mais secretas da própria autora, que neste livro empreende uma viagem ao mais profundo do seu ser através de um jogo narrativo pleno de surpresas, onde literatura e vida se misturam num cocktail afrodisíaco de biografias alheias e de autobiografia romanceada. E assim descobrimos, por exemplo, que Goethe adulava os poderosos, que Tolstoi era um energúmero, que Rosa, ela própria, em criança, se julgava anã, e que, com vinte e três anos, manteve um extravagante e arrebatador romance com um ator famoso. Todavia, não devemos fiar-nos por completo em tudo o que a autora conta sobre si mesma: as recordações não são sempre o parecem."

A Louca da Casa é um livro sobre escritores e sobre o processo da escrita, a imaginação e a criatividade mas, acima de tudo, fala sobre a loucura e as perturbações mentais que, muitas vezes, convivem com a genialidade dos grandes escritores. É um livro pequeno, mas está cheio de histórias e de curiosidades sobre alguns escritores bem nossos conhecidos, como Herman Melville ou Rudyard Kipling.

Rosa Montero, ao mesmo tempo que parece ensaiar uma autobiografia, envolve-nos, de forma ardilosa, em factos e em histórias verdadeiras sobre outros escritores e, no que lhe diz respeito a ela, estamos até ao fim, na dúvida sobre a veracidade do que conta sobre si própria.

Gosto da escrita de Rosa Montero. É limpa, clara, despretensiosa e bem-humorada. Não perde muito tempo com frivolidades, sem deixar de, no entanto, nos fazer sentir próximos dela e do que conta.
Acho curioso que nenhum dos livros que já li dela sejam estereotipados, ela parece conseguir escrever sobre qualquer coisa, qualquer tema, sendo que, a única constante é a qualidade.  

Gostei muito e recomendo sem qualquer reservas. Rosa Montero é uma escritora a não perder. Se nunca leram, experimentem, sem medos.

Excerto (pág. 26)
"Os romancistas, escrevedores incontinentes, disparam sem cessar palavras contra a morte, como arqueiros empoleirados nas ameias de um castelo em ruínas. Mas o tempo é um dragão de pele impenetrável que tudo devora. Ninguém se lembrará da maior parte de nós dentro de alguns séculos, para todos os efeitos será como se nunca tivéssemos existido. O esquecimento total de quem nos precedeu é um manto pesado, é a derrota com que nascemos e em direção à qual nos dirigimos. É o nosso pecado original."

março 26, 2024

[Ebook] Gente Ansiosa - Fredrik Backman

Título original: Folk Med Angest
Ano da edição original: 2019
Autor: Fredrik Backman
Tradução: Elsa T. S. Vieira
Editora: Porto Editora (ISBN: 978-972-0-67364-0)

"Visitar um apartamento que está à venda não costuma redundar numa situação de perigo. A menos que seja antevéspera de Ano Novo, e um ladrão inexperiente tenha decidido assaltar um banco onde não há dinheiro. Quando assim é, torna-se inevitável que não haja sequer um plano de fuga, e se acabe com uma data de reféns acidentais.
Felizmente, podemos confiar na pronta intervenção das autoridades. A menos que os dois polícias responsáveis pelo caso não se entendam nem saibam o que fazer.
Ainda assim, acreditamos que tudo correrá bem, em particular se os reféns permanecerem calmos. A menos que sejam os reféns mais idiotas de todos os tempos: uma analista bancária com ideias suicidas, uma adorável velhinha com motivações pouco transparentes, um casal reformado com uma paixão enorme pelo IKEA, duas recém-casadas, prestes a serem mães, que andam sempre às turras, uma agente imobiliária com entusiasmo a mais e talento a menos, e uma pessoa vestida de coelho.
Com um sentido de humor excecional, que cativou milhões de leitores em todo o mundo, e personagens tão imperfeitas quanto tocantes, Fredrik Backman volta a surpreender com esta história sobre gente idiota e ansiosa e os laços invisíveis que (n)os unem."

