abril 29, 2011

A Papisa Joana - Donna Woolfolk Cross

Título original: Pope Joan
Ano da edição original: 1996
Autor: Donna Woolfolk Cross
Tradução: Teresa Martinho Toldy
Editora: Editorial Presença

"Personagem histórica envolta em lenda, a papisa Joana protagoniza a notável ascensão de uma mulher que não aceita as limitações que a sua época e a sua religião lhe impõem. Dotada de uma inteligência esclarecida e livre, assim como de uma imensa força de carácter, esta mulher brilhante conquista o mais elevado grau da hierarquia religiosa da Igreja Católica. Apoiado numa investigação rigorosa, este romance não é por isso menos grandioso, cativante e verdadeiramente apaixonante, questiona causas que ainda hoje são polémicas e prende o leitor às complexidades da luta pelo poder, das conspirações e segredos políticos, dos fanatismos, das traições e das crises de fé que ameaçam fazer soçobrar a admirável Joana."

A Papisa Joana, relata a possível história de Joana, a menina de Inglehiem cuja sede de conhecimento, perspicácia e inteligência a levou a ocupar o lugar mais elevado na hierarquia da Igreja Católica, o de Papa.
Desafiando tudo e todos, Joana nunca deixou de questionar o mundo à sua volta, nunca baixou os braços perante os obstáculos que iam surgindo, nunca se resignou com respostas vagas que lhe não satisfaziam a imensa curiosidade pelo mundo que a rodeava. Enfrentou a violência e falta de amor do pai, fugindo para perseguir o seu sonho de estudar. Aguentou, por amor ao conhecimento, ser humilhada e comandada por homens bem menos capazes que ela, em funções de poder. Abdicando de tudo, do amor, da possibilidade de construir uma família e da vida como mulher, rompeu barreiras, ultrapassou os limites impostos pelos outros e conquistou o seu lugar no mundo. Não é por ter alcançado alguns dos seus feitos disfarçada de homem, que Joana deixa de ser uma personagem verdadeiramente inspiradora. :)
Uma mulher muito à frente do seu tempo, com uma visão desempoeirada do mundo, que baseava as suas acções na razão e não no que vinha escrito nos livros sagrados. Inteligente, perspicaz, de certa forma ingénua, tinha um coração grande e solidário, tratando todos de forma igual. Desejava melhorar a vida de todos os que a rodeavam, dar uma vida melhor ao povo, principalmente às mulheres.
Como disse, uma personagem verdadeiramente inspiradora. :)

Terá Joana existido ou não passa de um mito, uma lenda?
O livro é claramente um romance que tem como ponto de partida esta possibilidade mas, exceptuando alguns factos, tudo nele é ficção, pelo que acredito que Joana existiu, que chegou a Papisa, que a Igreja terá apagado o rasto histórico deste facto, mas não encaro este livro como a verdadeira biografia de Joana, aliás nem julgo ser essa a intenção de Donna Woolfolk Cross. O que este livro é, sem dúvida, é uma homenagem a todas a mulheres que, ao longo da história mundial, nunca baixaram os braços, que nunca se deixaram intimidar pelas adversidades, que nunca se resignaram à sua condição de seres inferiores e sem valor, mesmo que isso implicasse viver como um homem. Não sendo este um caso único na história, como a autora refere no fim do livro. O mais irónico nesta história é o facto de Joana nem sequer ser muito religiosa. A sua personalidade iquisitiva tinha alguma dificuldade em viver com verdades absolutas, impostas por homens que se escudavam atrás de um Deus que aparentemente considerava as mulheres seres inferiores, pouco mais que animais. Joana aproveitou-se de um sistema que a excluía e adaptou-se a este para que pudesse ser incluída e, para isso apenas teve de dizer que era um homem e não uma mulher. A partir desse momento todas as portas se abriram e ela teve acesso a todo o conhecimento disponível, conhecimento esse que pertencia à Igreja e só por isso ela acaba por fazer a "escola" católica toda e chega onde chegou.

