agosto 24, 2011

No Coração desta Terra - J. M. Coetzee

Título original: In The Heart of the Country
Ano da edição original: 1977
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: Maria João Delgado
Editora: Publicações Dom Quixote (Colecção Autor Nobel - Revista Sábado)

"Numa fazenda remota da África do Sul, a protagonista deste romance lança um olhar sobre a vida de onde foi excluída. Ignorada por um pai duro, desprezada e temida pelos criados, é uma mulher amarga e inteligente, cuja docilidade aparente esconde uma vontade desesperada de não se tornar «um dos esquecidos da história». Quando o pai arranja uma amante africana, essa vontade vai precipitar uma vingança que lembra uma reacção química entre o colonizador e o colonizado e entre os anseios europeus e a vastidão e solidão de África. No Coração desta Terra é uma obra de uma força irresistível. J. M. Coetzee transformou, com uma enorme segurança e uma visão penetrante, um romance de uma família num espelho da experiência colonial."

Gostei bastante deste livro. É um livro intenso, com uma personagem muitíssimo bem construída e das mais interessantes que já encontrei na literatura. Magda é uma mulher, de uma idade indefinida, por vezes parece um rapariga, outras aparenta ser uma mulher mais velha. A maioria das vezes a impressão que passa é que Magda nunca foi criança pois a infância é uma lembrança confusa e perdida no meio de todas a histórias que esta foi inventando para tornar a vida menos dolorosa.
Magda vive com o pai e alguns criados numa fazenda isolada do resto do mundo. Cresceu no deserto total, quer em termos de paisagem quer em termos de afectos. O pai é um homem duro que a ignorava, dispensando-lhe menos atenção do que aquela que dedicava aos criados e aos trabalhos na fazenda. Ignorada pelo pai, temida e desprezada pelos criados, é uma mulher que toda a vida viveu aprisionada a uma vida triste, rotineira e, sem qualquer contacto com o mundo civilizado, viveu toda a vida sozinha. Torna-se, por isso, uma pessoa rancorosa, amargurada e cheia de ódio, um ódio imensurável por tudo e por todos os que a rodeiam, especialmente por ela própria. Ao mesmo tempo sente-se nela uma vontade enorme de viver, de ser feliz e de amar e ser amada. Sente-se nela uma vontade imensa de sentir, o que quer que seja... apenas sentir, algo para além do ódio e do desespero.

Todo o livro é sofrimento, um sofrimento atroz que desespera, porque Magda, enredada numa relação estranha com o pai, praticamente a única pessoa que conhece, oscila entre o respeito, o ciúme e o ódio irracional, quando lhe imagina as mais diversas mortes, todas elas perpetradas por ela. Magda é claramente desequilibrada, doente, o que torna muitas vezes a narrativa confusa, porque é muito difícil de distinguir o que realmente aconteceu daquilo que é fruto da sua prodigiosa imaginação. Mais difícil ainda se torna distinguir as duas realidades quando o discurso de Magda é tudo menos incoerente é, pelo contrário, extremamente lúcido e articulado, pelo que conseguir descortinar o que realmente se passou na vida desta mulher é praticamente impossível. Tanto pode ter assassinado o pai logo nas primeiras páginas e, tudo o que se passou a partir daí não ser mais do que a alucinação de uma louca, como este pode ter sido morto quando decidiu levar uma escrava para a sua cama ou, pode até ser que o pai tenha morrido de velhice, tendo Magda cuidado dele até que a morte decidiu levar um deles.

A única coisa certa neste livro é a solidão extrema de Magda que esta tenta atenuar com uma imaginação descontrolada, vivendo uma vida e idealizando cenários, acontecimentos e conversas, que apenas existem na sua cabeça e, que acabam por levá-la à loucura. Uma loucura consciente, mas um loucura mesmo assim.

