novembro 23, 2024

Coração Impaciente - Stefan Zweig

Título original: Ungeduld des Herzens
Ano da edição original: 1939
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Maria Henriques Osswald, F.I.L.
Editora: Livraria Civilização - Editora

"Stefan Zweig, mestre em psicologia, artista humaníssimo que constrói figuras vivas, palpitantes - obra de carne e nervos - enriqueceu a sua obra notabilíssima com um romance profundamente humano, em cujas páginas palpita a tragédia inigualável de uma rapariga riquíssima, que pode com o seu dinheiro comprar quanto a vida tem de belo para vender, mas não a perfeição física, pois é irremediavelmente uma pobre aleijada... nem o amor, pelo menos o amor-paixão tal como a sua alma vibrante ambiciona.
Só pode ser amada por caridade, pobre farrapo humano, cercado de fausto, só a mentira a rodeia, a mentira piedosa de uns, a mentira aduladora de outros, mas sempre como uma maldição, só a mentira a cerca: a mentira, a mentira...
Os caracteres deste romance são vincados com rara mestria. O homem que se deixa arrastar, sugestionar pela piedade e pela ternura de um pai amantíssimo que ambicionava dar à sua filha querida a felicidade, é fortemente traçado neste romance apaixonante e tão rico de psicologia humana.
Zweig, neste livro, ergue ainda mais alto se é possível, o seu nome de artista."

Um soldado que descobre o poder da caridade e começa a sentir-se invencível na sua bondade, vai descobrir da pior forma que as pessoas não precisam de caridade, precisam de amor, verdadeiro e genuíno, precisam de amizade desinteressada e honesta.
Um pai, rico, que tudo pode comprar, vive angustiado com a doença incapacitante da sua única e amada filha. A menina, quase uma mulher, foi perdendo, ao longo dos anos a capacidade de andar. Depende de uma cadeira de rodas e de muletas para se deslocar. É doce e tirana, compreensiva e cruel, tudo ao mesmo tempo. Generosa e egoísta, vive presa na dualidade entre o que é e consegue fazer, e aquilo que sabe que poderia ser e fazer se a doença não lhe tivesse batido à porta.

É na dinâmica que se cria entre o soldado solitário, que descobre a caridade, a menina entrevada, sedenta de amor e um pai, meio louco, que nada consegue fazer para que a filha seja feliz, que a trama de Coração Impaciente se vai desenrolando. 

Coração Impaciente é, entre outras coisas, uma história sobre piedade e sobre o facto de a caridade ter, por vezes, efeitos perversos para quem é alvo dela.
Mesmo quando achamos que estamos a fazer bem, não podemos descurar o outro e a forma como o outro está a receber aquilo que temos para oferecer. 

Enquanto fala de incapacidade física, de doenças desconhecidas e incuráveis fala, na verdade, de inseguranças e da enorme incapacidade que temos de viver confrontados com a imperfeição. Temos dificuldade em vermos o lado positivo de situações menos boas.

Coração Impaciente, é sobre desequilíbrio mental, violência psicológica, sacrifício, por vezes é sobre  amor, esperança e boa-vontade mas, essencialmente, acaba por ser sobre desespero, confusão e arrependimento. É um livro pesado? Nada disso, lê-se muito bem. 

Gosto muito da escrita de Stefan Zweig. Gosto das personagens que cria, das suas personalidades, complexas e pouco previsíveis. Consegue retratar muito bem como as relações humanas são complexas e frágeis. 

Gostei e só posso recomendar.

Boas leituras!


Excerto (pág.158):
"«Não sei e nunca saberei tudo o que prometi e afiancei a Kekesfalva nesse banco dos pobres. Assim como as minhas palavras embriagavam o seu ouvido ansioso, também a felicidade com que escutava me embriagava, e sentia o prazer de lhe prometer cada vez mais. Nenhum de nós  reparava nos relâmpagos que flamejavam em volta, nenhum de nós  ouvia o estalar ameaçador do trovão. Permanecíamos unidos; um falava, outro escutava e eu afirmava-lhe convicto, honestamente convicto: - «Sim, ela há-de sarar, muito breve, há-de sarar em absoluto». E de novo ele balbuciava: «Ah! Deus seja louvado!» Como era maravilhoso, contagioso, este êxtase, este delírio! Quem sabe quanto tempo ali teríamos permanecido sentados, se, de repente, não sobreviesse aquela rajada decisiva que sempre vem na vanguarda de uma tempestade, como que a abrir-lhe o caminho?! Curvavam-se as árvores com tanta violência, que os troncos estalavam, vergavam; dos castanheiros, sacudidos furiosamente, caía forte saraivada de projécteis e quase nos sufocou uma gigantesca nuvem de pó." 