De regresso a Fredrik Backman e às suas personagens estranhas, inadaptadas e inesquecíveis. É o regresso às histórias reais e ao mesmo tempo tão fora do normal que me fazem sentir, sempre um pouco estranha. :)

Gente Ansiosa, como o título acaba por indicar, fala sobre ansiedade.
Ansiedade por sermos adultos, por termos  responsabilidades e sentirmos que deveríamos saber todas as respostas para todas as perguntas. 
Ansiedade porque vivemos com culpa. Culpa porque as nossas ações, mais ou menos inconscientes, provocam reações nos outros, reações essas, que nem sempre são as que esperávamos.
Ansiedade porque queremos ajudar a pessoa que está ao nosso lado, que sempre esteve ao nosso lado, e não sabemos como fazê-lo sem que o outro se sinta diminuído.
Ansiedade porque um pai não sabe como falar com o filho e o filho não sabe como lidar com o pai. Ansiedade porque nem um nem o outro sabem como avançar depois da morte da pessoa que os mantinha unidos.
Ansiedade porque o mundo, por vezes, parece avançar a uma velocidade vertiginosa e temos medo de não conseguir acompanhar e de perdermos o comboio.
Ansiedade porque a vida é difícil e a relação com os outros é complexa e nem todos viemos equipados com as mesmas ferramentas. Viemos de sítios diferentes, vivemos coisas diferentes, fomos moldados por muitas mãos diferentes.
Ansiedades que, no limite, podem levar ao suicídio.

Tudo isto numa história que começa com uma tentativa de assalto a um banco, que não corre como o esperado e, com um grupo de pessoas presas num apartamento à venda e, que não se conhecem de lado nenhum.
Estão lançados os dados para mais uma viagem desconcertante, intrigante, divertida, angustiante mas, acima de tudo, uma viagem onde ninguém está sozinho. Aos livros de Fredrik Backman não se aplica o ditado ou expressão: "Quando pensas que bateste no fundo descobres que existe uma cave" , porque, nas histórias de Fredrik Backman, quando se pensa que bateram no fundo, descobrem que estão rodeados de gente boa e, juntos encontram uma pequena janela por onde podem sair e começar a subir.

Embora estranhe sempre a escrita simples e o sentido de humor quase infantil de Fredrik Backman, a verdade é que acabo sempre por gostar muito das histórias dele e da forma como consegue que as personagens que cria sejam tão vivas e reais e irreais ao mesmo tempo.
 
Confesso que tenho partido para os livros dele com esperança de encontrar neles Ove ou o encanto que encontrei em Um Homem Chamado Ove
Ainda não foi desta que Ove foi destronado mas, foi uma boa leitura, com personagens cativantes e uma história bonita com a qual, cada um de nós, facilmente se consegue relacionar.

Recomendo sem qualquer hesitação. 

Boas leituras!

Excerto:
"Esta história é sobre muitas coisas, mas acima de tudo é sobre idiotas. Assim, é preciso dizer desde já que é sempre muito fácil declarar que os outros são idiotas, mas apenas se esquecermos como é difícil sermos humanos. Em particular se tivermos alguém por quem tentamos ser humanos razoavelmente bons.
Porque, hoje em dia, é preciso lidar com uma quantidade inacreditável de coisas. Temos de ter um emprego, um sítio para viver e uma família, e temos de pagar impostos e ter roupa interior lavada e saber de cor o raio éa password do Wi-Fi. Alguns de nós nunca conseguem controlar o caos por completo, por isso as nossas vidas vão simplesmente andando, e o mundo vai girando pelo espaço, a milhões de quilómetros por hora, enquanto saltitamos na sua superfície como peúgas perdidas."

março 10, 2024

O Acontecimento - Annie Ernaux

Título original: 
L'événement
Ano da edição original: 2000
Autor: Annie Ernaux
Tradução: Maria Etelvina Santos
Editora: Livros do Brasil