Gostei bastante deste livro, principalmente porque gostei muito da personagem da Magda. É ela alma de todo o livro, que consegue manter o interesse, quase exclusivamente recorrendo a conversas com ela própria, expondo-se completamente perante o leitor, ao não esconder os seus desejos mais secretos. É uma personagem desarmante e que dificilmente vou esquecer.

Gostei também da escrita de Coetzee, que conseguiu manter-me interessada na leitura de um livro cuja estrutura narrativa se assemelha muito à de um diário. O livro não tem capítulos e sim notas, registos numerados de 1 a 266, ao longo das quais Magda vai arrumando a sua história. Não sou de diários e esta estrutura deixou-me instantaneamente de pé atrás mas, mérito para o escritor (e este foi o seu primeiro livro!), foi por pouco tempo porque a leitura foi, em certas alturas, quase compulsiva.

Recomendo, como é óbvio! :)

Excerto:
"A minha raiva fica tolhida entre quatro paredes. Fazendo ricochete nas placas de estuque, nos azulejos, nas tábuas e no papel de parede, as minha explosões de raiva são-me devolvidas, colam-se à minha pele, impregnam-se na minha pele. Embora eu possa parecer uma máquina com dois polegares móveis que faz trabalhos domésticos, na realidade sou uma esfera que gira com uma energia violenta, pronta a explodir mal algo me toque. E embora haja, dentro de mim, um impulso que me incita a ir lá para fora explodir, inofensivamente, no meio do nada, receio que haja um outro impulso - sou cheia de contradições - dizendo-me para me esconder num canto com uma aranha, a viúva negra, e lançar o meu veneno a quem passar por perto. «Toma, pela juventude que nunca tive!», cicio eu e cuspo, se é que as aranhas sabem cuspir."

agosto 20, 2011

Os livros e a Praia

Quem é que anda a descobrir as coisas boas de se ler na praia? Parece que o post que publiquei aqui há uns tempos atrás acerca da minha incapacidade de ler na praia está em vias de se tornar mentira.

Este ano tenho lido bastante na praia e tenho visto muita gente a ler na praia. Bem, na realidade, acho que cada vez vejo mais pessoas a ler, principalmente no metro.
O que mudou para este ano estar a aproveitar para pôr as leituras em dia na praia? Acho que não mudou nada, as razões que referi no post do ano passado continuam a existir: o riso das crianças, o barulho das ondas, o namorado a precisar de atenção. :) Tudo isso continua lá... Nem sequer tenho ido para praias mais desertas. O que mudou então? Se calhar fui eu ou então tenho levado para a praia livros que se enquadram melhor no ambiente... Não sei e na verdade interessam-me pouco as razões que me levaram a agora o conseguir fazer.

O Bom Inverno (comentado no post anterior), do João Tordo foi um dos que me fez companhia na ida à praia, a semana passada. Li bastante nesse dia porque o livro é muito bom, mas também porque tinha a secreta esperança de que o título inspirasse o Sol a aparecer e a dar um ar da sua graça, o que acabou por acontecer e tornar aquele dia de praia num dos melhores do ano. Isto numa praia em que normalmente o sol gosta de se esconder atrás das nuvens, afastado por ventos que na, maior parte das vezes, não são nada veranis.
Obrigada João Tordo pelo excelente dia de praia e não tanto pelo pequeno escaldão que resultou do excesso de confiança na protecção das nuvens. :)

E para ver se isto de influenciar o tempo também funciona com a música, deixo-vos aqui uma música que me anda a "perseguir" e me põe bem disposta. Esta é uma das músicas que moram na minha cabeça, as outras são quase todas infantis... Essas sim, verdadeiros pega-monstros! :)


Dave Matthews Band - Funny The Way It Is


Boas leituras e bons dias de praia!!!

