janeiro 12, 2025

Maria Judite de Carvalho - Obras Completas Vol lI

Título: Obras Completas Maria Judite de Carvalho vol.II - Paisagem Sem Barcos | Os Armários Vazios | O Seu Amor por Etel
Ano da edição original: 1963 / 1967
Autor: Maria Judite de Carvalho
Editora: Minotauro

A presente coleção reúne a obra completa de Maria Judite de Carvalho, considerada uma das escritoras mais marcantes da literatura portuguesa do século XX. Herdeira do existencialismo e do nouveau roman, a sua voz permanece intemporal, tratando com mestria e um sentido de humor único temas fundamentais, como a solidão da vida na cidade e a angústia e o desespero espelhados no seu quotidiano anónimo. Observadora exímia, as suas personagens revelam o ritmo fervilhante de uma vida avassalada por multidões, mas sempre reclusas em si mesmas, separadas por um monólogo da alma infinito.

O segundo volume reúne duas coletâneas de contos - Paisagem sem Barcos (1963) e O seu Amor por Etel (1967) - e uma novela - Os Armários Vazios (1966).

Mais um volume a não perder da Maria Judite de Carvalho. Acho que será mais eficaz se vos deixar excertos de alguns dos textos que compõem este segundo volume das Obras Completas desta escritora surpreendente.

Leiam que não se vão arrepender.

Boas leituras!

Paisagem Sem Barcos (pág. 31)
"Quando deixara ele de ser ele? Perdera-se pelo caminho e só ficara como recordação para a posteridade a sua imutável efigie em cera. Uma figura falante, era verdade, mas porque não seriam falantes as figuras de cera, desde que as palavras que dissessem fossem de cera também? Havia qualquer coisa nele... Não sabia bem explicar; assim de repente nunca soube explicar coisa nenhuma, nem mesmo a sim própria, em silêncio. Era preciso observá-lo com atenção, deitar fora toda a subjetividade, estudá-lo por alguns momentos com um olhar frio crítico. O olhar aquoso que-fora-azul por detrás dos óculos de tartaruga, o nariz direito, a boca grande e delgada, quase sem lábios, de cantos profundos, o queixo largo, as mãos perfeitas, o fato de bom corte. Que mais? Não muito, certamente, porque ele se fora transformando com o tempo numa efigie, a sua. Lá dentro, numa espécie de nife, havia várias camadas secretas, sobrepostas, bem escondidas. Jô tinha-as conhecido, mas não sabia se algumas delas ainda existiam ou se haviam sido asfixiadas pela carapaça exterior. Não sabia e nunca viria a sabê-lo, pensou. Era tarde demais."

Anica nesse tempo (pág. 99)
"O major ria ainda, sem bem saber de quê. Ria por mimetismo ou por fraqueza. Por receio de não colaborar. «Sou um fraco», pensou melancolicamente. «Sempre o fui. Que teria sido de mim numa guerra? Ou num país ocupado? Que teria feito se fosse necessário fazer qualquer coisa, sair do rebanho?» Estava farto, ansioso por se encontrar sozinho em casa. Aquilo acontecia-lhe quase sempre em sociedade. Ter a visão nítida de que à sua volta todos representavam um papel importante ou secundário, mas de antemão escolhido, e só ele desmanchava o conjunto passeando por entre os artistas, sem maquilhagem nem trajo adequado, nem frase para dizer no momento próprio, só ele estragava o espetáculo como um dia, em menino, quando durante a festa do colégio atravessara, a correr e soltando gritos agudos de índio sioux, o palco onde uma rapariguinha de cara de lua declamava com trémulos na voz: «Meus amigos e meus parentes, eu sou uma pobre viúva a quem Deus privou de toda a força e amparo neste mundo.» Nesse dia, porém, tinham-no aplaudido - fora tão inesperado - enquanto a menina, embrião de atriz, tinha uma violenta crise de choro. Agora não lhe davam palmas, não. Achavam-no certamente impopular, criticavam-no talvez quando voltavas as costas, falavam, era natural, de Luísa e talvez «a compreendessem»."

