janeiro 26, 2014

Desgraça - J. M. Coetzee

Título original: Disgrace
Ano da edição original: 1999
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: José Remelhe
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Com cinquenta e dois anos, o professor David Lurie perde o emprego e os amigos depois de um romance com uma das suas alunas, refugiando-se na quinta da filha, Lucy. As tentativas de David para se relacionar com Lucy e com uma sociedade feita de novas complexidades raciais são perturbadas por uma tarde de violência que os vai modificar, a ele e à filha, de uma forma que ele jamais poderia prever." 

J. M. Coetzee é um autor para o qual não devemos partir de ânimo leve. As suas histórias têm uma espécie de força para a qual temos de estar preparados . A violência, não apenas física, que lá vamos encontrar é, à falta de melhor palavra, desconcertante e toda a dinâmica que ele cria chega a ser desconfortável. 
Quando o título do livro é Desgraça, não podemos dizer que fomos apanhados desprevenidos.

(pode conter spoilers)

Desgraça passa-se na África do Sul, o país que todos conhecemos pelas piores razões, mesmo que pelo meio surjam coisas boas, quando o nome África de Sul surge, a nossa primeira reacção é, naturalmente, de apreensão. David Lurie é um dos brancos daquele país, tem cinquenta e dois anos, divorciado, com uma filha e professor universitário na Cidade do Cabo. Dá aulas apenas porque precisa da estabilidade financeira, não sente qualquer vocação e não sente por parte dos seus alunos qualquer afeição ou interesse particular pelas suas palestras literárias.
É, ao mesmo tempo, obstinado e fiel aos seus princípios, não pensa no país como sendo preto e branco, vê pessoas e principalmente vê mulheres, miúdas mais novas que lhe despertam interesse. É o que acontece com Melanie, uma das suas alunas com quem acaba por se envolver. Gosta dela, para além do físico, e em plena crise de meia idade, não vê qualquer sinal de perigo na relação que mantém com a rapariga. Naturalmente, nem tudo corre como esperado e David, após uma espécie de julgamento académico, levado a cabo pelos seus pares na universidade, é expulso da instituição, acusado de assédio sexual. Para além da questão moral, que é discutida por alguns colegas de David, principalmente colegas femininas, a sensação que fica é que, David foi expulso porque não entrou no jogo da expiação e remorso que os seus colegas teriam desejado. Não precisavam  de remorso verdadeiro apenas de um pedido de desculpa que David nunca esteve disposto a pedir. Desculpa porquê? Nunca fez nada de mal.

Sem nunca alcançar a gravidade do que lhe aconteceu mas sabendo que o melhor é desaparecer por uns tempos, parte para o interior, para viver uns tempos com a filha Lucy. E é aqui que tudo começa. É engraçado como deste livro de Coetzee as referências que tinha eram apenas a da história inicial, da relação da personagem com uma aluna e dos problemas raciais à volta. Na realidade esta é apenas uma parte da história e que fica mais ou menos resolvida assim que ele parte para junto da filha. A história com Melanie parece servir apenas para nos dar a conhecer David, a forma como vive e o que pensa. Serve também para mostrar dois mundos distintos, o meio urbano onde todos tentam ser o mais civilizados possível, e o meio rural onde a violência é uma realidade e a questão racial é um problema muito mais concreto.

A filha de David, já adulta, vive sozinha numa quinta no interior do país. Cultiva hortaliças, planta flores e tem um canil. É uma mulher branca a viver sozinha numa quinta e David não percebe como a filha não vê os perigos que isso pode trazer. Para Lucy, o pai é um homem da cidade, instruído e que vem para ali cheio de preconceitos e que simplesmente não percebe que a felicidade está nas coisas simples, trabalhar no campo, ajudar animais em perigo e viver de forma a não ofender ninguém. Ela acredita que vivendo de forma honesta, sem tiques de proprietária colonialista, nada de mal lhe pode acontecer. David acaba por se ir adaptando à vida no campo, ao contrário do que a filha pensa, ele não é um pseudo-intelectual preconceituoso. Ambos têm muito a aprender um com outro. Na verdade David gosta da oportunidade que a vida lhe está a dar para conhecer melhor Lucy, a filha independente que sempre fez o que quis, sem precisar de grande orientação por parte dos pais. Acima de tudo, existe em David uma necessidade de encontrar um lugar no mundo onde se possa sentir útil. Para David envelhecer não tem sido pacífico, principalmente por causa das mulheres, o seu calcanhar de Aquiles. :) Por isso pretende aproveitar toda a história com a aluna para recuperar o tempo perdido com a filha e ser um pai mais presente, protegê-la dos perigos e se conseguir sair de todo este processo uma melhor pessoa tanto melhor.