O Bom Inverno - João Tordo


Título original: O Bom Inverno
Ano da edição original: 2010
Autor: João Tordo
Editora: Publicações D. Quixote

"Quando o narrador - um escritor frustrado e hipocondríaco - se desloca a Budapeste para um encontro literário, está longe de imaginar até onde a literatura o pode levar. Planeando uma viagem rápida e sem contratempos, acaba por conhecer um escritor italiano mais jovem, mais enérgico e muito pouco sensato, que o convence a ir com ele até Sabaudia, em Itália, onde o famoso produtor de cinema Don Metzger reúne um leque de convidados excêntricos numa casa escondida no meio de um bosque. O cinema não é, porém, a única obsessão de Don: da sua propriedade em Sabaudia levantam voo balões de ar quente estranhamente vazios, construídos como obras de arte por Andrés Bosco, um catalão cuja relação com o produtor permanece um enigma. Nada, aliás, na casa de Metzger é o que parece; e, depois de uma primeira noite particularmente agitada, o narrador acorda com a pior notícia possível: Don foi encontrado morto no seu próprio lago. Bosco toma nas suas mãos a tarefa de descobrir o culpado e de o castigar, isolando o grupo de convidados na casa e montando-lhes um verdadeiro cerco. Confrontados com os seus piores medos, assustados, frágeis e egoistas, estes começarão a atraiçoar-se e a acusar-se mutuamente, num pesadelo que parece só poder terminar quando não sobrar ninguém para contar a história."

Depois de ter lido, mais precisamente devorado, o As Três Vidas (comentado aqui) as minhas expectativas para uma próxima leitura de João Tordo eram, naturalmente, elevadas. Embora estas não tenham sido totalmente satisfeitas, também estão longe de terem sido goradas. O livro acabou por ser diferente do que eu estava à espera mas bom na mesma. :)

Este livro, à semelhança do As Três Vidas, é um daqueles livros em que não faz muito sentido discorrer acerca da história porque é complicado deixar alguma coisa de fora. Tudo tem um contexto e, ou se refere sem contextualizar, o que não faz muito sentido, ou corre-se o risco de transcrever o livro para aqui e, também não é isso que se pretende. ;)

Livros assim são os que mais me custam a opinar, porque acho que só lendo se tem uma ideia correcta do que são. São histórias, mas não são apenas um relato de uma sucessão de acontecimentos. João Tordo é definitivamente um excelente contador de histórias, tem uma imaginação e uma capacidade de interligar os acontecimentos que é fora de série. As personagens são todas únicas, cada uma com as suas particularidades e com a sua devida importância para a história. Tanto a história como as personagens estão extremamente bem construídas e a curiosidade pelo desenrolar dos acontecimentos é uma constante. O que também é constante é a dificuldade em catalogar o livro. É um policial, cheio de suspense, quase a roçar o terror. Está cheio de coisas bizarras, um pouco nonsense às vezes, com diálogos fantásticos, alguns com uma profundidade desconcertante e personagens sui generis que o autor explora e expõe tornando-as a todas, de diferentes formas, interessantes e psicologicamente densas, mesmo Don Metzger o morto que apenas conhecemos pelas palavras dos outros.

Acho que não vale a pena acrescentar mais nada porque para perceber só mesmo lendo. :)

Acrescento que, autores como João Tordo, Saramago, João Aguiar, José Luís Peixoto (só me saíram Jotas, as outras letras que me desculpem) e muitos outros, tornam o prazer da leitura, em português, num prazer que é diferente daquele que se sente com um livro traduzido. A forma como brincam com uma língua que é tão nossa torna os livros muito mais próximos e, isso é algo que começo a valorizar cada vez mais. A literatura portuguesa tem vindo a ganhar cada vez mais espaço nas minhas estantes.

Quanto a este livro em particular e ao autor em geral, só posso aconselhar a leitura, sem qualquer reserva.

