fevereiro 28, 2016

História de um gato e de um rato que se tornaram amigos - Luís Sepúlveda

Título original: Historia de Mix, de Max, y de Mex
Ano da edição original: 2012
Autor: Luís Sepúlveda
Ilustrações: Paulo Galindro
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora
 
"Max vive em Munique com os seus pais e irmãos — e com Mix, o seu inseparável gato preto com uma mancha branca na barriga. Amigos desde a infância, quando Max cresce e decide mudar de casa, leva Mix consigo. Mix adora viver no novo apartamento. Mas quando Max começa a trabalhar e não pode estar tanto tempo em casa, Mix, que está a envelhecer e a perder a visão, sente-se cada vez mais sozinho.
Um dia, Mix ouve uns passinhos suaves vindos da despensa e descobre que há um ladrão a comer os cereais crocantes do dono. Esperto, Mix deixa-se ficar quieto e, de repente, com a rapidez de outros tempos, estica a pata e sente o corpo trémulo de um minúsculo ratinho. Mex, como é batizado, é um ratinho mexicano, muito medroso e charlatão. Mas os verdadeiros amigos apoiam-se um ao outro e juntos aprendem a partilhar o que de melhor têm dentro de si.
Baseado num episódio da vida de um dos filhos de Luis Sepúlveda, a História de um gato e de um rato que se tornaram amigos oferece-nos uma vez mais uma fábula singela e divertida sobre o verdadeiro valor da amizade."
 
Um livro para pequenos e graúdos sobre a amizade e a importância dos outros nas nossas vidas. Por mais que se possa viver sozinho, a vida leva-se melhor se tivermos com quem partilhar os bons e os maus momentos.
 
Gostei da mensagem e muito das ilustrações de Paulo Galindro.

Recomendo, claro. 
 
Boas leituras!











Excerto (pág. 64):
"Durante o tempo que o gato e o rato partilharam, longo ou breve, isso não tem importância porque a vida se mede pela intensidade com que é vivida, Mix viu com os olhos do seu pequeno amigo e Mex tornou-se forte com o vigor que emanava do seu amigo grande.
E os dois foram felizes, porque sabiam que «Os verdadeiros amigos partilham o melhor que têm.»"
 

fevereiro 21, 2016

A Ilha - Victoria Hislop

Título original: The Island
Ano da edição original: 2005
Autor: Victoria Hislop
Tradução: Isabel Baptista
Editora: Civilização Editora

"Numa altura em que a sua vida estava dominada por um dilema, Alexis Fielding sentia-se mais determinada do que nunca a levantar o véu de mistério que sempre encobriu o passado da sua mãe, Sofia. Alexis sabia apenas que Sofia tinha sido criada numa aldeia de Creta. Decidiu, então, fazer uma viagem até às ilhas gregas e, para sua surpresa, Sofia achou que estava na altura de ela saber mais acerca do passado. Antes de Alexis partir para a sua viagem, Sofia deu à filha uma carta para entregar a uma velha amiga, Fotini, e prometeu-lhe que através dela ficaria a saber muito mais...
Quando encontrou Fotini, Alexis ficou finalmente a conhecer a história que Sofia escondeu toda a vida: a história de uma família dilacerada pela tragédia, pela guerra e pela paixão. Alexis descobre que o passado poderá ajudá-la a resolver o futuro..."


Alexis Fielding sente que chegou a uma altura da vida em que deve parar para pensar antes de fazer escolhas que irão determinar de forma irreversível a sua vida futura. Começa a ter dúvidas sobre a relação de alguns anos e sobre o rumo que deve dar à mesma. Casar ou partir para outra. Será que está a ser demasiado exigente, a desejar para ela um arrebatamento que apenas conhece dos filmes?
Embora não consiga perceber porquê, sente que os segredos que a mãe esconde sobre o seu passado a poderão ajudar, de alguma forma, a tomar uma decisão que a leve a ser verdadeiramente feliz.
A única coisa que sabe sobre a sua mãe Sofia é que nasceu e cresceu numa pequena aldeia de Creta. O passado de Sofia sempre foi assunto proibido na casa dos Fielding e todos sempre respeitaram a vontade de Sofia. Alexis vê numa viagem à Grécia com o namorado, a oportunidade perfeita para tentar mais uma vez perceber o que é que a mãe tanto quer esconder e diz-lhe que está a pensar visitar a aldeia onde nasceu. Inesperadamente Sofia, aceita e reconhece que está na altura de Alexis saber tudo o que há para saber sobre o seu passado. Não será ela a contar, porque há coisas que só podem ser compreendidas estando lá, vendo com os próprios olhos e por isso entrega a Alexis uma carta que ela deve dar a Fotini, uma velha amiga da família. Nessa carta Sofia pede ajuda a Fotini, pede-lhe que explique tudo à filha, que não lhe esconda nada.
O que Alexis descobre sobre o passado da mãe e da sua família vai ajudá-la a perceber, entre muitas outras coisas, que o arrebatamento que apenas conhece dos filmes é possível e que não existem barreiras para o amor e para a amizade verdadeiros.