Infelizmente os receios de David acabam por ser concretizar no dia em que os dois são atacados na propriedade de Lucy, por um grupo de homens, quase uns miúdos, que fazem mais do que roubar o carro de David. A violência, mais insinuada do que descrita, é revoltante e as consequências vão muito para além do físico. 
David martiriza-se por não ter conseguido proteger a filha. Lucy após um período de isolamento, encontra uma forma de despersonalizar o que lhe aconteceu e tenta contextualizar, justificar o comportamento dos homens que a atacaram. Ela começa a encarar tudo aquilo como o preço a pagar para poder permanecer ali, como se a violência de que foi vítima estivesse escrita nas condições contratuais que vinham com a compra do seu pedaço de terra. Existe a partir dali uma dinâmica entre as personagens que é desconcertante. Com o pai a não saber lidar com as ideias de uma filha que achava ser mais inteligente, mais livre e evoluída, no seu entender. Sem conseguir perceber a teimosia da filha em querer continuar ali, a viver, lado a lado com um dos miúdos que violou. A lidar com a culpa, completamente incapaz de convencer a filha a sair daquele lugar, a relação entre os dois degrada-se. David regressa à Cidade do Cabo, apreensivo por deixar Lucy sozinha mas consciente de que lhe faz mais mal que bem, naquele momento. Volta para um cidade que já não reconhece e que deixou de o aceitar. Percebe finalmente o que precisa de fazer relativamente a Melanie e à família desta, pede perdão, e volta para junto da filha que, quer ela saiba quer não, precisa mais dele do que imagina. Volta redimido e predisposto a retirar-se da equação e concentrar-se na recuperação física e psicológica da filha.

Desgraça é um livro violento, com personagens difíceis de esquecer, complexas e inesperadas, que nos exasperam e nos comovem. Gosto de Coetzee e do que faz com as palavras. Gosto da forma como conta uma história e de como cria em nós, leitores, empatias. 

É um livro que deve ser lido, por toda a carga emocional e humana que transporta e porque Coetzee é realmente um escritor muito bom. 

Boas leituras!

Excerto:
"(...) Na minha opinião, aquilo que me aconteceu só a mim diz respeito. Noutra época, noutro local, talvez pudesse ser considerado um assunto público. Mas, neste local, nesta época, não é. É um assunto meu, apenas meu.
 - E a que local te referes?
 - A África do Sul.
 - Não concordo. Não concordo com o que estás a fazer. Pensas, porventura, que ao aceitares pacificamente o que te aconteceu, conseguirás diferenciar-te de agricultores como o Ettinger? Pensas, porventura, que o que aconteceu aqui foi um teste: se tiveres boa nota, recebes um diploma e um salvo-conduto para o futuro, ou uma tabuleta para colocares por cima da porta que fará com que a praga passe sem te atacar? Não é assim que a vingança funciona, Lucy. A vingança é como um incêndio. Quanto mais devora, mais fome tem."

Fica o trailer do filme inspirado na obra de J. M. Coetzee - "Disgrace" de Steve Jacobs, com John Malkovich no papel de David Lurie:

janeiro 02, 2014

La Coca - J. Rentes de Carvalho

Título original: La Coca
Ano da edição original: 2011
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal Editores

"Manuel Galeano - que sempre tivera "o contrabando no sangue" - desapareceu inesperadamente antes de um segundo encontro. O primeiro, em Amesterdão, fora uma conversa saborosa no bar de um hotel (memórias de juventude e certas confidências sobre o presente), e é o ponto de partida para uma longa evocação e uma viagem sentimental: cinco décadas de história do tráfico entre o Minho e a Galiza. Negócios de cigarros, uísque, barras de ouro, gado, café e, mais recentemente, droga. Com a história seguem também os seus deliciosos protagonistas (Diogo Romano, El Min, Sítio Minanco, o Pardal, o Pepe Mustafá e o Laurestim), que compõem o imaginário pícaro da região que o autor revisita para lembrar a sua primeira idade adulta."