Boas leituras! ;)


Excerto:
"Foi assim que o Bom Inverno começou. Foi em Sabaudia, foi há uns meses (embora me pareça ter sido há muito mais tempo), foi por acaso e, ainda assim, sempre que penso nas coisas que me aconteceram, coloco a possibilidade de não ter existido qualquer acaso e de tudo poder ser explicado para depois, com um sorriso e um abanar frouxo da cabeça, dizer a mim próprio que e escusado estar a adiantar-me porque o melhor é começar pelo início."

agosto 08, 2011

A Vida de Pi - Yann Martel

Título original: Life of Pi
Ano da edição original: 2001
Autor: Yann Martel
Tradução: António Pescada
Editora: Editorial Presença

"Filho do administrador do jardim zoológico de Pondicherry, na Índia, Pi Patel possui um conhecimento enciclopédico sobre animais e uma visão da vida muito peculiar. Quando Pi tem dezasseis anos, a família decide emigrar para a América do Norte num navio cargueiro juntamente com os habitantes do zoo. Porem, o navio afunda-se logo nos primeiros dias de viagem. Pi vê-se na imensidão do Pacífico a bordo de um salva-vidas acompanhado de uma hiena, um orangotango, uma zebra ferida e um tigre de Bengala. Em breve restarão apenas Pi e o tigre, e a única esperança de sobreviverem é descobrirem, de alguma forma, que ambos precisam um do outro... Já considerado uma das mais extraordinárias criações literárias da última década, A Vida de Pi é um livro mágico, onde o real e o absurdo se misturam numa história intemporal."

Confesso que estou a sentir alguma dificuldade em escrever a minha opinião sobre este livro. O meu problema está em ter gostado muito do livro e querer transmitir tudo aquilo que me encantou na história de Pi. Não me sinto capacitada para, com as minhas palavras, dar-vos uma pequena ideia da beleza subjacente a tudo o que está escrito, nem para descrever os sentimentos fortes que me provocou a história da vida de Pi. Enfim, não sei se sou capaz de fazer com que vão a correr para a livraria mais próxima... ;)
Vou ter em conta que, se calhar alguns de vocês vão de facto a correr para a livraria mais próxima, e vou tentar não esmiuçar muito o livro, para que possam sentir o mesmo prazer que eu senti na leitura deste livro. Vai ser uma opinião livre de spoilers (pelo menos assim espero)! :p

A Vida de Pi é um livro que no início me deixou de pé atrás. A religião é um assunto recorrente e importante na vida de Pi, o rapazinho indiano que se torna praticante de três religiões, o hinduísmo, o cristianismo e o islamismo, de forma natural, porque encontrou nas três, formas válidas para estar próximo de Deus. No início tive receio que todo o livro fosse concentrar-se muito nos dilemas religiosos de Pi, mas felizmente isso apenas acontece na primeira parte do livro. Felizmente, na primeira parte do livro, a religião não foi o único tema. Gostei muito da descrição da vida no Jardim Zoológico de Pondicherry e da forma como ele desconstrói as teorias de que os animais selvagens são infelizes fora do seu habitat natural. confinados a espaços pequenos. É um ponto de vista interessante e, que serve essencialmente para justificar alguns comportamentos e acções no barco salva-vidas.
Na primeira parte ainda não estava a perceber o porquê de tantas opiniões extraordinárias acerca deste livro e estava a começar a pensar que alguma coisa se passava de errado comigo. :)

A segunda parte descreve a luta pela sobrevivência que Pi teve de travar quando, após o naufrágio do navio onde seguia com a família e alguns dos animais do zoo, vai sem saber muito bem como, parar a um barco salva-vidas tendo por companhia uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre de Bengala. Nesta estranha arca de Noé a lei da sobrevivência é a única a prevalecer porque o comportamento de um animal é o mesmo, quer esteja na selva, no zoo ou num barco no meio do pacífico.
Esta segunda parte oscila entre o absurdo e o real onde, conscientemente, senti necessidade de ajustar o meu cérebro para o "modo de leitura de Fantasia", pois estava a parecer-me um livro mais próximo da fantasia do que de outro género literário qualquer. No entanto, e talvez esteja aí uma das razões para este livro me ter deixado tão surpreendida, nunca me foi possível "sintonizar" o cérebro para a fantasia, porque de repente aconteciam coisas tão reais e descritas de uma forma tão vívida, que acabavam por camuflar as partes em que o livro me parecia virado para um público mais juvenil, a lembrar-me As Viagens de Gulliver. Andei o livro todo ora de sobrolho franzido, sem saber muito bem o que pensar, ora de coração aos pulos e estômago embrulhado, sem saber o que a próxima página me traria, fantasia ou a dura realidade. Esta segunda parte provocou, por isso, um misto de emoções que me deixou à beira da bipolaridade. :)