Há livros que, por um motivo ou outro, metemos na cabeça que haveremos de ler um dia. Uns por razões que até conseguimos explicar, outros nem tanto. A Ilha de Victoria Hislop encaixa na última hipótese. Não faço ideia quando é que tomei conhecimento da sua existência, nem porque é que anda há anos na minha cabeça, fazendo parte da minha lista de "livros a ler". A verdade é que acabei por comprá-lo e, embora as expectativas não fossem muito elevadas, tinha alguma vontade de ser surpreendida e de descobrir uma nova escritora.
Embora o livro não seja mau, porque não o é, também não é diferente ou sequer muito original, se comparado com outros dentro do género. A escrita não é especialmente inspirada, e a história, embora tenha a originalidade de se passar numa colónia de leprosos em Creta, na Grécia, não é muito mais do que uma história de amor, ou várias histórias de amor, que tornam o livro num romance, mais ou menos cor-de-rosa e pouco mais. A Ilha não é o tipo de livro que me encha as medidas como leitora e Victoria Hislop não me parece ser uma escritora que me vá arrebatar, nem ser das que, dentro do género, por vezes me dá vontade de ler. Tenho pena, porque estava efetivamente à espera de algo mais original.

Embora o livro não vá de encontro ao meu gosto pessoal, se me distanciar e colocar de lado o meu gosto, recomendaria sem hesitações. O livro lê-se bem, é melodramático q.b., mas o que me leva a recomendá-lo sem hesitações é o facto a autora explorar as relações entre as personagens tendo como pano de fundo uma colónia de leprosos, Spinalonga. Não é uma escolha óbvia e isso é interessante.

Boas leituras!

Excerto (pág.43):
" - Eu podia dizer «vou começar pelo princípio», mas aqui não há um verdadeiro princípio - disse ela. - A história da tua mãe é a história da tua avó e é também a história da tua bisavó. E a história da tua tia-avó também. As vidas delas estão entrelaçadas e é a isso que nos referimos de facto quando falamos do destino na Grécia. Aquilo a que chamamos destino é em grande parte decidido pelos nossos antepassados, não pelas estrelas. Quando falamos sobre a história antiga aqui, referimo-nos sempre ao destino; mas não nos queremos referir de facto ao incontrolável. É claro que há eventos que parecem acontecer vindos do nada e que mudam o curso das nossas vidas, mas o que realmente determina aquilo que nos acontece são as acções daqueles que estão à nossa volta e daqueles que vieram antes de nós."

fevereiro 20, 2016

Morreu Umberto Eco

Umberto Eco (foto aqui)
Umberto Eco morreu... Mais um dos "meus" escritores que nos deixa, de forma inesperada. Existem pessoas que para nós não envelhecem e portanto não nos preparamos para a inevitabilidade da sua morte. Umberto Eco era uma dessas pessoas, Saramago outra. Por continuarem a escrever quase até ao dia em que morrem, provocam em nós a ilusão de que são, de certa forma, imortais.

Umberto Eco morreu ontem com 84 anos. A literatura fica mais pobre, o mundo fica um pouco mais triste. Fica um legado de obras que dificilmente cairão no esquecimento mas, não vá o diabo tecê-las, podiam ganhar um lugar no Cemitério dos Livros Esquecidos de Carlos Ruiz Zafón.

Que o bom humor e a inteligência nunca deixem de andar juntos nos livros das nossas vidas.