Gosto muito de J. Rentes de Carvalho, não é novidade para ninguém. Mas este La Coca não me encheu as medidas. Achei-o um pouco desligado e a história pouco fluída. Está lá o cunho de J. Rentes de Carvalho, que não existam duvidas em relação a isso, não deixou de ser um livro que se leu muito bem e com gosto, só não será dos mais inspirados dele. :-)

Feita esta parte difícil da opinião, a de dizer que não amamos um livro de um escritor que nos diz muito, passemos ao livro propriamente dito. 

La Coca é, à semelhança de outros livros de J. Rentes de Carvalho, um livro de memórias, nostálgico por natureza e, por isso, muito mais do que um livro sobre os contrabandistas minhotos e galegos do século passado e dos narcotraficantes deste século. A história inicia-se quando o nosso escritor, a viver em Amesterdão, reencontra um amigo de longa data, um daqueles que fazem parte das nossas brincadeiras de infância. Desse encontro inesperado, nasce no narrador (que supomos ser o próprio escritor) uma vontade de revisitar os lugares que o viram crescer. Sob o pretexto de um trabalho de investigação acerca do novo contrabando praticado na fronteira, parte para Portugal. Lá encontra, para além do rastro perdido e incerto dos amigos de outrora, as memórias das paixonetas, as angústias da adolescência e lugares que já não são exactamente como se recorda deles. Mudanças que doem, que quase põem em causa toda uma vida estruturada em função de memórias que sempre acreditou serem concretas e reais. 
J. Rentes de Carvalho vai, desta forma, relatando as vivências dos minhotos y sus hermanos galegos numa época onde quase tudo era proibido. Recorre às suas próprias recordações e às conversas que vai tendo com quem faz, hoje em dia, a história da região.


Enfim, gostei mais uma vez da escrita de J. Rentes de Carvalho, da familiaridade que os lugares nos transmitem e da história. Não me identifiquei muito com a forma como é contada, achei-a menos envolvente, talvez porque ele acaba por não aprofundar o tema do narcotráfico e este acaba por ser pouco mais do que o fio condutor das memórias do escritor.

Recomendo por ser um livro de J. Rentes de Carvalho, o que quer dizer que, mesmo menos inspirado, vale a pena ler! ;-)

Boas leituras!

Excerto:
"Seguindo ao longo da margem refaço, pois, o que foi o caminho de casa. Mas chegado ao pequeno jardim fronteiro ao convento de Corpus Christi - o convento das freiras, como ainda se diz - paro num banco, sem vontade de me meter calçada acima e subir a escadaria medieval feita de pedras grosseiras e desiguais. Também, de facto, sem vontade de rever o largo onde nasci, porque todas as vezes que lá volto, e por muito que me esforce por reter a sua imagem actual, por mais atentamente que procure captar os rostos das pessoas, o aspecto das casas, dos armazéns de vinhos, a cor dos muros dos quintais, a amplidão do panorama, mal me vou embora logo essa imagem se desfaz. Como se a memória, ao filtrar as impressões, desdenhe das recentes e prefira aquelas sobre que pesa a recordação."

dezembro 24, 2013

Feliz Natal!

Neste Natal desejo a todos:
 
1ª Uma mão cheia de sonhos, dos que levam canela e açúcar e dos outros;

2ª As mãos de sempre, enfarinhadas e cheias de tudo;

3º Gargalhadas e cumplicidades.



 Um Feliz Natal para todos!

dezembro 15, 2013

As Memórias de Cleópatra (1º Vol) - A Filha de Ísis - Margaret George

Título original: The Memoirs of Cleopatra
Ano da edição original: 1997
Autor: Margaret George
Tradução: Sérgio Gonçalves
Editora: Saída de Emergência
"A autora do best-seller mundial A Paixão de Maria Madalena está de volta com um convite irrecusável: a visita ao Antigo Egipto e à vida de Cleópatra, a rainha do Nilo. Escritas na primeira pessoa, As Memórias de Cleópatra começam com as suas recordações de infância e vão até ao seu glorioso reinado, quando o Egipto se torna um dos mais deslumbrantes reinos da Antiguidade.
As Memórias de Cleópatra são uma saga fascinante sobre ambição, traição e poder, mas também são uma história de paixão. Depois de ser exilada, a jovem Cleópatra procura a ajuda de Júlio César, o homem mais poderoso do mundo. E mesmo depois do assassinato daquele que se tornou o seu marido, e da morte do segundo que amou, Marco António, Cleópatra continua a lutar, preferindo matar-se a deixar que a humilhem numa parada pelas ruas de Roma.
Na riqueza e autenticidade das personagens, cenários e acção, As Memórias de Cleópatra são um triunfo da ficção. Misturando história, lenda  e a sua prodigiosa imaginação, Margaret George dá-nos a conhecer uma vida e uma heroína tão magníficas que viverão para sempre."