Por último, sobre a terceira parte apenas vou dizer que a senti como um murro no estômago e a li com um aperto quase constante da garganta, e mais não digo! :)

Gostei muito da escrita de Yann Martel e da forma como a história se foi desenvolvendo. Uma história que, sendo original, é ao mesmo tempo banal, expondo necessidades primárias e medos primitivos que aproximam o Homem do animal, quando o que está em causa é a sobrevivência. É um livro que parecendo simples é na verdade complexo. É um livro que maltrata o leitor porque não respeita a nossa paz de espírito. É um livro que convida a uma reflexão sobre a vida, o nosso lugar no mundo, o lugar dos outros nesse mesmo mundo, os sonhos, a perda e tantas outras coisas mais...

Um livro que não me fez acreditar em Deus, que não tem qualquer intenção de converter, mas que me mostrou uma visão da fé e da forma como a religião pode ser vivida que achei bonita. E, acreditando ou não em Deus, também eu prefiro a história com animais. ;)

Recomendo, como é óbvio!

Boas leituras!

Excerto:
"Mantendo uma expressão profundamente triste e lastimosa, começou a olhar em volta, virando lentamente a cabeça de um lado para o outro. A figura dos macacos perdeu instantaneamente o seu carácter divertido. Ela tinha dado à luz dois filhotes o jardim zoológico, dois machos robustos, de cinco de oito anos que eram o seu (e o nosso) orgulho. Eram, sem dúvida, eles que ela tinha na sua mente ao procurar sobre a água, imitando sem intenção aquilo que eu tinha feito durante as últimas trinta e seis horas. Reparou em mim e isso não lhe provocou qualquer expressão. Eu era apenas mais um animal que tinha perdido tudo e estava votado à morte. O meu ânimo caiu a prumo."

agosto 02, 2011

A Vida de Pi - Yann Martel - Breve comentário

Não tenho, por agora, tempo para partilhar a minha opinião acerca deste livro surpreendente, que acabei de ler há minutos. No entanto, a vontade de partilhar alguns dos sentimentos que este livro me provocou é demasiado grande para ser ignorada. São eles sentimentos de: repulsa, ternura, medo, alegria, tristeza, surpresa, incredulidade, estranheza, vontade de chorar e de desviar os olhos da página, revolta, ansiedade, amizade, fome, sede e muitas vezes uma vontade enorme de deitar o pequeno-almoço todo cá para fora. :/

Resumindo, é surpreendente e emocionalmente fortíssimo.

Quando tiver mais tempo livre, a opinião completa aparecerá por aqui. :)

Boas leituras!

julho 19, 2011

Patagónia Express - Luis Sepúlveda

Título original: Patagonia Express
Ano da edição original: 1995
Autor: Luis Sepúlveda
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora: Edições Asa

"Homenagem a um comboio que já não existe, mas que continua a viajar na memória dos homens e das mulheres da Patagónia, estes «apontamentos de viagem» - como lhes chama Luis Sepúlveda - vêm uma vez mais comprovar a qualidade literária já evidenciada em livros como O Velho que Lia Romances de Amor, Nome de Toureiro ou Mundo do Fim do Mundo. Desde os seus primeiros passos na militância política, que o levaram à prisão e depois ao exílio em diferentes países da América do Sul, até ao reencontro feliz, anos depois, com a Patagónia e a Terra do Fogo, é uma longa viagem (e uma longa memória) aquela que Luis Sepúlveda nos propõe neste seu novo livro. Ao longo dele, confrontamo-nos com uma extensa galeria de personagens inesquecíveis e com um conjunto de histórias magníficas, daquelas que só um grande escritor é capaz de arrancar dos labirintos da vida."