Obrigada Umberto Eco!

fevereiro 15, 2016

O Nome da Rosa - Umberto Eco

Título original: Il Nome della Rosa
Ano da edição original: 1980
Autor: Umberto Eco
Tradução: Jorge Vaz de Carvalho
Editora: Gradiva

"Um estudioso descobre casualmente a tradução francesa de um manuscrito do século XIV: o autor é um monge beneditino alemão, Adso de Melk, que narra, já em idade avançada, uma perturbante aventura da sua adolescência, vivida ao lado de um franciscano inglês, Guilherme de Baskerville.
Estamos em 1327. Numa abadia beneditina reúnem-se os teólogos de João XXII e os do Imperador. O objecto da discussão é a pregação dos Franciscanos, que chamam a igreja à pobreza evangélica e, implicitamente, à renúncia ao poder temporal.
Guilherme de Baskerville, tendo chegado com Adso pouco antes das duas delegações, encontra-se subitamente envolvido numa verdadeira história policial. Um monge morreu misteriosamente, mas este é apenas o primeiro dos sete cadáveres que irão transtornar a comunidade durante sete dias. Guilherme recebe o encargo de investigar esses prováveis crimes. O encontro entre os teólogos fracassa, mas não a investigação do nosso Sherlock Holmes da Idade Média, atento decifrador de sinais, que através de uma série de descobertas extraordinárias, conseguira no final encontrar o culpado nos labirintos da Biblioteca."

E aqui está, Umberto Eco, um dos meus autores favoritos. Não sei do que gosto mais, se da escrita, das histórias, do sentido de humor discreto, ou do desafio constante que é cada livro dele, a nível mental. 
O Nome da Rosa é uma releitura. Li-o há muitos anos e foi um daqueles livros de que gostei, adivinhando apenas uma ínfima parte da grandeza do autor que tinha acabado de conhecer. Foi um daqueles livros, à semelhança do primeiro que li de Saramago, Memorial do Convento, que me fez pensar, provavelmente tropecei em ti demasiado cedo. No entanto, deixaram-me uma impressão tal que olho para eles, até hoje, como sendo dos principais responsáveis pela leitora que sou hoje. :)

Esta reedição, do primeiro romance de Umberto Eco, com uma nova tradução (chancela Gradiva) de uma edição revista pelo próprio autor, pareceu-me uma óptima oportunidade para colmatar esta lacuna nas minhas estantes, e para voltar a reler um livro que me tinha deixado muito boas impressões.

O Nome da Rosa é, à semelhança de outros do autor, um livro pesado, em termos históricos e culturais, que nos inunda com conhecimento e factos até ao último ponto final. Não nego que às vezes o achei demasiado denso, mais maçudo que os outros que já li dele, estes sobre temas ou épocas até mais obscuras para mim do que a que é retratada neste. No entanto, e mais uma vez, a escrita de Umberto Eco leva-nos de um extremo ao outro, aliviando a pressão na leitura de forma hábil e, quando damos por ela, estamos na última página e de sorriso no rosto. :)

Como diz na sinopse, a ação de O Nome da Rosa passa-se em plena idade média numa abadia beneditina, numa altura em que a inquisição reinava. A abadia foi o lugar escolhido para uma histórica reunião entre os teólogos do Papa João XXII e do Imperador Luís IV. Nela, os seguidores de João XXII e do Imperador esgrimem argumentos sobre os Franciscanos, para uns - os seguidores de João XXII - não passam de hereges que devem arder na fogueira, para outros - os do lado do Imperador - um grupo de homens que pregam a pobreza, a abnegação e a ajuda ao próximo como forma de viver a religião e o amor a Deus.
Guilherme de Baskerville, ele próprio um franciscano chega à abadia, acompanhado de Adso de Melk, um adolescente curioso, seu discípulo e escrivão e o narrador desta história. Guilherme viaja até à abadia com a missão de mediar a reunião que vai ocorrer e acaba envolvido numa investigação policial. No dia em que chegam, os monges lidam com a morte misteriosa de um dos seus jovens monges. Conhecendo o poder de dedução de Guilherme de Baskerville, o abade pede-lhe que tente trazer alguma luz à misteriosa morte de um dos seus irmãos, antes que toda a delegação chegue para a reunião. Mas, nem Guilherme, com o seu extraordinário raciocínio, e muito menos Adso de Melk, poderiam prever a dimensão da tragédia que está para se abater sobre a abadia...