Não me vou alongar muito nesta opinião, uma vez que, A Filha de Ísis é apenas o primeiro volume das Memórias de Cleópatra.

Este é o volume onde a própria Cleópatra relata os primeiros anos do seu reinado, como Rainha do Egipto. Começa por falar um pouco da sua infância e da família, do pai e dos irmãos e da relação com eles. Sem este enquadramento da história e tradição dos Ptolomeu, descendentes de Alexandre, muitas das decisões e acções futuras seriam questionáveis.

Cleópatra conta como conheceu e se apaixonou por César, na altura o mais destemível e temido general das forças romanas à conquista do mundo. Um homem muito mais velho, com enorme carisma, um poder imensurável, enfim... um homem irresistível e que, quando está junto de Cleópatra, demonstra ser apenas um homem.
Grande parte deste primeiro volume concentra-se na aliança política e pessoal que Cleópatra vai manter com o homem mais poderoso do mundo. Com o apoio dele recupera o trono do Egipto e, é também por ele que é mantida a independência do seu reino, não sendo o Egipto anexado como parte do Império Romano.

Cleópatra é apresentada como uma mulher moderna, com ideias e ambições próprias e uma boa estadista, com capacidade para gerar consenso. Não é dona de uma beleza estonteante, é sim, exótica e carismática. Aposta tudo na sua relação com César, principalmente por amor, genuíno e desinteressado, mas também porque sabe que é, naquele momento, a única forma que tem de continuar a ser a Rainha do Egipto.
Este primeiro volume termina pouco depois da morte de César, assassinado às mãos do seus supostos aliados. Termina com Cleópatra a regressar a Alexandria depois de uma prolongada temporada em Roma onde cimentou a sua aliança a César, agora morto.

Gostei deste primeiro volume, mas não fui de todo arrebatada por ele. Acho a escrita de Margaret George pueril, demasiado próxima da de um romance de cordel. Num romance histórico, deixam-me um pouco desconfortável, os suspiros e os devaneios de adolescente de Cleópatra. Faz-me confusão, uma rainha, deixar tanto tempo o seu reino para estar junto do seu grande amor, embora tenha sido importante para vincar a sua posição, achei despropositado. No entanto, como não faço ideia do que, nesta história, é real ou ficcionado, para além dos grandes acontecimentos, é claro, até pode ter-se passado assim... :)

Achei-o por vezes cansativo, ela prolonga demasiado o relato dos acontecimentos e, embora seja claro para mim que vou ler os outros dois volumes, também foi claro, desde muito cedo que não iria lê-los de seguida. Sinto necessidade de espaçar a leitura e mudar de tema...

Gostei dos ambientes criados, tanto os egípcios como os romanos. As festas e as celebrações, a forma como se comportavam foram das partes mais interessantes do livro. Gostei muito da personagem de César, mais até do que da Cleópatra. Talvez a Cleópatra mais velha e experiente me cative mais nos volumes que se seguem.

Resumindo, gostei. Vou ler de certeza os dois volumes que faltam - O Signo de Afrodite e O Beijo da Serpente - mas estou a fazer figas para que estes dois sejam mais arrebatadores.

Recomendo. A época é só por si cheia de acontecimentos e as personagens tem potencial para serem muito boas de acompanhar. :)

Boas leituras!