Para quem já conhece a escrita de Luis Sepúlveda, este livro é tudo aquilo que esperamos encontrar quando pegamos num livro dele para o ler. Estão lá, o bom humor, a genuinidade, as paisagens deslumbrantes da América do Sul, as personagens pitorescas mas reais e a tão apreciada habilidade do escritor sul americano para contar histórias. Histórias da sua vida e das vidas que se cruzam com a dele e o marcam de alguma forma.

Sendo assim, neste livro não pode faltar, nem faltam, referências à agitação política que o Chile e a América do Sul atravessaram há algumas décadas. Nele Sepúlveda conta-nos como foram os anos que passou preso, ainda adolescente, e a forma como o faz é desconcertante, porque o tom é de comédia, com histórias caricatas, que pelo meio mencionam a brutalidade do tratamento dado a todos os prisioneiros políticos. Sem entrar em descrições detalhadas e sem recorrer a pormenores chocantes, senti-me mais incomodada do que se o fizesse.

Este é, no entanto, um livro que vai muito para além do protesto político, do querer manter na memória colectiva os erros do passado para que não se repitam.
É também uma homenagem ao avô de Sepúlveda, um anarquista convicto que tanto parece ter influenciado a vida e a forma de pensar do escritor.
A descrição dos passeios de domingo com o avô, que o enchia de gelados e sumos para depois o "obrigar" a fazer xixi à porta das igrejas é deliciosa.


"- Então? Não queres mijar? Bolas, meu filho. Com o que tu bebeste...
A minha resposta natural e habitual devia soar dramaticamente afirmativa, com junção de pernas a acompanhar as palavras. Então ele, tirando o resto do charuto que sempre lhe pendia dos lábios, suspiraria antes de exclamar com o mais didáctico dos tons:
- Espere, meu menino. Espere e aguente até encontrarmos a igreja adequada."

Patagónia Express é uma verdadeira declaração de amor à Patagónia e às suas gentes, as que lá nasceram e as que a escolheram como sua casa e, claro ao comboio que dá nome ao livro.
Um amor que aconteceu quando Sepúlveda tentou cumprir a promessa que fez ao avô, de ir a Martos, em Espanha, a terra natal do avô.

"Bom, meu menino. Este livro* tens de ser tu a lê-lo, mas antes do to entregar quero duas promessas tuas.
- Quantas quiser, Vô.
- Este livro será um convite para uma grande viagem. Promete-me que a farás.
- Prometo. Mas para onde vou viajar, avô?
- Possivelmente a lado nenhum, mas garanto-te que vale a pena.
- E a segunda promessa?
- Que um dia irás a Martos.
- Martos? Onde fica Martos?
- Aqui - disse ele, batendo no peito com a mão."

*O livro de que falam é Assim Foi Temperado o Aço de Nicolai Ostrovsky.

Promessas que, mais que promessas, são formas de viver e de pensar e, por isso impossíveis de declarar como cumpridas.

Patagónia Express é uma declaração de amor à família, aos amigos, à liberdade e à vida. É um livro que, essencialmente fala de pessoas e das suas histórias e que deixa em nós um bom sentimento. No meio de tantas histórias partilhadas, a passagem do autor pela prisão, é apenas mais uma história, apenas mais uma experiência e, da qual Sepúlveda destaca, principalmente, as pessoas que conheceu e que nunca esqueceu. A melhor retaliação contra aqueles que se julgam no direito de mexer com o futuro dos outros é viver de forma a reduzir as más memórias a isso mesmo, memórias e nada mais.

Gostei muito deste livro e aconselho-o sem qualquer hesitação. :)

Boas leituras!