Outra questão que este livro acaba por levantar é a fiabilidade dos factos históricos que temos como certos hoje em dia. Quantos desses factos não serão baseados em documentos e provas, interpretadas de forma errada por nós, porque na altura em que foram produzidos escondiam interesses cuja compreensão é para nós impossível de atingir? Quantos desses documentos, escritos por Homens, não têm segundas intenções, não satisfaziam interesses pessoais da época, deturpando assim o legado que foi deixado para as gerações futuras? Dá que pensar... :)

Não fiquei especialmente impressionada com a escrita ou com a forma como as personagens foram criadas. Achei a Joana boazinha demais, demasiado perfeita e algumas situações demasiado forçadas para que Joana demonstrasse, mais uma vez, a sua superioridade mental e humana. Por vezes tive a sensação que estava a ler um romance cor-de-rosa, talvez porque senti alguma imaturidade na escrita de Donna Woolfolk Cross, mas a verdade é que este livro acaba por demonstrar que quando a história é boa, o que acabei de referir não passam de pormenores. Pela homenagem, pela pertinência do tema, pelo interesse que a época em causa levanta, este é um livro a não perder e que aconselho sem qualquer hesitação. Leiam! :)

Excerto:
"A partir daí, aquilo tornou-se uma espécie de jogo entre eles. Sempre que havia oportunidade, não tantas vezes quanto Joana desejava, Mateus mostrava-lhe como desenhar letras no chão. Ela era uma aluna ávida de aprender; apesar de estar ciente das consequências, Mateus não conseguia resistir ao seu entusiasmo. Ele também adorava aprender; a paixão dele falava-lhe ao coração. Mesmo assim, até ele ficou chocado quando Joana veio ter com ele um dia, carregando a enorme Bíblia com encadernação em madeira, que pertencia ao pai de ambos.
- O que estás a fazer? - gritou ele. - Vai pôr isso no sítio; nunca lhe devias ter mexido!

- Ensina-me a ler.

- O quê?

A audácia dela era espantosa.

- Ora, vamos lá, irmãzinha, isso é pedir muito.
- Porquê?

- Bem... porque ler é muito mais difícil do que limitarmo-nos a aprender o alfabeto. Duvido mesmo que fosses capaz de aprender.

- Porque não? Tu aprendeste.

Ele sorriu indulgentemente:

- Sim, mas eu sou um homem."


Notas: Algumas páginas na internet sobre a existência ou não de uma Papisa Joana.
E muitos mais existem, é só pesquisarem. :)

E o trailer do filme que estreou em Portugal em Setembro de 2010 (existe ainda um filme de 1972 também acerca do mesmo tema):

abril 18, 2011

Jaime Bunda, Agente Secreto - Pepetela

Título original: Jaime Bunda, Agente Secreto
Ano da edição original: 2001
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote

"A moça se despediu da amiga e avançou para a avenida. Ainda conservava nos lábios o sorriso da despedida, quando parou bruscamente, assustada com o automóvel preto. O carro também estacou de súbito. O condutor viu o sorriso desaparecer dos lábios dela. Mediu num relance o tamanho dos seios pontudos, querendo furar o vestido muito curto. Esperou gentilmente que se refizesse do susto e continuasse a travessia. Ela hesitou, mas depois agradeceu com um vago sorriso para os vidros escuros e correu à frente do carro, mostrando o corpo meio de menina meio de mulher, moldado pelo vestido justo. Uma gazela, uma cabra de rabo de leque, pensou o motorista, sentindo compulsivos apetites de caçador. Arrancou com o carro e seguiu até ao fundo da Ilha."