novembro 04, 2024

[Ebook] Luanda, Lisboa, Paraíso - Djaimilia Pereira de Almeida

Título: Luanda, Lisboa, Paraíso
Ano da edição original: 2018
Autor: Djaimilia Pereira de Almeida
Editora: ´Companhia das Letras

"Chegados a Lisboa, Cartola e Aquiles descobrem-se pai e filho na desventura. Até que num vale emoldurado por um pinhal, nas margens da cidade mil vezes sonhada pelo velho Cartola, encontram abrigo e fazem um amigo. Será esta amizade capaz de os salvar?

«Se o entendimento entre duas almas não muda o mundo, nenhuma ínfima parte do mundo é exactamente a mesma depois de duas almas se entenderem.»

Luanda, Lisboa, Paraíso, o segundo romance de Djaimilia Pereira de Almeida, é o balanço tocante de três vidas obscuras, em que esperança e pessimismo, desperdício e redenção, surgem lado a lado."

Cartola e Aquiles, pai e filho, partem de Luanda para Lisboa para que Aquiles seja operado ao calcanhar que nasceu torto.
Chegados a Lisboa, o pai Cartola, apesar de achar que tinha tudo planeado, é surpreendido pela dimensão da cidade e pela indiferença das pessoas. Sente-se perdido e desorientado.
Depois a operação acaba por não correr tão bem como esperavam, o tempo vai passando e o regresso a Luanda parece cada vez mais distante.

Em Luanda deixaram Glória (mulher e mãe), doente, e Justina (filha e irmã). Em Luanda, Cartola era completamente dedicado a Glória. Em Lisboa sente pouca vontade de regressar a casa e, não é só por vergonha de as coisas não terem corrido como planeado. A verdade é que, apesar das dificuldades que sente em Lisboa não quer regressar para Glória e a sua doença.
 
Aquiles, adolescente, vê-se preso a uma deficiência que o atormenta, numa cidade que não conhece e que estranha, e a ter de cuidar do pai que parece estar, lentamente, a enlouquecer. Sente vergonha de Cartola por ser tão "estrangeiro" em Lisboa e, sente pena do pai.

É uma história triste que é, certamente, a história de muitos dos que chegam a Lisboa, sem ninguém que os receba, e que os ajude, acabam por ser engolidos pela cidade, empurrados para guetos, condenados à mera sobrevivência.

Gostei bastante da escrita, da história e das personagens e por isso só posso recomendar.
 
Voltarei, certamente a Djaimilia Pereira da Almeida

Boas leituras! 


Excerto:
"O rapaz sorriu. O pai pareceu-lhe jovem. Aquela era a sua segunda juventude. Continuava com a ilusão de que podia começar do princípio. A chuvada dera-lhe uma esperança pasmada, infantil. Não podia impedi-lo de se atirar nos braços de Lisboa e de se magoar. Mas ninguém tinha ensinado a Aquiles como se lidava com um adulto que recomeça, o que fazer diante dele. Ao olhar para a cara do pai, os olhos de Cartola atingiram o filho com uma ingenuidade que o assustou. Parecia ter regredido décadas e ser agora mais novo do que ele. Um horizonte reabria-se para Cartola numa imensidão ponte Aquiles não cabia. O homem que tinha à sua frente não era simplesmente um velho, como começara por lhe parecer no avião, mas um jovem em início de vida, um velho doente, nascido de novo. Aquiles abraçou o pai para o aquecer. Tremia de medo. «Poça, faz frio em Lisboa, Papá.» O pai, ensopado, estava quente por dentro. Tinha os lábios secos contornados num sorriso inocente. Quase dava para ver na cara dele o menino que um dia tinha sido. Aquiles soube que estava sozinho. Ele era o coxo e a bengala. "

novembro 02, 2024

Manhã e Noite - Jon Fosse

Título original: Morgon og Kveld
Ano da edição original: 2000
Autor: Jon Fosse
Tradução: Manuel Alberto Vieira
Editora: Cavalo de Ferro