Excerto:
"Na  parede de trás da sala, vi primeiro a estátua, maior do que um homem normal e orgulhosa no seu pedestal. E aos seus pés... um monte de roupas manchadas de sangue, com os pés à mostra, pés que pareciam muito pequenos para serem os de César.
Imediatamente o alívio: não era ele.
Aproximei-me do monte de roupa inerte, retendo a respiração, certa de me deparar com outra pessoa. Ajoelhei-me e com a mão tão trémula que mal conseguiu segurar o tecido, levantei a toga e vi o rosto de César.
Gritei quando o vi e soltei o tecido. Os seus olhos estavam fechados, mas ele não parecia dormir. Estava de uma forma que nunca o vira antes. Mentem aqueles que dizem que um morto parece dormir. Depois, quando me controlei, levantei o tecido de novo e afaguei o seu rosto: frio, como se a frieza do chão de mármore tivesse passado para dentro dele, tomando conta do seu ser."

novembro 17, 2013

No Meu Peito Não Cabem Pássaros - Nuno Camarneiro

Título original: No Meu Peito Não Cabem Pássaros
Ano da edição original: 2011
Autor: Nuno Camarneiro
Editora: Publicações Dom Quixote

"Que linhas unem um imigrante que lava vidros num dos primeiros arranha-céus de nova iorque a um rapaz misantropo que chega a Lisboa num navio e a uma criança que inventa coisas que depois acontecem? Muitas. Entre elas, as linhas que atravessam os livros. 
Em 1910, a passagem de dois cometas pela Terra semeou uma onda de pânico. Em todo o mundo, pessoas enlouqueceram, suicidaram-se, crucificaram-se, ou simplesmente aguardaram, caladas e vencidas, aquilo que acreditavam ser o fim do mundo.
Nos dias em que o céu pegou fogo, estavam vivos os protagonistas deste romance - três homens demasiado sensíveis e inteligentes para poderem viver uma vida normal, com mais dentro de si do que podiam carregar.
Apesar de separados por milhares de quilómetros, as suas vidas revelam curiosas afinidades e estão marcadas, de forma decisiva, pelo ambiente em que cresceram e pelos lugares, nem sempre reais, onde se fizeram homens. Mas, enquanto os seus contemporâneos se deixaram atravessar pela visão trágica dos cometas, estes foram tocados pelo génio e condenados, por isso, a transformar o mundo. Cem anos depois, ainda não esquecemos nenhum deles.
Escrito numa linguagem bela e poderosa, que é a melhor homenagem que se pode fazer à literatura, No Meu Peito não Cabem Pássaros é um romance de estreia invulgar e fulgurante sobre as circunstâncias, quase sempre dramáticas, que influenciam o nascimento de um autor e a construção das suas personagens."

Nuno Camareiro é o vencedor do Prémio Leya de 2012, o que me deixou simultaneamente curiosa e de pé atrás. Os critérios para a atribuição de um prémio literário são, naturalmente, muito racionais. Dá-se mais importância à técnica e menos aos sentimentos, subjectivos e pessoais, que uma história pode despertar no leitor. As críticas positivas que li a este autor acabaram por me convencer de que valeria a penas dar uma espreitadela aos livros dele. Além disso, acho o título deste No meu Peito Não Cabem Pássaros bonito e às vezes é tão fútil quanto isso, um livro ter um título bonito pode ser a razão pela qual vem connosco para casa... ;)

No Meu Peito Não Cabem Pássaros é um livro repleto de imagens bonitas, de frases que transmitem mais do que aquilo que está escrito no papel. A escrita de Nuno Camarneiro é poética, sem ser etérea. É palpável e próxima. É um livro construído de suspiros, sobressaltos, de olhares, de pensamentos, de interrogações, de imaginação. Uma reinvenção do mundo como o vemos no nosso dia-a-dia. Num livro cujos três protagonistas foram inspirados em três dos escritores menos óbvios do século passado não é de se esperar outra coisa.

Nuno Camarneiro pegou no Checo Kafka, no nosso Pessoa e no Argentino Borges, e contou-nos um pouco da vida dos três, a infância, a passagem para a vida adulta e a descoberta da escrita como forma de entenderem o mundo.

Não é um livro fácil, embora a escrita não seja complicada, por não ser o típico romance, com uma narrativa estruturada de forma clássica, exige alguma concentração extra. Os capítulos pequenos permitem que se seja uma leitura dinâmica e que consigamos imprimir o ritmo mais pausado que a escrita impõe. 
Gostei, essencialmente porque a escrita é refrescante e achei curioso que as três personagens sejam tão diferentes uns dos outros, embora sejam mais ou menos contemporâneos. A única característica que os une é mesmo a imaginação e a vontade de escrever, por razões diferentes, como forma de recriar a própria vida. Os três muito marcados por episódios da infância, pela educação e costumes de cada país. 