Para desanuviar de umas leituras mais pesadas, em termos de temas, nada melhor do que ter o Jaime Bunda, do Pepetela, como companhia. Uma personagem com este nome só pode proporcionar uma leitura divertida. :) Foi o que aconteceu com este livro, que me fez sorrir, enquanto o lia no metro e que deve ter provocado alguns sorrisos, também, àqueles que repararam na capa, no título e, já agora no meu "delicioso" marcador! :p

Embora possa parecer um livro diferente daqueles a que o Pepetela nos acostumou, a verdade é que a única diferença é o tom em que está escrito, mais irónico e divertido. Fala de Angola independente e de toda a corrupção que parece proliferar por lá. Das desigualdades sociais e da facilidade com que se gasta o muito dinheiro que o país tem. Fala um pouco do deslumbramento em que alguns angolanos parecem viver, ansiando por uma posição que lhes dê poder e acesso ao tal dinheiro que parece perseguir os governantes do país e aqueles que gravitam à volta destes. O tema pode não ser novo, mas a forma como é abordado é uma novidade, não tanto para mim que já tinha lido o Jaime Bunda e a Morte do Americano (segundo livro com esta personagem de anca larga) e tendo em conta que o Jaime Bunda é uma personagem deliciosa, não há forma de não se gostar deste livro.

De uma forma muito resumida a história de Jaime Bunda, Agente Secreto é a história de um estagiário dos SIG (espécie de serviços secretos angolanos) que de repente é chamado a investigar a violação e homicídio de uma menina de 14 anos, uma "catorzinha". Jaime Bunda, alcunha que lhe serve como uma luva, é um jovem viciado em policiais americanos, única fonte dos seus conhecimentos de investigação criminal, que decide agarrar esta oportunidade com unhas e dentes. Com uma imaginação galopante e um instinto (ou sorte) extraordinário acaba, no decorrer da sua investigação, por "tropeçar" numa figura sinistra que todos temem. Numa história cheia de mal-entendidos, meias-verdades e golpes de sorte, Jaime Bunda acaba por se ver envolvido numa investigação que o vai tornar numa espécie de herói e tirá-lo da posição de eterno estagiário no Bunker (nome porque também são conhecidos os SIG). Nos entretantos, Jaime Bunda tem ainda de lidar com Florinda, a sua namorada que é casada com um traficante de diamantes que vai, finalmente tornar o seu negócio legal com a ajuda de um General. Tem ainda de aturar a má vontade da mulher do tio, a Tia Sãozinha, que não perdoa o facto de ter Jaime Bunda a viver no anexo de sua casa e de graça, sem receber um único dos ansiados dólares.

Como podem ver é um livro que promete e, digo-vos eu, que cumpre. No entanto e porque, como muito bem se diz por ai, "não há amor como o primeiro", gostei mais do Jaime Bunda e a Morte do Americano. Mas, é sem qualquer hesitação que recomendo este primeiro livro do Jaime Bunda! Este e qualquer outro do Pepetela, já que estamos numa de recomendações. :)

Boas leituras!

Excerto:
"Mas foi numa aula de educação física, mais propriamente de vólei, que surgiu a alcunha. Às tantas, o professor, irritado com a falta de jeito ou de empenho do aluno, gritou:
- Jaime, salta. Salta com a bunda, porra!

A partir daí, ficou Jaime Bunda para toda a escola. De facto, as suas nádegas exageravam. Ele, aliás, era todo para os redondos, até mesmo os olhos que gostava de esbugalhar à frente do espelho, treinando espantos. A mãe é que não gostou nada quando ouviu colegas tratarem-no assim, és um mole, não devias que te chamassem um nome ofensivo, mas ele encolheu os ombros, a minha bunda é mesmo grande, vou fazer mais como então?"