Todas as mortes violentas que ocorrem na abadia, parecem estar ligadas à biblioteca, uma das maiores e mais ricas bibliotecas do mundo. O acesso à biblioteca era muito restrito. Existem livros perigosos, o conhecimento deve ser partilhado apenas com alguns, e de acordo com o critério de poucos. Existem livros que nunca deveriam ter sido escritos porque podem pôr em causa toda a religião e a forma como é pregada e praticada. Existem outros livros cujos ensinamentos devem ser mantidos no seio de um grupo restrito e privilegiado para que não seja diminuída a importância destes na sociedade. Existem pessoas capazes de tudo para defender um ideal, uma visão e, especialmente existem pessoas capazes de tudo quando acreditam estar a fazer a vontade de Deus.

O Nome da Rosa é muito mais do que um policial, e também o retrato de um época onde a Igreja tinha muito poder e lutava, com todas as armas, para manter e aumentar a influência que tinha sobre as pessoas. Uma época onde, ao mesmo tempo até se respirava algum desejo de mudança, com algumas correntes a pregarem uma maior aproximação às vidas dos fiéis, ao despojamento de bens materiais e a uma vida dedicada aos outros. 
Uma época onde a ciência ainda era vista como uma heresia, algo que punha em causa a existência de Deus. A luta interna dos homens de fé que, ao mesmo tempo, tinham sede de conhecimento, muitos deles forçados a uma vida eclesiástica como único meio para aceder a esse mesmo conhecimento.Um equilíbrio difícil de manter, principalmente de manter longe das fogueiras da Santa Fé. :/

Resumindo e baralhando, O Nome da Rosa é um livro que devem ler, numa altura da vossa vida em que tenham uma maior disponibilidade mental porque vai valer muito a pena. Umberto Eco é um autor que não podem deixar passar ao lado.

Boas leituras!

Excerto (pág. 174):
" - Digo que muitas destas heresias, independentemente das doutrinas que defendem, encontram sucesso entre os simples, porque lhes sugerem a possibilidade de uma vida diferente. Digo que, muito amiúde, os simples não sabem muito sobre doutrina. Digo que aconteceu frequentemente que turbas de simples confundiram a pregação cátara com a dos patarinos, e esta em geral com a dos espirituais. A vida dos simples, Abbone, não é iluminada pela sabedoria e pelo sentido vigilante das distinções que nos fazem sábios. E está obcecada com a doença, com a pobreza, tornada balbuciante pela ignorância. Muitas vezes, para muitos deles, a adesão a um grupo herético é apenas uma maneira, como outra qualquer, de gritar o próprio desespero. Pode-se queimar a casa de um cardeal seja porque se quer aperfeiçoar a vida do clero, seja porque se julga que o Inferno que ele prega não existe. Isso faz-se sempre porque existe o inferno terreno, em que vive o rebanho de que nós somos pastores."


Deixo-vos o trailer da adaptação para o cinema do livro de Umberto Eco, The Name of The Rose, com o fantástico Sean Connery. Do que me lembro é bastante fiel à história do livro.

dezembro 28, 2015

O Rebate - J. Rentes de Carvalho

Título original: O Rebate
Ano da edição original: 1971
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal Editores

"Numa aldeia de Trás-os-Montes a chegada de um dos seus filhos emigrados para França, que vem endinheirado e casado com uma francesa, provoca um verdadeiro cataclismo.
Em França o Valadares, trabalhando na terra como um mouro, é premiado com a fortuna do patrão desde que case com a filha - moça doidivanas e descontrolada.
Valadares e a mulher vêm a Portugal quando das tradicionais festas da aldeia. A partir desse momento a perturbação causada pelo comportamento de ambos - ele, através do dinheiro, buscando uma ingénua e primitiva glória no seu burgo; ela usando a sedução e a provocação erótica na fauna masculina aldeã - desencadeia um rol de acontecimentos desgraçados que o rebate final expressa eloquentemente."