Gostei! É um escritor a manter debaixo de olho.

Recomendo!

Boas leituras!

Excerto:
De Karl - "Sente-se um silêncio impossível, um silêncio que desafia a cidade inteira. Há eléctricos parados no meio da rua e os passageiros espalhados à volta de cabeça no ar. Durante alguns minutos ninguém se mexe, a cidade está parada. De repente um miúdo remendado decide romper o impasse com um salto e despudor, a bolsa de uma senhora desatenta é um pretexto como outro qualquer, ela desce o olhar e grita desapossada, mas o rapaz já vai longe. Gritos, comentários, alguém que chama a Polícia. A cena dessacraliza os olhares e há agora quem descubra que é tarde e faz frio, que não é a primeira vez que o céu arde e a humanidade ainda por cá anda, com a fome de sempre e outras coisas em que pensar."

De Fernando - "Os homens multiplicam-se a cada cruzamento, os homens são assim. Caminho para aqui, caminho por ali, uma direcção na vida e outra no pensar. Quatro cruzamentos são dezasseis homens, vinte são um milhão, quarenta e oito mil, quinhentos e setenta e seis homens. Gabardine ou sobretudo, café curto ou cheio, a pé ou de eléctrico, almoço no escritório ou no Alves, dezasseis homens. Passou um meio dia e é já difícil encontrar mesa onde sentar tanta gente, acabe o dia, venha outro, uma semana, um mês, um ano, e nem na China cabem os homens que saem de um homem."

De Jorge - "Por fim, lá se chega à idade de ver a vida pelo que não chegou a ser. O presente é terrivelmente condicionado pelo passado e por tantas leviandades cometidas sobre o tempo. Tudo a que um dia se brincou acaba por ser só memória e caminho, degrau de uma escada sempre a estreitar. Depois um homem senta-se à mesa e escreve por vingança contra si mesmo - para viver outras vidas, como dizem alguns."

outubro 12, 2013

The Walking Dead , A Ascensão do Governador - Robert Kirkman & Jay Bonansinga

Título original: The Walking Dead: Rise of the Governor
Ano da edição original: 2011
Autor: Robert Kirkman & Jay Bonansinga
Tradução do inglês: Casimiro da Piedade
Editora: Saída de Emergência

"No universo de "The Walking Dead" (uma admirável BD agora transformada numa premiada série de TV) não há maior vilão do que o Governador. Ele é o déspota que governa a cidade isolada de Woodbury e tem doentias noções de justiça: seja a forçar prisioneiros a combater zombies na arena para divertimento dos locais, seja a destroçar violentamente aqueles que o confrontam. O Governador é um vilão que tão cedo não se esquece e a sua história é uma das mais controversas que Robert Kirkman, criador de "The Walking Dead", alguma vez concebeu. Pela primeira vez, os fãs irão descobrir como é que o Governador se tornou neste homem implacável e aquilo que o levou a tais extremos." 

The Walking Dead é, originalmente uma BD extraordinária, cujo fim ainda está por escrever. A BD deu origem à série de televisão de que todos já ouvimos falar e que provavelmente muitos de nós segue. É uma série visualmente poderosa, com uma história que, não sendo sempre fiel à BD, mantém o espírito da mesma. 

The Walking Dead, A Ascensão do Governador é um dos muitos livros satélites que irão surgir relacionados com a história. O Governador é uma das personagens mais sinistras e assustadoras da BD, e é a história dele que o livro vai contar. Vamos conhecer-lhe as frustrações, as perdas, os medos e, infelizmente não lhe conhecemos vitórias. Talvez se existissem vitórias no mundo pós-apocalíptico onde todos lutam para sobreviver, o Governador pura e simplesmente não existisse. Bastava uma pequena vitória, e este livro não teria sido escrito ou teria outro nome no título. 