abril 13, 2011

Derrocada - Ricardo Menéndez Salmón

Título original: Derrumbe
Ano da edição original: 2008
Autor: Ricardo Menéndez Salmón
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Uma terrível ameaça recai sobre Promenadia, uma pacata cidade costeira. O Mal irrompe sob a forma de um assassino em série, que seduz vítimas e verdugos, actores e espectadores, transformando-se na sombra da comunidade. Os pilares de uma sociedade de escassos valores são infectados pela chaga do Terror - um prenúncio da derrocada - a que ninguém, nem mesmo Manila, o cismático polícia encarregado da investigação dos vários crimes, fica imune. Quem é vítima e quem é carrasco? Um homem perverso que não tem nada a perder; duas famílias que crêem ter perdido tudo; três jovens que encontram na violência uma forma de expulsar o tédio. Em Derrocada, a única justiça é o horror, a única vocação é a atracção pelo Mal."

Parti com algumas expectativas para este segundo volume da Trilogia do Mal de Ricardo Menéndez Salmón. Outra coisa não seria de esperar depois de ter sido surpreendida pela carga emocional de A Ofensa (opinião aqui), que gostei bastante de ler. Em Derrocada, embora o tema do Mal seja abordado de uma forma mais violenta e explícita, não me senti tão tocada e por isso o livro, para mim, está uns degraus abaixo do primeiro. :)

O livro está dividido em três partes que têm em comum, para além do Mal e do Medo, Manila, um polícia, pai de uma menina pequena e casado com Mara, grávida do segundo filho do casal.
Na primeira parte, Manila é integrado na força policial destacada para investigar uma série de mortes violentas que têm vindo a ocorrer. O assassino deixa junto a todas as vítimas um sapato da vítima anterior e mata, aparentemente de forma aleatória, sem qualquer razão aparente e de forma extremamente violenta. A narração vai alternando entre a descrição das mortes, a investigação dos crimes e na forma como Manila lida com o medo que um monstro como este provoca. Ricardo Menéndez Salmón explora aqui o medo de perdermos as pessoas que mais amamos de forma violenta e inesperada. Mas não se limita a explorar o medo, explora também a perda e todos os sentimentos que daí vêm. É talvez a parte do livro que mais custa a ler, por ser muitas vezes chocante e por lidar com sentimentos que todos nós podemos conceber.
Na segunda parte do livro três pessoas, disfarçadas de bobos, anunciam publicamente serem os responsáveis pela colocação das agulhas nos pacotes de leite que provocaram algumas mortes e ferimentos graves, sendo este apenas um dos muitos actos de Terror que pretendem levar a cabo. Porquê? Apenas e só porque o podem fazer, porque retiram prazer no medo das pessoas e porque isso lhes dá uma sensação de poder inigualável. Violência arbitrária e gratuita é o que temos aqui. Esta parte da história para mim não foi tão envolvente, não sei bem porquê, mas não a senti muito credível.
Na terceira e última parte, as duas histórias anteriores caminham paralelamente para um fim. É um desfecho feliz? Infeliz? Não sei, muitas vezes o que se tem não é uma coisa nem a outra, é apenas e só um desfecho, uma espécie de trégua ao sofrimento que se vive.

É um livro que pode ser chocante e desconfortável mas que, curiosamente a mim me deixou um pouco indiferente e, mais por isso do que pelo que ia lendo, me senti desconfortável. Porquê a indiferença numa leitura assim? Por um lado porque acho que a violência é algo tão presente no nosso dia-a-dia, principalmente através das notícias, mas também nos livros que lemos e nos filmes que vemos, que se torna mais difícil emocionarmos-nos com ela. E aperceber-me disso deixou-me desconfortável. No entanto, em minha defesa, que aparentemente corro o risco de me transformar num cubo de gelo, achei a escrita menos bem conseguida. Acho que o que me surpreendeu no A Ofensa foi o facto de a escrita ser mais subtil. Neste segundo volume o apelo ao sentimentalismo é mais notório e talvez por isso tenha ficado mais na defensiva. :)

O problema de RMS com os pontos finais persiste mas estranhamente, neste livro, fiquei até com a sensação de ideias sucintas, passadas através de frases curtas. Folheando o livro para tirar as teimas apercebo-me, agora e não durante a leitura, que RMS não tem meio termo, ora usa frases muito curtas, ora escreve autênticas teses entre um ponto final e o outro. Aparentemente neste as frases curtas devem estar em maioria.