"Um menino está prestes a nascer - chamar-se-á Johannes como o avô e será pescador como o pai. Uma vida boa, é esse o desejo de quem o traz ao mundo, embora este seja um mundo duro, ruim e cruel. Um homem, velho e sozinho, morre - chama-se Johannes e foi pescador.
É o seu melhor amigo que o vem buscar rumo a esse destino onde não há corpos nem palavras, apenas tudo aquilo que se ama. Antes do regresso definitivo ao nada, Johannes revisita o museu da sua vida, longa, simples e quotidiana, confrontando-se paulatinamente com a morte num constante entrelaçamento de real e alucinação, passado e presente.
Manhã e Noite é um romance sobre o maravilhoso sonho que é viver e a aceitação do ciclo natural das coisas. Numa linguagem poética e elíptica, inovadora e despojada, Jon Fosse condensa toda uma existência em dois momentos-chave, urdindo uma reflexão encantatória sobre o significado da vida, Deus e a morte."

É um pequeno livro, em tamanho, mas que diz muito. A escrita embala, tem uma cadência que nos leva a compreender o que sentem as personagens. Sentimos a confusão, a alegria, o medo, o entusiasmo. Parece que estamos dentro da cabeça deles ou que aqueles pensamentos podem até ser nossos. 

Pensei que fosse ter dificuldade em acompanhar a história, porque a forma como o livro está escrito, os parágrafos, as repetições, podiam ter sido motivo para me perder mas a verdade é que a linguagem é tão simples, como é Johannes e todos os que fizeram parte da sua vida e, da sua morte e, por isso, a história quase que baila dentro de nós
E é disto que se trata, do nascimento, da vida e da morte de Johannes. Da naturalidade e inevitabilidade que é subjacente a tudo isto. Nasce-se, vive-se, o melhor que conseguirmos e, depois morremos. Deixamos para trás as pessoas que nos preencheram a vida, que amámos, com quem rimos e chorámos. Encontramos os que partiram antes de nós e que, agora nos ajudam para que esta transição seja o mais pacífica possível, sem dor, confusão, medo ou revolta.

A parte final, em que se insinua uma espécie de vida depois da morte, uma visão mais religiosa da passagem para uma outra dimensão, porque me diz pouco, acabou por me estragar um pouco o resto do livro. Nada contra, até porque nunca se menciona Deus ou o paraíso ou algo semelhante mas, parece que me arrancou à pura ficção e me levou para os bancos da igreja. :)

Gostei desta primeira experiência com Jon Fosse. Gostei especialmente da linguagem e da forma como está escrito. Voltarei a ele, de certeza.

Boas leituras!

Excerto (pág. 28):

"(...) por aquela altura já deveria ter-se levantado, pensou, não podia ficar mais tempo deitado, e além disso ansiava por um cigarro, que bem me saberia um cigarro agora, pensa Johannes, e faz frio no quarto dele, na divisão principal também, mas na cozinha a lenha do figão esteve a arder toda a noite, de maneira que devia ir até lá, enrolar um cigarro, pôr a cafeteira ao lume e depois preparar qualquer coisa para comer, uma fatia de pão com queijo caramelizado, mais um dia igual a todos os outros dias, pensa Johannes. Mas e depois? O que faria ele depois? Talvez caminhar para oeste em direção à Enseada, para ver como estão as coisas por lá? e se o tempo não estiver especialmente mau talvez possa fazer-se à água, pescar um pouco, sim, talvez não seja má ideia, pensa Johannes, e logo lhe ocorre que acaba de pensar o que pensa todas as manhãs, todas as manhãs sem exceção tem exatamente o mesmo pensamento, pensa Johannes, mas que outro pensamento pode ele ter? que mais pode ele fazer senão caminhar para oeste em direção à Enseada?, pensa Johannes, e pensa também que não há razão para se sentir tão acabrunhado, não é assim tão terrível, ainda tem um tecto sobre a cabeça, calor bastante com se aquecer, e tem filhos, são bons filhos, os que ele tem, e a filha mais nova, Signe, não vive muito longe e visita-o quase todos os dias, é verdade, (...)"