"Uma jovem de 23 anos, estudante universitária brilhante, descobre que está grávida. Tomada pela vergonha, consciente de que aquela gravidez representará um falhanço social para si e para a sua família, sabe que não poderá ter aquela criança. Mas, na França de 1963, o aborto é ilegal e não existe ninguém a quem possa acorrer. Quarenta anos mais tarde, as memórias daquele acontecimento continuam presentes, num trauma impossível de ultrapassar e cujas sombras se estendem para além da história individual. Escrito com uma clareza acutilante, sem artifícios, este é um romance poderoso sobre sofrimento, justiça e a condição feminina. Escrito por Annie Ernaux em 1999, foi adaptado ao cinema em 2021 por Audrey Diwan, num filme vencedor do Leão de Ouro em Veneza. "

Primeira incursão pela, recentemente, Nobelizada Annie Ernaux e, sem grandes expectativas, confesso.
 
O Acontecimento é um livro duro, onde é relatada a saga dantesca, levada a cabo por uma jovem de 23 anos que, perante a confirmação de uma gravidez não planeada e não desejada, encontra todo o tipo de obstáculos que a impedem de fazer um aborto seguro.
Estamos em 1963, em França e, todos à sua volta encolhem os ombros, os médicos, todos homens, não a ajudam, talvez por medo de represálias, mas também porque acham que é dever das mulheres arcarem com essa responsabilidade. Os colegas e amigos também não lhe estendem a mão e não a acompanham nesta jornada.
Ela, envergonhada pelo que lhe aconteceu, não conta aos pais que está grávida e desespera por tirar de dentro dela algo que não deseja, que vê como sendo um acontecimento que será um retrocesso na sua vida.
Sozinha, em busca de uma solução, bate a todas a portas de que se lembra e, naturalmente, acaba por encontrar uma saída, igual à de tantas outras mulheres que se viram, e vêm, obrigadas a fazê-lo de forma clandestina e pouco segura.

Tinha de ser assim? Hoje, mas também em 1963, sabemos que não, não tinha de ser assim. Hoje em alguns sítios do mundo já não tem de ser assim mas, na maioria do países, a mulher tem de carregar sozinha as consequências da decisão de querer fazer um aborto, seja porque motivo for, correndo todo o tipo de riscos, de saúde e legais.

As liberdades e direitos de todos nós nunca estão garantidos, acho que nos vamos apercebendo cada vez mais disso e, num mundo que parece estar cada vez mais saudosista de tempos cinzentos e bolorentos, os direitos das mulheres serão os primeiros a ser revisitados. Não tenho qualquer dúvida disso. Por isso, no que estiver ao nosso alcance, vamos todos contribuir para uma sociedade mais empática e justa. Pode ser? 

Sobre o livro, :) não tenho a certeza se gostei da escrita ou da forma como relata os acontecimentos. É muito direta e muito assertiva e como o tema é difícil, parece que lhe falta sensibilidade. Mas, por outro lado pode ser que a ideia seja mesmo essa. Há, ainda, uma repulsa natural pelo que é relatado e que me deixou de certa forma desconfortável.
Posto isto, acho que gostei mas ao mesmo tempo não gostei. Vou ter de ler mais livros dela. Tenho a sensação de que é uma daquelas que primeiro se estranha e depois se entranha. 

Recomendo. 

Boas leituras. 

Excerto (pág. 33)
"As raparigas como eu estragavam os dias aos médicos. Sem dinheiro e sem contactos - de outro modo não iriam, às cegas, desembocar neles -, elas traziam-lhes à memória a lei que os poderia mandar para a prisão e proibi-los de exercer para o resto da vida. Não ousavam dizer a verdade, essa de que não iriam arriscar perder tudo em nome dos belos olhos de uma rapariguinha estúpida ao ponto de ser deixar engravidar. A não ser que, sinceramente, preferissem morrer a infringir uma lei que deixava morrer as mulheres. Mas todos deveriam pensar que, ainda que as impedissem de abortar, elas acabariam por arranjar maneira de o fazer. Em face de uma carreira destruída, uma agulha de tricô na vagina não significava grande coisa. "