É um livro que se lê num ápice e que nos mantém interessados até à última página e que faz uma reflexão muito interessante sobre o Mal, na sua forma mais pura e assustadora. Recomendo-o! ;)

Excerto:
"O mal encontra justificação na sua existência. O mal não precisa de prova ontológica, nem de redução ao absurdo, nem de fé ou de profetas. O mal é a sua própria expectativa.
A minha vida ensinou-me que é o bem que precisa de justificação. É o bem que precisa de um porquê, de uma causa, de um motivo. É o bem que, na realidade, constitui o mais profundo dos enigmas."

abril 10, 2011

Gente Feliz Com Lágrimas - João de Melo

Título original: Gente Feliz Com Lágrimas
Ano da edição original: 1988
Autor: João de Melo
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Uma saga que irresistivelmente arrasta o leitor ao longo de cinco mundos, vividos e pensados através da obsessiva busca da felicidade que move os seus protagonistas. Concebida polifonicamente como a descrição dos vários modos de viver a amargura que medeia entre o abandono da terra e o retorno ao domínio do que é familiar, esta peregrinação possível em tempos de escassez de aventura é a definitiva lição de que o regresso se não limita a perfazer o círculo e constitui uma visão fascinante do Portugal que todos, de uma maneira ou de outra, conhecemos."

Este demorou algum tempo a ler, não porque não estivesse a gostar mas porque o próprio livro exige uma leitura mais sossegada e calma. Chegado ao fim, digo que gostei e muito. :)

Gente Feliz Com Lágrimas é um livro triste, muitas vezes violento e tão estranhamente próximo que se torna por vezes incómodo. Nele é narrada a história de Nuno e da sua família. Nuno é açoriano e o quarto filho de uma família onde as crianças nascem a um ritmo acelerado, "roubando" aos irmãos mais velhos a infância e a pouca ternura que os pais lhes dispensavam.
O livro está dividido em cinco partes. Na primeira parte Maria Amélia, Luís e Nuno contam-nos a infância dura que tiveram, numa família que gravitava em torno dos humores da figura paterna, um homem violentíssimo e duro, que espancava os filhos e os considerava apenas como braços para trabalhar que cedo tinham de começar a merecer o pão que comiam. A mãe era uma mulher que, ao contrário do que seria de esperar, não era submissa, mas sim desligada dos inúmeros filhos que lhe iam crescendo no ventre, era mesquinha e a versão feminina do marido para as filhas que com ela ficavam a gerir a casa. Este casal era, de certa forma, perfeito um para o outro, todo o amor que sentiam era direccionado para eles próprios, os filhos eram uma consequência da paixão animalesca que viviam.
Desta forma, Maria Amélia, a primogénita, tornou-se a única figura maternal que muitos dos irmãos conheceram. Com 4 ou 5 anos já tomava conta dos irmãos que iam nascendo a um ritmo alucinante, cozinhava e geria a casa. Nos intervalos dessas tarefas levava porrada da mãe se se distraia nalgum devaneio de criança ou se a sua tenra idade lhe dificultava a execução de algumas tarefas. Tornou-se uma menina triste e uma adulta amargurada e de olhos cansados.
Luís, o segundo filho, era um miúdo de bom coração que tentava proteger os irmãos travando a violência do pai. Começou, como todos os irmãos, a ajudar o pai nas tarefas diárias que a quinta exigia. E tal como todos os irmãos sentiu desde cedo a mão pesada do pai.
Nuno nasceu pequenino, o gémeo que sobreviveu, e cresceu frágil, magro, de pele clara e com os olhos azuis da mãe. Tão diferente do pai e dos irmãos foi sempre perseguido pelo pai que o achava um inútil que pouco contribuía para a economia da família.
Para fugirem aos trabalhos desumanos da quinta e à falta de amor dos pais, Maria Amélia ingressou num convento em Lisboa, Nuno num seminário, também no Continente e, Luís voluntariou-se para a tropa acabando por ser enviado para guerra na Guiné. Maria Amélia acabou por ser expulsa do convento gerido por freiras pouco caridosas e formou-se enfermeira ficando livre da influência dos pais. Nuno tem o mesmo destino, sendo expulso do seminário por se ter começado a interessar por política e a questionar em demasia. Torna-se professor e mais tarde um escritor relativamente bem sucedido, é o intelectual da família, de quem acaba por se afastar.
Nas restantes partes do livro, a história é narrada na perspectiva de Nuno, que entretanto se casou com Marta, a mulher que sempre idealizou mas por quem acaba por se desencantar. Conhecemos a sua vida e a dos irmãos que se encontram todos a viver no Canadá, para onde os pais também foram e onde acabam por morrer. Tanto Nuno como os irmãos vivem uma vida superficial, uma felicidade que nunca poderá ser livre de lágrimas, são todos eles "gente feliz com lágrimas".