Os Armários Vazios (pág. 139)
"Foi um dia de Primavera que começou e acabou como todos os outros, pelo menos aparentemente, diria ela, ou, melhor, era natural que o pensasse; nunca foi pessoa de muitas falas. Dizia o necessário, mas reduzido ao mínimo indispensável, ou então um necessário que depressa se cansava, se detinha a meio caminho, como se ela se desse subitamente conta de que não valia a pena prosseguir, porque isso era um esforço inútil. Ficava então quieta, sem gestos, hesitante à beira das reticências como alguém à beira de água de inverno, e nesses momentos o seu olhar perdia todo o brilho, era como se um mata-borrão o houvesse absorvido, talvez ainda seja assim, não sei, nunca mais a vi. Durante muito tempo não consegui perceber que esses desmaios, porque o eram, a conduziam invariavelmente ao mesmo lugar, ou, melhor, à mesma pessoa, à mesma imagem danificada de pessoa, porque, como já disse, não era mulher que se confessasse. As palavras não lhe serviam para explicar o seu pensamento, aperfeiçoando-o ou disfarçando-o, como é mais ou menos hábito de toda a gente. Só as utilizava, e em última instância, para dizer o que era urgente."

O Seu Amor por Etel (pág. 247)
"Nos dias em que se travavam esses diálogos mais ou menos tontos, mas para ele tão preciosos, regressava sempre a casa calado e amargo após o entusiasmo, e com uma grande vontade de morrer. Eram os dias em que, fechado à chave no seu quarto modesto, passava em revista, estudando-lhes os prós e os contras - primeiro uns, depois os outros -, todas as possibilidades de pôr termo àquela existência  morna e sem interesse onde nunca haveria Etel: os gás, os pulsos cortados com uma lâmina, o tubo da Aspirina. Pensava também, minuciosamente , recitando a meia voz algumas frases mais significativas, na carta que escreveria a Etel nos últimos instantes, confessando-lhe o seu desesperado amor. Estacava sempre, porém, a boa distância do precipício. Tentava-o, afinal de contas, a vida ainda não vivida e o desejo de tornar a ver Etel, de falar novamente com ela, mesmo de assuntos superficiais e dolorosos, que nunca conduziriam a nada.
Em dias mais serenos, sobretudo quando não a encontrara, conseguia encarar, quase friamente e com a objetividade necessária, o seu caso, e mesmo troçar um pouco de si próprio. Como podia Etel amá-lo?, pensava nesses dias. Era feio, pobre, de baixa condição. Nunca fora excecional em coisa alguma, e na escola comercial ia passando à justa. Ora não havia na cidade, por mais que pensasse, ninguém que merecesse Etel. Se ela gostasse dele, não seria quem era. Porque não afastar então esse estúpido sonho que tomara posse do seu corpo e do seu coração?"

janeiro 02, 2025

Deuses Americanos - Neil Gaiman

Título original: American Gods
Ano da edição original: 2001
Autor: Neil Gaiman
Tradução: Fátima Andrade
Editora: Editorial Presença

"A poucos dias de sair da prisão, sombra quer apenas desfrutar de alguma tranquilidade junto da sua mulher, Laura. o destino, porém, reserva-lhe outros planos.
Quando recebe a notícia de que Laura morreu num acidente de viação, Sombra não tem outra alternativa senão aceitar o trabalho que um desconhecido, Sr. Quarta-Feira, lhe oferece. Mas cedo percebe que o trabalho e o próprio Quarta-feira pouco têm em comum, já que o ultimo é a encarnação de um dos deuses antigos que se encontram em vias de extinção por estarem a ser ultrapassados por ídolos modernos.
Sombra e Quarta-Feira têm assim a missão de reunir o maior número de divindades para se prepararem para o conflito iminente que paira no horizonte, mas esperam-nos inúmeras surpresas insólitas…
Bestseller distinguido com diversos prémios e adaptado com enorme êxito à televisão, Deuses Americanos é uma Aventura onde o mágico e o mundano, o mito e o real caminham lado a lado, levando-nos numa viagem repleta de humor ao extraordinário potencial da imaginação humana."