The Walking Dead , A Ascensão do Governador só faz sentido para quem, no mínimo, segue a série de televisão, porque sem conhecer o Governador não vejo qual o interesse em querer conhecer o Phillip. Não vou falar da história que este livro conta, seria fácil contar-vos o percurso de Phillip em duas ou três frases, o que seria obviamente redutor. 
O livro em si, é normalíssimo, com uma escrita simples, sem floreados e com muitas descrições agoniantes, como seria de esperar num cenário onde os mortos teimam e regressar à vida e insistem em pôr o dente em tudo que vive. É por isso um livro que se lê bem, mas sem grandes entusiasmos. Pessoalmente só queria saber quando é que Penny, a filha que o Governador mantinha "viva", iria tornar-se uma mordedora e qual iria ser o papel de Phillip. 
Não creio que o livro acrescente muito à história original e também não torna o Governador mais humano. Acho até que o twist final acaba por não fazer sentido face ao que conhecemos do comportamento do Governador. 

Vale a pena ler? Vale, se tiverem numa fase mais no-brainer, porque o livro é bem linear, puro entretenimento. E, se este tipo de histórias com zombies e afins for algo que gostem de ler é de certeza um livro de que vão gostar. 
É essencial para os fãs de The Walking Dead? Não acredito que seja. O que vale mesmo a pena é seguirem a BD. Essa sim, aconselho a todos, mesmo aos que não vão muito à bola com histórias de zombies e, para os que são mais sensíveis à questão do sangue e vísceras expostas, informo que a BD é a preto e branco. :-) 
A história de Robert Kirkman é muito mais do que isso, acreditem. 

Boas leituras! 

Excerto:
"Baixa a arma e olha para a sua filha. A menos de dois metros de distância, ataca à árvore, a Penny rosna com a filme animalesca de um cão raivoso. O seu rosto de porcelana encolheu até se transformar numa cabaça esbranquiçada e apodrecida, e os olhos que outrora foram tão suaves parecem agora pequenas moedas de prata. Os seus lábios inocentes em forma de túlipa estão agora enegrecidos e encurvados para fora, revelando dentes escuros e lodosos. Ela não reconhece o pai."

setembro 22, 2013

A Última Noite em Twisted River - John Irving

Título original: Last Night in Twisted River
Ano da edição original: 2009
Autor: John Irving
Tradução do inglês: Fátima Vieira
Editora: Civilização Editora

"Em 1954, no pavilhão de refeições da serração de um acampamento de lenhadores, no Norte do New Hampshire, um ansioso rapaz de doze anos confunde a namorada do chefe da polícia local com um urso. Tanto o rapaz de doze anos como o pai são forçados a fugir de Coos County para Boston, Vermont e Toronto, perseguidos pelo implacável polícia. O seu único protector é um lenhador libertário, antigo condutor de toros, e um velho amigo deles.
Numa história que abrange cinco décadas, A Última Noite em Twisted River retrata o último meio século nos Estados Unidos."

É sempre um prazer voltar às histórias de John Irving, e A Última Noite em Twisted River não foi a excepção, felizmente, mais que não seja porque o livro é grandote e porque foi a companhia escolhida para as férias deste Verão. :)

Mais uma grande história de um escritor que é tudo menos comum e cujas histórias são sempre mirabolantes e estranhas, à falta de melhor palavra que descreva os livros de John Irving.
Já o disse numa outra opinião que os livros de John Irving mais parecem uma novela televisiva por não se limitarem a um período da vida das personagens. Parece impensável não se conhecer a infância, explicação para tantas escolhas, atitudes e comportamentos. E deixar de fora a velhice ou mesmo a morte não fecharia o círculo. Com John Irving não existem finais dúbios ou em aberto e nós acompanhamos as personagens quase como se estas fossem nossos familiares. Gosto muito desta característica nas histórias dele. :-) 
Não vou sequer arriscar-me a entrar muito em pormenor na história porque, pedaços soltos sem o contexto apropriado são apenas isso, pedaços soltos de um livro que não deixa nada por contar. Vou só dar-vos um "cheirinho" do trio protagonista Dominic e Daniel Baciagalupo, pai e filho, e Ketchum o melhor e mais velho amigo dos dois.

