abril 10, 2011

Gente Feliz Com Lágrimas - João de Melo

Título original: Gente Feliz Com Lágrimas
Ano da edição original: 1988
Autor: João de Melo
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Uma saga que irresistivelmente arrasta o leitor ao longo de cinco mundos, vividos e pensados através da obsessiva busca da felicidade que move os seus protagonistas. Concebida polifonicamente como a descrição dos vários modos de viver a amargura que medeia entre o abandono da terra e o retorno ao domínio do que é familiar, esta peregrinação possível em tempos de escassez de aventura é a definitiva lição de que o regresso se não limita a perfazer o círculo e constitui uma visão fascinante do Portugal que todos, de uma maneira ou de outra, conhecemos."

Este demorou algum tempo a ler, não porque não estivesse a gostar mas porque o próprio livro exige uma leitura mais sossegada e calma. Chegado ao fim, digo que gostei e muito. :)

Gente Feliz Com Lágrimas é um livro triste, muitas vezes violento e tão estranhamente próximo que se torna por vezes incómodo. Nele é narrada a história de Nuno e da sua família. Nuno é açoriano e o quarto filho de uma família onde as crianças nascem a um ritmo acelerado, "roubando" aos irmãos mais velhos a infância e a pouca ternura que os pais lhes dispensavam.
O livro está dividido em cinco partes. Na primeira parte Maria Amélia, Luís e Nuno contam-nos a infância dura que tiveram, numa família que gravitava em torno dos humores da figura paterna, um homem violentíssimo e duro, que espancava os filhos e os considerava apenas como braços para trabalhar que cedo tinham de começar a merecer o pão que comiam. A mãe era uma mulher que, ao contrário do que seria de esperar, não era submissa, mas sim desligada dos inúmeros filhos que lhe iam crescendo no ventre, era mesquinha e a versão feminina do marido para as filhas que com ela ficavam a gerir a casa. Este casal era, de certa forma, perfeito um para o outro, todo o amor que sentiam era direccionado para eles próprios, os filhos eram uma consequência da paixão animalesca que viviam.
Desta forma, Maria Amélia, a primogénita, tornou-se a única figura maternal que muitos dos irmãos conheceram. Com 4 ou 5 anos já tomava conta dos irmãos que iam nascendo a um ritmo alucinante, cozinhava e geria a casa. Nos intervalos dessas tarefas levava porrada da mãe se se distraia nalgum devaneio de criança ou se a sua tenra idade lhe dificultava a execução de algumas tarefas. Tornou-se uma menina triste e uma adulta amargurada e de olhos cansados.
Luís, o segundo filho, era um miúdo de bom coração que tentava proteger os irmãos travando a violência do pai. Começou, como todos os irmãos, a ajudar o pai nas tarefas diárias que a quinta exigia. E tal como todos os irmãos sentiu desde cedo a mão pesada do pai.
Nuno nasceu pequenino, o gémeo que sobreviveu, e cresceu frágil, magro, de pele clara e com os olhos azuis da mãe. Tão diferente do pai e dos irmãos foi sempre perseguido pelo pai que o achava um inútil que pouco contribuía para a economia da família.
Para fugirem aos trabalhos desumanos da quinta e à falta de amor dos pais, Maria Amélia ingressou num convento em Lisboa, Nuno num seminário, também no Continente e, Luís voluntariou-se para a tropa acabando por ser enviado para guerra na Guiné. Maria Amélia acabou por ser expulsa do convento gerido por freiras pouco caridosas e formou-se enfermeira ficando livre da influência dos pais. Nuno tem o mesmo destino, sendo expulso do seminário por se ter começado a interessar por política e a questionar em demasia. Torna-se professor e mais tarde um escritor relativamente bem sucedido, é o intelectual da família, de quem acaba por se afastar.
Nas restantes partes do livro, a história é narrada na perspectiva de Nuno, que entretanto se casou com Marta, a mulher que sempre idealizou mas por quem acaba por se desencantar. Conhecemos a sua vida e a dos irmãos que se encontram todos a viver no Canadá, para onde os pais também foram e onde acabam por morrer. Tanto Nuno como os irmãos vivem uma vida superficial, uma felicidade que nunca poderá ser livre de lágrimas, são todos eles "gente feliz com lágrimas".

É um livro pesado, muitas vezes doloroso e estranhamente comovente porque é desesperante a forma como todas aquelas crianças procuravam um gesto de ternura, de como mesmo sendo maltratadas não conseguiram nunca odiar os pais, tendo até tornado os seus últimos anos de vida o menos dolorosos possível. Que este pai me tenha conseguido surpreender com alguns gestos de genuína afeição no meio de tanta violência e descontrolo e que esses gestos tenham sido guardados nas memórias de infância daqueles adultos como se se tratassem de preciosidades é de cortar o coração. É na realidade um livro de cortar o coração e real demais.
O que me fez mais confusão foi o facto de eles nem serem uma família considerada pobre. Tinham algumas posses, eram proprietários de algumas terras e possuíam muitos animais. Trabalhavam muito é certo e tinham muitos filhos, mas a pobreza neste caso não era desculpa para a violência a que as crianças eram sujeitas desde cedo, forçadas a trabalhos pesados e a responsabilidades completamente desadequadas às suas idades. Não existiam atenuantes para a falta de amor daquele pai e daquela mãe e isso foi o que mais confusão me fez. Isso e o facto de toda a vizinhança saber do tratamento que era dado às crianças da família e nada fazer para além de criticar, virar costas ao pai e mais tarde ostracizar os filhos por serem filhos de quem eram.
É um livro muito duro mas que está escrito com algum sentido de humor e onde a crítica social está bem evidenciada. Retrata uns Açores agrestes, onde a natureza quase selvagem tornava a vida de gente já muito pobre ainda mais difícil. Bonitos e magníficos mas onde era extremamente duro viver e cujos habitantes eram eles próprios duros e tristes e cansados e desesperados.

Concluíndo, é um livro que está escrito numa linguagem extremamente rica e poética, cuja história é do mais angustiante que já li e que recomendo sem qualquer hesitação.

Excerto:
"Não compreendera ainda como o tinha eu salvo da crucificação. Mas quando os seus braços musculados se abriram para o meu corpo delgado, senti que o peito se lhe tornara discretamente ofegante, ao reconciliar-se com o meu. E, estando eu morto, ressuscitei. E, pedindo-me ele de novo que comesse, agarrei na tigela com as mãos muito trémulas e pus-me a sorver, em apressados e sôfregos tragos, aquele delicioso caldinho de farinha, com cujo sabor se cruzou para sempre a memória doce da minha infância. E os olhos dele, rasando-se de lágrimas, eram afinal olhos felizes com lágrimas - assim você me perdoe o facto de a minha história comportar também episódios felizes..."

5 comentários:

  1. Li este livro há uns anos atrás. A história dura e triste e o assombro da escrita de João de Melo, tornam esta obra inesquecível.
    Que bem se escreve em Português.
    Parabéns pelas boas leituras.

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  2. Teresa Dias: É um livro que não vou esquecer tão cedo. Gostei imenso da escrita de João de Melo, muitíssimo rica sem ser pesada, antes pelo contrário. É um escritor a repetir. :)
    Os Parabéns devem ser dados a quem escreve e não a quem os lê e gosta! :)

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  3. O que aconteceu aos restantes irmaos? Ficaram a viver com os pais no canada?

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  4. Foram para o estado islâmico.

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