Tinha saudades de J. Rentes de Carvalho mas ainda não foi este livro que me encheu o coraçãozinho de fã. Tendo em conta a minha opinião sobre o livro de David Soares - Lisboa Triunfante (post anterior), tenho algum pudor em dizer que tive, novamente, muita dificuldade em entrar na história, embora neste por razões diferentes e menos esotéricas. Se na próxima leitura voltar a acontecer, apago estes dois posts e faço uma pausa nas leituras, porque o problema é claramente meu! :) 
O que é que não resultou em O Rebate? Muitas das vezes não fazia ideia de quem estava a falar. As vozes de todos na aldeia confundem-se, e ao não se distinguirem uns dos outros (talvez seja mesmo essa a intenção), a leitura torna-se confusa e algumas vezes frustrante, mas passemos ao que interessa. :)
Numa aldeia em Trás-os-Montes, todos aguardam com alguma ansiedade o regresso de um filho da terra, o Valadares, emigrado em França. Diz-se que enriqueceu por lá e que vem casado com uma francesa.


O livro acaba por ser um retalho de pequenas histórias individuais, que se vão tocando, mas sem alterarem muito o comportamento da comunidade. Um dos habitantes suicida-se e a mulher perde o filho que carrega na barriga. Seria o seu sexto filho e a vida na aldeia segue como dantes. Uma mulher, vítima de violência doméstica, sai de casa à procura do marido que a engana com outra e é encontrada no fundo de um penhasco. O marido, agora viúvo, torna-se obcecado por uma miúda mais nova, com idade para ser filha dele. A comunidade segue inalterada. O jovem padre da aldeia, que vive atormentado, não se sabe muito bem com o quê, tenta suicidar-se e o seu rebanho nem pestaneja.
A única pessoa que parece capaz de agitar as águas é mesmo a francesa, a mulher do Valadares, que foi obrigada a casar com o português. Incapaz de se adaptar à vida da aldeia, lança a confusão entre os homens da aldeia, apenas para provocar o marido ou apenas porque é divertido.
O Valadares, que vinha convicto de vir impressionar os seus compatriotas, com o seu sucesso em França, encontra uma inesperada resistência aos seus encantos e ao seu dinheiro.
Por fim, em toda a aldeia existe uma tensão sexual quase palpável, com origem em desejos reprimidos e recalcados e que parece ser a única coisa que une todos os homens da aldeia.

A aldeia transmontana retratada em O Rebate não vai de encontro à imagem bucólica e virtuosa da vida no campo, alimentada na altura pelo Estado Novo (o livro foi escrito em 1971). Nesta aldeia transmontana habitam homens embrutecidos pelo álcool, pelas dificuldades da vida e pela falta de moral. Habitam mulheres embrutecidas pelos brutos dos maridos, pela falta de oportunidades e incapacidade de fazer melhor.
É uma aldeia habitada por gente pobre e remediada, mas essencialmente é uma aldeia cujos habitantes são, na sua essência amorais, oportunistas, mesquinhos e tacanhos. Curiosamente a pessoa mais sã da aldeia é mesmo o bêbado da aldeia.
 
Não fosse o facto de não me ter adaptado à forma como a história é contada, sem que se consiga perceber, a maior parte das vezes, a que personagem o autor se está a referir, e este livro teria tudo para me encher as medidas. A história é interessante e o retrato de época, carregado de crítica social está muito bem conseguido, juntando o facto de ser um livro de J. Rentes de Carvalho poderia ter sido memorável. Mas infelizmente, o que me ficou desta leitura foi a memória da frustração por não estar a conseguir entrar no ritmo da história...

Não posso não recomendar J. Rentes de Carvalho. Este recomendo, mas para uma altura em que se sintam com maior capacidade de concentração.

Boas leituras!

Excerto (pág. 23):
"Faziam duas terras de pão, ao terço, mas paga a semente e o adubo, que fica? Cada colheita trazia a ameaça da venda do palheiro, porque casa meeira ninguém queria e a horta não prestava, plantavam lá meia saca de batatas e um cesto de nabos, o resto do ano iam à jeira ou abalava ele com os resineiros pela serra fora, aos meses. Lágrimas que vinham da aflição de agora e dos males sem cura, do filho nascido morto, e deste por nascer, lágrimas de tudo. A fazer gastos e tinham tantas necessidades, cheios de dívidas! O Marques ameaçava, guardava o dinheiro das jeiras por conta do adubo, ou do que teriam de comprar - «lá recebes!» mas nunca o viam, sempre com fome, sempre a dever, só a roupa do corpo. Um dia nem os remendo teriam onde pegar.
Parou, a não acreditar nos olhos, uma burra presa à argola do palheiro e a outra, solta, a focinhar nas silvas do muro. Correu aos tropeções, tomada de um pressentimento, sem cautelas, insensível às topadas, sem ar.
 - Ó Chico!
As burras, despertas, levantaram a cabeça. Abrandou a corrida, sem poder mais, o ventre despegado, encostou-se à porta, incapaz de chamar outra vez."