Excerto:
"Daí sai o mais austral dos caminhos-de-ferro, o verdadeiro Patagónia Express, o qual, depois de duzentos e quarenta quilómetros de andamento que unem cidades como El Zurdo e Bellavista, chega a Río Gallegos, na costa atlântica.
O comboio, formado por duas carruagens de passageiros e dois vagões de carga, é arrastado por uma velha locomotiva a carvão fabricada no Japão no princípio dos anos trinta. Cada carruagem de passageiros tem dois longos bancos de madeira que a percorrem de uma ponta a outra. Numa delas há um fogão a lenha que os passageiros têm de ir alimentando e, por cima dele, um quadro com a imagem de Nossa Senhora de Luján."

julho 14, 2011

O Jogo do Anjo - Carlos Ruiz Zafón

Título original: El Juego del Ángel
Ano da edição original: 2008
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Tradução: Isabel Fraga
Editora: Dom Quixote

"Na Barcelona turbulenta dos anos 20, um jovem escritor obcecado com um amor impossível recebe de um misterioso editor a proposta para escrever um livro como nunca existiu a troco de uma fortuna e, talvez, muito mais. Com deslumbrante estilo e impecável precisão narrativa, o autor de A Sombra do Vento transporta-nos de novo para a Barcelona do Cemitério dos Livros Esquecidos, para nos oferecer uma aventura de intriga, romance e tragédia, através de um labirinto de segredos onde o fascínio pelos livros, a paixão e a amizade se conjugam num relato magistral."

Não sei bem o que dizer acerca deste livro. O que normalmente até é uma coisa boa, neste caso não é bem assim. Não sei o que dizer porque cheguei ao fim do livro sem qualquer nota mental acerca das coisas que gostaria de destacar ou que gostaria de não esquecer.
É claro que posso falar da história, posso até destacar uma ou outra passagem mas, a realidade é que o livro me pareceu... demasiado normal. Fui passando as páginas com algum interesse, mas ao mesmo tempo sentia que nada do que lia iria ganhar raízes na minha memória.
O livro lê-se bem, a escrita é fluída, a história é intrigante, as personagens criam alguma empatia com o leitor mas, não sabendo precisar o porquê, senti sempre alguma distância da minha parte relativamente ao que lia. Não sei se é por achar, como já tinha acontecido com o A Sombra do Vento (a minha opinião aqui), que as personagens e as suas acções não são credíveis, o tom dos diálogos e as expressões usadas pareceram-me muitas vezes inadequados para a época retratada e a linguagem pareceu-me dirigida a um público mais novo. No entanto, nas descrições a linguagem que Carlos Ruiz Zafón utiliza é extremamente rica e bem conseguida. É nos diálogos e na interacção das personagens que sinto alguma imaturidade e daí a sensação de que se dirige a um público mais jovem.
Acho que o autor se perdeu um pouco no final, não sabendo como por um ponto final e justificar todas as suspeitas que vai criando no leitor. Confesso que acabei por não perceber muito bem o objectivo de todo aquele desfilar de mortes violentas e de todas aquelas fugas e regressos de Daniel Martín, o protagonista. Não percebi bem o que, ou quem, era Corelli, o editor misterioso de Martín, e o final pareceu-me despropositado... :/

Enfim, não vale a pena continuar a dissertar sobre a estranheza que os livros de Carlos Ruiz Zafón me provocam. Até porque, não posso dizer que não gostei do livro, só não o achei nada de extraordinário. E isto é algo que me custa admitir, porque sei que este é um autor que tem seguidores acérrimos que defendem os seus livros com unhas e dentes. Sinto com Carlos Ruiz Zafón o mesmo que sinto por não conseguir apreciar Ernest Hemingway, simplesmente não percebo o que prende tanto os leitores... Falha minha? Provavelmente... :)

Mas, deixemos para trás os sentimentos menos positivos que este livro me despertou e vamos falar das coisas boas que, tanto neste O Jogo do Anjo, como no A Sombra do Vento, se podem encontrar! :)