É um livro pesado, muitas vezes doloroso e estranhamente comovente porque é desesperante a forma como todas aquelas crianças procuravam um gesto de ternura, de como mesmo sendo maltratadas não conseguiram nunca odiar os pais, tendo até tornado os seus últimos anos de vida o menos dolorosos possível. Que este pai me tenha conseguido surpreender com alguns gestos de genuína afeição no meio de tanta violência e descontrolo e que esses gestos tenham sido guardados nas memórias de infância daqueles adultos como se se tratassem de preciosidades é de cortar o coração. É na realidade um livro de cortar o coração e real demais.
O que me fez mais confusão foi o facto de eles nem serem uma família considerada pobre. Tinham algumas posses, eram proprietários de algumas terras e possuíam muitos animais. Trabalhavam muito é certo e tinham muitos filhos, mas a pobreza neste caso não era desculpa para a violência a que as crianças eram sujeitas desde cedo, forçadas a trabalhos pesados e a responsabilidades completamente desadequadas às suas idades. Não existiam atenuantes para a falta de amor daquele pai e daquela mãe e isso foi o que mais confusão me fez. Isso e o facto de toda a vizinhança saber do tratamento que era dado às crianças da família e nada fazer para além de criticar, virar costas ao pai e mais tarde ostracizar os filhos por serem filhos de quem eram.
É um livro muito duro mas que está escrito com algum sentido de humor e onde a crítica social está bem evidenciada. Retrata uns Açores agrestes, onde a natureza quase selvagem tornava a vida de gente já muito pobre ainda mais difícil. Bonitos e magníficos mas onde era extremamente duro viver e cujos habitantes eram eles próprios duros e tristes e cansados e desesperados.

Concluíndo, é um livro que está escrito numa linguagem extremamente rica e poética, cuja história é do mais angustiante que já li e que recomendo sem qualquer hesitação.

Excerto:
"Não compreendera ainda como o tinha eu salvo da crucificação. Mas quando os seus braços musculados se abriram para o meu corpo delgado, senti que o peito se lhe tornara discretamente ofegante, ao reconciliar-se com o meu. E, estando eu morto, ressuscitei. E, pedindo-me ele de novo que comesse, agarrei na tigela com as mãos muito trémulas e pus-me a sorver, em apressados e sôfregos tragos, aquele delicioso caldinho de farinha, com cujo sabor se cruzou para sempre a memória doce da minha infância. E os olhos dele, rasando-se de lágrimas, eram afinal olhos felizes com lágrimas - assim você me perdoe o facto de a minha história comportar também episódios felizes..."