dezembro 25, 2015

Lisboa Triunfante - David Soares


Título original: Lisboa Triunfante
Ano da edição original: 2008
Autor: David Soares
Editora: Saída de Emergência

"Lisboa Triunfante é um romance épico sobre a rivalidade entre duas figuras misteriosas, cuja contenda milenária se cruza com a história da capital portuguesa. Desde as origens pré-históricas de Lisboa até aos anos turbulentos que antecederam a implantação da República, passando pela elevação da cidade a capital do a Reino por Afonso III e pela construção enigmática do Mosteiro dos Jerónimos, a galeria de personagens que dão vida a Lisboa Triunfante contém figuras como Frei Gil de Santarém, D. João V e Aquilino Ribeiro. Reunindo elementos de romance histórico e fantástico, este é um livro definitivo sobre uma Lisboa mágica, que possui tanto de reconhecível quanto de maravilhoso. Lisboa Triunfante é um triunfo da imaginação."

De David Soares apenas tinha lido O Evangelho do Enforcado de que gostei bastante (a minha opinião aqui). Não sei se a minha opinião sobre este Lisboa Triunfante sofreu por ser o meu segundo livro de um autor que me deixou com expectativas elevadas... A verdade é que tive muita dificuldade em entrar na história, não me identifiquei com a escrita que achei, principalmente no início, forçada na utilização de termos e expressões que, duvido alguém saiba o que querem dizer. Achei a história confusa. Tenho pena de não ter conseguido apreciar o livro porque ao ler outras opiniões fico com a sensação que me escapou qualquer coisa. :/

De uma forma muito resumida, porque confesso que tenho alguma dificuldade em opinar sobre este livro, Lisboa Triunfante, tendo como palco a cidade de Lisboa, conta a história da própria cidade e de sua construção. Lisboa é o fruto de uma luta intemporal entre duas forças poderosas, a raposa, trapaceira, imaginativa e criativa - adorada pelas mulheres - e o lagarto, símbolo da razão e da lógica - seguido pelos homens - acredita na destruição como catalisador da evolução e do desenvolvimento, o que resulta da destruição e sempre melhor do que aquilo que existia.
No início, numa Lisboa por inventar, era a raposa quem reinava, as mulheres eram as líderes numa incipiente sociedade pré-histórica até que os homens, orientados pelo lagarto, as derrotam e assistimos, através da escrita de David Soares ao aparecimento dos primeiros alicerces de Lisboa até aos dias de hoje. Lisboa é o resultado desta luta entre estas duas figuras poderosas, que lutam entre si, deixando as suas marcas na majestosa arquitectura da cidade.

A parte mais interessante são mesmo as descrições, que acredito serem próximas da realidade, de Lisboa em tempos idos. Os cheiros, as pessoas e os costumes.

E é isto. Não sei que mais dizer, a não ser que, embora não tenha adorado o livro, também não o odiei. Acho que não o entendi ou não me apanhou numa fase boa. Estes rodeios todos para vos dizer, que se o tivesse odiado não o recomendaria, no entanto recomendo. Recomendo porque embora não tenha sido leitura para mim, sinto que é definitivamente leitura para muitos, tendo em conta as opiniões que li sobre ele. Talvez numa outra vida venha a ser leitura para mim. :)

Boas leituras!

Excerto (pág. 25):
"A morte não era uma realidade desgostosa. Eles acreditavam que cada indivíduo tinha duas almas: uma que ascendia ao céu e outra que permanecia com as ossadas. Era esse espírito que urgia satisfazer para que não abandonasse a sepultura em busca dos vivos. O protocolo lúgubre era respeitado desde a descarnação. O cadáver era  desbastado com gumes de pedra até os ossos ficarem límpidos; em seguida, o estômago, morada dos espíritos, era queimado com frutas e flores para, consoante a forma do fumo, serem hierarquizados aqueles que iriam consumir a carne. A prática não condicionava o apetite das matriarcas que comiam sempre primeiro: os retalhos mais tenros, assim como o fígado, eram para elas. Naquela noite, o menino só tivera direito a um pedaço do músculo tibial porque tinha sido o último a comer: fora o fumo a falar. A chefe comera a coxa da mulher e dividira o fígado dela com as irmãs. Ele sabia que a chefe precisava de comer melhor que os outros para liderar, para se manter forte à frente do grupo, mas... A mãe dele tinha morrido e ele só tinha comido um bocado da canela?!
Matutou sobre isso durante a viagem enquanto tentou tirar a bolinha de carne dentro do buraco no dente."