Acho que um dos pontos mais positivos deste livro é a capacidade que o autor tem em criar ambientes sinistros, opressivos e soturnos. Não só Barcelona me parece assustadora como qualquer outro ambiente descrito no livro é arrepiante, quer seja uma rua, quer seja uma casa, ou simplesmente um sombra. Foi uma das coisas que mais gostei, neste livro e que é comum ao A Sombra do Vento.
Foi bom regressar ao Cemitério dos Livros Esquecidos e à familiar livraria dos Sempere, desta vez com o avô e o pai de Daniel Sempere, o jovem protagonista do A Sombra do Vento, à frente do negócio. Mais uma vez, gostei muito do Sempere pai, deste livro. E achei curioso conhecer um pouco da vida do pai de Daniel Sempere, por ter sido uma das personagens que mais gostei no A Sombra do Vento.
No início achei Daniel Martín, o protagonista deste livro, cativante mas, dei por mim, a páginas tantas, a achar que ele tinha perdido qualquer coisa pelo caminho. A determinada altura houve uma mudança demasiado brusca na sua personalidade que, na minha opinião o descaracterizou e me fez perder algum interesse por ele. Senti alguma confusão e, por momentos, pensei que tinha baralhado nomes,e que estava a confundi-lo com outra personagem. Curiosamente, acho que é com os protagonistas, que Carlos Ruiz Zafón tem mais dificuldade, sendo as personagens secundárias mais interessantes. Nisso, e em finalizar a história de forma mais ou menos coerente, sem que se fique com a sensação de que teve de acabar tudo à pressa por falta de tempo ou perda de inspiração... :/
Não vou falar da história propriamente dita porque acho que é um daqueles casos em que, ou contamos tudo ou o pouco que desvendamos parece insignificante e pouco apelativo. É uma história misteriosa que me manteve intrigada ao longo de quase todo o livro. Digo quase todo o livro, porque a revelação dos segredos não é tão bem conseguida como a montagem de toda aquela "conspiração".
Concluindo e baralhando: achei o livro banal, talvez porque é, na minha opinião, muito parecido com o A Sombra do Vento e, daí pouco original. Aliás o facto de o livro ser referido tantas vezes nesta minha opinião é sintomático das similaridades que fui encontrando ao longo da leitura. Se eu tivesse gostado mais do A Sombra do Vento, do que gostei na realidade, talvez me tivesse sabido bem regressar aos lugares e às personagens aí retratadas, como não foi esse o caso, achei o regresso um pouco cansativo.

Embora para mim tenha sido uma leitura pouco memorável, não posso deixar de o recomendar porque tenho perfeita consciência que a minha dificuldade com os livros de Carlos Ruiz Zafón é a mesma que tenho com Ernest Hemingway, não me identifico com a escrita nem com a forma que têm de contar uma história. É apenas e só uma questão de gosto pessoal e nada mais, por isso, leiam e quase de certeza que vão gostar. :)

Boas leituras!

Excerto:
"O táxi subia lentamente até aos confins do bairro de Gracia, em direcção ao solitário e sombrio recinto do Park Güell. A colina estava pontilhada de casarões que já tinham visto melhores dias assomar no meio de um arvoredo que se agitava ao vento como água negra. Vislumbrei no alto da ladeira a grande porta do recinto. (...) Esquecido e abandonado, o jardim de colunas e torres fazia agora lembrar um éden maldito. Fiz sinal ao motorista para que parasse diante do gradeamento da entrada e paguei-lhe a corrida.
- O senhor tem a certeza de que quer sair aqui? - perguntou o motorista, com o credo na boca. - Se quiser, posso esperar uns minutos por si...
- Não é preciso.
O ruído do táxi perdeu-se colina abaixo e fiquei sozinho com o eco do vento entre as árvores. As folhas caídas arrastavam-se à entrada do parque e redemoinhavam aos meus pés."