Ano da edição original: 2018
Autor: Joana Bértholo
Editora: Editorial Caminho
"Numa sociedade que se fundiu com o mercado - tudo se compra, tudo se vende - começamos a pagar pelas palavras.
A estranheza inicial dá lugar ao entusiasmo.
Afinal, como é que falar podia permanecer gratuito? Há seis mil idiomas no mundo.
Seis mil formas diferentes de dizer ecologia, e tão pouca ecologia.
Seis mil formas diferentes de dizer paz, e tão pouca paz.
Seis mil formas diferentes de dizer juntos, e cada um por si."
E se a linguagem e as palavras passassem a ser pagas? Primeiro são só algumas palavras e as pessoas, de uma forma geral, não se opõem. Depois a lista de palavras que são pagas começa a crescer e comunicar começa a ser, quase um luxo.
No início parece que é para que algumas palavras ou idiomas não morram, para que o vocabulário permaneça rico. É para estudar a linguagem, perceber o que nos distingue como seres humanos. No fim, acaba por ser, como é natural, uma questão de poder e dinheiro.
Gostei da escrita, muito fluída e oral. Gostei da história e embora não seja um livro muito fácil de ler, há imensas coisas que fogem ao meu entendimento, a verdade é que se lê muito bem.
Não sendo um livro fácil de ler, também não é um livro fácil de comentar. Tem camadas e mais camadas. :)
Gostei muito e recomendo. Joana Bértholo é para manter debaixo de olho.
Boas leituras!
Excerto:
"O anúncio foi feito esta manhã, em Dublin, na sede da multinacional Gerez: As palavras BERÇO, ENTRETANTO e INGREDIENTE estão entre as primeiras cinquenta palavras sujeitas ao período de testes do Plano de Revalorização da Linguagem. A Gerez, empresa mediática graças à recente polémica em torno da privatização do genoma humano, é também célebre pela sua directora-executiva, Darla Walsh, que esteve mais de três horas a responder à imprensa internacional. O tema que suscitou mais perguntas foi a taxação dos termos. Walsh explicou: «Cada palavra tem um sentido e um peso diferentes, e por isso o valor de cada uma delas varia, como as pessoas vão ter oportunidade de experienciar nos próximos meses. O objectivo é estarmos todos mais conscientes do que dizemos, mais atentos ao modo como falamos. Tenho a certeza de que, a partir de agora, as pessoas vão deixar de falar por falar. Isso vai necessariamente enriquecer-nos, às nossas relações e à nossa vida enquanto comunidade.»
A apresentação do projecto incluiu simuladores que os próprios jornalistas puderam testar, e assim compreender o dispositivo que permitirá, doravante, a taxação do que é dito. Durante a conferência de imprensa, Walsh partilhou as motivações pessoais para este ambicioso projecto: «Falo onze idiomas e sou fascinada por línguas. Quero encontrar a sua raiz universal, perceber como tudo começou, como funciona... Com a tecnologia disponível, isso é possível. Estamos a poucos passos de conseguir computar todas as emissões humanas e, quando o fizermos, vamos poder aprender coisas inimagináveis. Uma nova era, uma transição só comparável à da roda, do fogo, ou à introdução da linguagem escrita.»
Eloquente e rigorosa, Walsh falou sobre como a linguagem faz de nós humanos, a ligação entre as nossas identidades culturais e os diferentes idiomas, e o quão pouco sabemos sobre as suas origens. Referiu-se também à actual desvalorização da palavra, a uma cultura de opinião em que já não se distingue um facto de uma «pós-verdade», na qual «o jornalismo, a literatura e as relações interpessoais perderam o norte». Reforçou a ideia de que «somos gratuitos a falar» e anunciou como missão da Gerez e do seu Plano de Revalorização da Linguagem rectificar isso.
Segundo nos foi possível apurar, às listas internacionais, ditadas pela Gerez/CCM, cada Mercado irá ter autonomia para emitir as suas próprias listas, consoante o idioma e a cultura. O Mercado do Português©, por exemplo, revalorizará, na Primeira Vaga, as palavras «peúga» e «cimbalino», enquanto o Mercado do Português do Brasil© reconhecerá termos como «grampeador» e «bunda»."