A história tem início em 1954 em Coos County, junto ao Twisted River, onde o viúvo Dominic é o cozinheiro da serração da região. Dominic é um homem difícil de descrever. Casou cedo com a sua "quase não prima" Rose, a mãe de Daniel, com quem chegou a Coos County, em busca de um recomeço, onde ninguém os conhecesse e julgasse. Nem tudo corre como planeado, e o agora viúvo Dominic, tornou-se num homem solitário, cauteloso e prudente, quase como se não quisesse provocar novos acontecimentos nefastos à sua volta. Para além do filho, Dominic, vive para cozinhar, gosta de mulheres com excesso de peso (Rose foi a sua única mulher pequena e delicada) e de Ketchum, embora não existam no mundo duas pessoas mais diferentes. 
Conhecemos Daniel Baciagalupo com 12 anos, a única criança a viver na serração. É um miúdo solitário, inseguro mas inteligente com uma imaginação fértil que acaba por despoletar os acontecimentos que levaram à fuga dele e do pai, a meio da noite, de Coos County. É nessa última noite em Twisted River que Daniel começa a desenhar na sua cabeça as histórias que o vão tornar num escritor de sucesso uns anos mais tarde. Herda do pai a constante sensação de que algo de terrível lhe está reservado e vive angustiado com a certeza de que sobreviverá a Joe, o filho que tem anos mais tarde e que o manteve longe da guerra do Vietname. 
Finalmente, Ketchum é um dos condutores de toros da serração. É um homem rude, que se afastou, por razões nunca explicadas dos filhos que sabemos ter. É violento, amargurado, anda sempre armado e é contra todo e qualquer sinal de progresso. É, no entanto, uma personagem de quem é fácil gostar. Gosta verdadeiramente dos Baciagalupo e leva muito a sério a promessa que fez a Rose de que cuidaria deles. É muitas vezes desconcertante, mas é das personagens mais interessantes do livro.

Em A Última Noite em Twisted River, John Irving atravessa cinco décadas da história dos EUA. No interior do país, encontramos homens e mulheres rudes, sem papas na língua que viveram e trabalharam em lugares inóspitos e agressivos, muitos deles descendentes de índios. Nas grandes cidades como Boston, temos os imigrantes, os que vieram em busca do sonho americano. 
São estas as pessoas que construíram o país e o transformaram na potência que é hoje em dia. 
Os Baciagalupo e Ketchum vivem a guerra do Vietname, a guerra em que os EUA perderam mais do que aquilo que poderiam ter ganho. Uma geração inteira de jovens, os que tiveram de a combater e os que tudo fizeram para não participar nela. Assistem ao 11 de Setembro, quase como algo inevitável devido à política externa do país e ao crescente anti-americanismo.
É, também por isso, um livro interessante, por nos apresentar várias perspectivas do chamado sonho americano. O EUA são um país enorme, com muitas assimetria, composto por pessoas tão diferentes e culturalmente tão diversas. 

Para além do tema EUA, onde a visão é, provavelmente a do próprio John Irving, este não deixa de lado todos os seus elementos fetiche: o sexo apresentado como algo estranho e bizarro, os ursos, a perda e a solidão. As personagens de John Irving são sempre um pouco estranhas, mas acima de tudo são solitárias, inadaptadas ou, de certa forma, deslocadas da realidade que as rodeia.
John Irving partilha, ainda connosco um pouco do processo criativo, de como nascem as histórias, de como muitas vezes o ponto de partida é algo do próprio escritor, que depois envolve tudo em muita ficção. De como, nem o próprio escritor se apercebe de quão autobiográficos podem ser os seus livros. Em A Última Noite em Twisted River, Daniel Baciagalupo, torna-se um escritor de sucesso e é ele o autor de A Última Noite em Twisted River, a obra que levou uma vida inteira a ser escrita e que só conseguiu escrever depois de ter vivido tudo o que viveu.
 
Não sendo o melhor livro que já li dele, é mesmo assim um livro que a meu ver vale muito a pena ler. 

Gostei e recomendo, claro!

Boas leituras!

Excerto:
"Estava uma noite quente, sem vento. Danny sabia que ouviria facilmente o disparo de uma arma mesmo a alguns quilómetros de distância numa noite como aquela. O que não sabia de início era: o que queria ele realmente ouvir? E qual seria o significado de ouvir ou não ouvir o disparo? Era mais do que a sobrevivência do raçado de husky-pastor-que-atacava-pelas-costas que o escritor esperava escutar. (...) Foi então que o escritor se apercebeu do que estava à escuta: de nada. Era nada que ele esperava ouvir. Era um não-disparo que significaria que o pai estaria a salvo - que o cowboy, tal como Paul Polcari, poderia nunca vir a premir o gatilho."