outubro 16, 2015

Nenhum Olhar - José Luís Peixoto

Título original: Nenhum Olhar
Ano da edição original: 2000
Autor: José Luís Peixoto
Editora: Bertrand Editora

"Numa aldeia do Alentejo, com um pano de fundo de uma severa pobreza, o autor vai tecendo histórias de homens e mulheres, endurecidos pela fome e pelo trabalho, de amor, ciúme e violência: o pastor taciturno que vê o seu mundo desmoronar-se quando o diabo lhe conta que a mulher o engana; o velho e sábio Gabriel, confidente e conselheiro; os gémeos siameses Elias e Moisés, cuja terna comunhão se degrada no momento em que um deles se apaixona; ou o próprio Diabo. As suas personagens são universais, assim como a sua esperança face à dificuldade.«... a partir da segunda ou terceira sequência ficamos seguros de que a inclinação é fatal: vamos embater num limite, num muro, num enigma, na origem do mundo e no desastre final...»"
"«Hoje o tempo não me engana. Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um não quente de lume, e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse aqui a hora do calor. Não há nuvens, há riscos brancos, muito finos, desafiados de nuvens. E o céu, daqui parece fresco, parece a água limpa de um açude. Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu.»"

Desde Livro (opinião aqui) que nunca mais tinha lido José Luís Peixoto e depois deste Nenhum Olhar, espero que não passe tanto tempo até ao próximo livro dele.

Nenhum Olhar é um livro imensamente triste, cheio de silêncios e olhares que dizem tudo. Conversa-se pouco na aldeia alentejana que o autor retrata. 
As personagens vivem uma vida desencantada, algumas presas a convenções e ao que se espera deles. Vivem com a consciência de que abdicaram de lutar pela felicidade para cuidarem dos outros, para não romperem com as regras instituídas e estabelecidas. Não perseguiram a felicidade por cobardia ou porque, simplesmente, não saberiam como fazê-lo.
Outros nunca encontraram a felicidade e quando esta aparece não hesitam em agarrá-la com todas as forças que possuem. Outros ainda, tendo nas mãos aquilo que desejaram, estragam tudo por causa de mal-entendidos, da má língua do povo e da maldade de algumas pessoas.

Surpreendeu-me a capacidade de amar em gente que tem tão pouco. A profundidade dos sentimentos em pessoas que quase nunca tiveram razões para sorrir. Surpreendeu-me, ao mesmo tempo, a dormência dos que abdicaram de ser felizes e a dor atroz de quem vê a felicidade escapulir-se por entre os dedos sem que nada possa fazer para mudar o destino. Surpreendeu-me a falta de esperança e a capacidade de amar e de sofrer. Surpreende-me a imutabilidade do tempo, como se a aldeia vivesse presa a um paradoxo temporal, onde geração atrás de geração a história está condenada a repetir-se ad eternum.
Acima de tudo, surpreendeu-me a capacidade de José Luís Peixoto nos fazer sentir toda esta panóplia de sentimentos através de palavras tão simples e com a criação de momentos tão tristes e ao mesmo tempo tão enternecedores.

Nenhum Olhar retrata uma realidade triste com que todos nós nos conseguimos identificar, de certa forma. A vida nas aldeias isoladas, onde o tempo parece seguir outras regras, onde todos se conhecem, ou pensam conhecer e onde o destino parace ser mais certo do que a morte.

E sem nada ter dito sobre a história em si, acho que não preciso dizer mais nada, a não ser que recomendo sem qualquer hesitação. :)

Boas leituras

Excerto (pág. 209):
"A dor: um silêncio de sentido sobre todos os gestos, um abismo a calar o significado de todas as palavras, um véu a tornar o tempo inútil. A mulher que amara mesmo, que amara mesmo, e que não era mais nada no mundo. E a solidão era um céu maior que a noite e onde não havia mais que a noite e frio, era um lugar negro que o olhar vida."