Confesso a minha dificuldade em escrever sobre este livro porque me parece que vai ser tudo superficial. Tenho a impressão de que há camadas e camadas que me passaram ao lado e, para dizer a verdade, também não tenho pretensões de colocar a descoberto. Por isso, de uma forma muito leve e descontraída, é um livro sobre deuses e a sua luta por se manterem relevantes na vida dos humanos. Deuses antigos, que os humanos levaram com eles na suas migrações, em particular para os Estados Unidos da América e que, com o tempo foram esquecendo. 
Deixaram de lhes prestar homenagem, de os adorar e de oferecerem algo em sacrifício. Os Deuses, sem grande surpresa, são retratados como seres egocêntricos, pouco benevolentes e capazes de tudo para sobreviver a estes tempos modernos.

O livro lê-se muito bem. Tem uma carrada de referências mitológicas, às diversas divindades e rituais mas, como está tudo enquadrado de uma forma mais real, porque estes deuses circulam entre nós com forma humana, não se sente esse peso. 
Isto, envolvido na história dos Estados Unidos, com muito sentido de humor à mistura e uma boa escrita, tornaram este livro, primeiro, uma surpresa, e depois um prazer.

Gostei da imaginação, agarrada à realidade, e da forma como vai desenrolando a história e nos vai conseguindo manter envolvidos e entretidos. Gostei muito, tanto que já cá tenho mais dois do Neil Gaiman para ler um dia destes - Mitologia Nórdica e Os Filhos de Anansi.

Recomendo sem qualquer hesitação. Acho que não perdem nada em experimentar.

Boas leituras!

Excerto (pág. 32):
"O homem abriu os olhos. Havia algo de estranho neles, pensou Sombra. Um era de um cinzento mais escuro do que o outro. O desconhecido voltou-se para ele:
- A propósito, lamento as notícias sobre a tua mulher, Sombra. Foi uma grande perda.
Nesse momento, Sombra quase lhe bateu. Mas, em vez disso, respirou fundo. («É como te digo, não irrites as cabras dos aeroportos», dizia a voz de Johnnie Larch algures na sua memória, «ou vens malhar com os ossos outra vez cá dentro enquanto o diabo esfrega um olho.») Contou até cinco.
- Eu também lamento - retorquiu.
O homem abanou a cabeça:
- Se ao menos pudesse ter sido de outro modo - comentou, com um suspiro.
- Morreu num acidente de automóvel - disse Sombra - Há maneiras piores de se morrer.
O homem abanou lentamente a cabeça. Por um instante, Sombra teve a sensação de que ele era insubstancial, como se o avião se tivesse tornado subitamente mais real, enquanto o seu vizinho perdia realidade.
- Sombra - disse o homem. - Isto não é uma brincadeira. Não é um truque. Posso pagar-te mais do que aquilo que ganharias em qualquer outro emprego. És um ex-recluso. Não haverá propriamente uma quantidade de gente a acotovelar-se para te contratar.
- Senhor Como-Raio-Se-Chama - disse Sombra, numa voz apenas audível acima do zumbido dos motores -, nem por todo o dinheiro do mundo.
O sorriso do homem abriu-se ainda mais. Sombra deu por si a recordar um documentário sobre chimpanzés. Segundo esse documentário, quando os chimpanzés e outros símios sorriem, fazem-no apenas para mostrarem os dentes, num esgar de ódio, agressividade ou medo. O sorriso de um chimpanzé é uma ameaça.
- Vem trabalhar para mim. É possível que haja alguns riscos, bem entendido, mas, se sobreviveres, poderás ter tudo o que quiseres. Poderás ser o próximo rei da América. Como vês, quem irá +agar-te tão bem? Heim?
- Quem é você? - inquiriu Sombra.
- Ah, sim. A era da informação... minha senhora, pode trazer-me outro copo de Jack Daniel's? Não abuse do gelo... não, claro que nunca houve outro tipo de era. Informação e conhecimento: duas divisas que nunca passaram de moda.
- Perguntei-lhe quem é.
- Vejamos... Bem, tendo em conta que não há dúvidas de que hoje é o meu dia, porque não me chamas Quarta-Feira? Senhor Quarta-Feira. Embora, considerando o tempo que está, até podia ser quinta-feira, heim?"