Título original: Lugar Caído no Crepúsculo
Ano de edição: 2014
Autor: João de Melo
Editora: Dom Quixote
A melhor forma de passar o que é este livro é recorrer a excertos de alguns dos cadernos que constituem o livro:
Assim na Terra como no Céu:
"Passa-se de cá para lá, perde-se de vista o anil e o amarelo e a cal do dia. Vem até nós a noite vazia e misteriosa da eternidade. Eis que a alma entra nela, no mistério dessa noite eterna. Abre os olhos no escuro, tenta em vão compreender o que acaba de ocorrer com a sua pessoa, e nada. Só o escuro continua a mover-se, a expandir-se sobre o mar de um rio chamado infinito. Nessa altura, já nada se pode ver somente com o olhar, e menos ainda medir o tempo e os lugares recorrendo apenas aos restantes sentidos. Talvez que todos eles, de novo unidos num único, não sejam mais do que uma espada de sombra a trespassar a última batida surda do coração: não este que sustenta a vida, mas o das trevas mais profundas, ou o da luz perpétua que nos guia para o além de um lugar caído no crepúsculo."
O Limbo:
"Eu vim aqui parar logo após o acidente. Cheguei em estado de graça. E agora vejo formas, vagas, difusas formas de gente que parece adormecida ou num estado que pode comparar-se ao da hibernação. Não propriamente pessoas, tal e qual nós as conhecemos no nosso mundo; mas figuras, espectros que a toda a hora entram e saem do interior de uma espécie de nuvens esparsas que se sobrepõem umas às outras, por ali acima, como se mais não fossem do que castelos aéreos, navios voadores, montanhas suspensas do ar. Por onde quer que se ande no Limbo, as almas ao cruzarem-se connosco, largam um discreto, adocicado odor a incenso. Esse alegre cheiro a festa e a especiaria fica depois a perdurar nos ares até nos transmitir a sua alegria. (...) Ei-las por aí, as almas: sobrepondo-se, entrecruzando-se, passando de um lado para o outro no espaço sem fim dos céus toldados pelas ondas de incenso. Mas nada disso passa de ilusão óptica, porquanto elas permanecem imóveis; só as nuvens, vindo de um lado para o outro, sugerem a ideia de um movimento universal, embora sem peso nem espessura. (...)
Não serão, só por si, a prova da existência de Deus; mas atestam a substância divina a que pertencem como seres criados por Ele, merecedores de entrar nesta antecâmara do Paraíso.
À qual a santíssima Igreja Católica resolveu pôr o nome de Limbo."
"As almas do Purgatório não falam, não se apoiam nem amparam umas nas outras. Nem se confortam entre si. Parecem toupeiras cegas, surdas e mudas, pelo menos na aparência. Poderia tratar-se de um exército exaurido nas suas forças, pela dureza da batalha, ali acampado no intervalo de uma manobra de guerra, a recuperar energia e vontade para enfrentar o combate seguinte. Ou tratar-se de uma cidade semimorta, saqueada pelos bandidos vencedores, e da qual já só restassem velhos, doentes, desventurados que já nem podem erguer-se do chão para se porem de novo a caminhar, à cata do horizonte. Uma cidade paralela a outra, a dos novos-ricos que só não roubaram a outrem o pão que levavam à boca. Um campo tão imenso, tão cheio de infelizes refugiados, que não se consegue medir com o olhar nem com o alcance da alma."
"Essas pessoas só voltam a chegar-se aos humanos quando eles envelhecem, coxeiam e ficam a pontos de morrer. Preferem velhinhos um tanto ou quanto taralhoucos; capazes de as divertirem com as suas confusões, os seus ditos sem sentido, as suas histórias repetidas vezes sem conta.
"Ao fim de muito voar através do vazio sideral, lá chegámos à morada do senhor Deus Dei. (...) Logo um meio braço, trajado com hábito de frade, nos convidou, num gesto simples, a entrar no Navio da Glória e a juntarmo-nos aos outros - esses inúmeros outros que lá dentro se moviam e removiam por entre arcos e espadas refulgentes de luz, feixes de cores luminosas como as dos relâmpagos à chuva e uns suaves acordes de harpa.
Quais sonâmbulos ou sonhadores, os possessos divinos moviam-se ao ritmo de um deixa-andar preguiçoso, visivelmente repousado, numa sonolência que mais parecia o movimento das imagens em câmara lenta do que seres embalados pela divina graça do Senhor. (...) Tratava-se - sobre isso não existia dúvida nenhuma no meu coração - dos Justos chamados à eternidade do senhor Deus Dei. Só poderiam ser assim, tal e qual se me afiguraram: gordos, ternos, tranquilos, de uma cor rosada que atestava a saúde feliz e a boa coloração da santidade. Figuras bojudas, como as que adornam os altares e jazem nos quadros religiosos dos templos de todo o mundo, irradiavam à minha volta uma serenidade deslumbrada, adormecida.
Todas essas figuras pareciam dormir. sonhar, reviver em êxtase. O sono dos Justos aparentava o mais despojado de todos os gozos espirituais: um prazer deliciado e adormecido, remanso próprio dos eleitos, a paz eterna do Céu, tão imponderável como se consistisse numa levitação."
"Pelo contrário: Deus, omnipresente e omnipotente, viu morrer e matar, assistiu aos fuzilamentos, à abertura de valas comuns e ao pesadelo dos fornos crematórios nos horrores do Holocausto nazi, é nunca por nunca moveu um dedo pelas vítimas inocentes, nem se dignou travar a tempo a loucura dos vencedores sobre os vencidos nos campos de batalha, no saque das cidades e das casas e no estupro das mulheres. Ninguém sabe em nome de quê nem de quem Ele se absteve de intervir, que até permitiu crimes e genocídios à mão de indivíduos e exércitos, bem como os ignominiosos autos-de-fé da Inquisição em nome da Santa Madre Igreja Católica. E tantos, tantos cruzados guerreiros e outros ditos infiéis miseravelmente mortos por nada e para nada. Deus fora sempre o silêncio mais atroz de toda a catástrofe humana."
Um livro cheio de ironia e sentido de humor que tenta descrever o que os católicos acreditam ser o que os espera depois da morte. É claramente uma crítica social e à Igreja Católica e, está muito bem escrito, outra coisa não seria de esperar de João de Melo.
Vale muito a pena ler e recomendo sem reservas.
Boas leituras!
"Uma viagem pela vida e pelo Além num romance surpreendente e muito aguardado.
O que nos acontece depois da morte? Esta é a pergunta implícita ao longo das páginas deste romance. Um livro que impõe a vida, em protesto contra a tragédia da morte humana, recusando-se a aceitar o silêncio e a escuridão do desconhecido e do sagrado – os mistérios acreditados pela fé de muitos, mas não pela angústia dos que questionam o Além.
É com elegância e com a qualidade literária a que João de Melo nos habitou que somos guiados numa viagem pelo outro lado, cruzando o Limbo, o Purgatório, o Paraíso e o Inferno.
Com uma abordagem distinta dos conceitos tradicionais e numa escrita marcada pelo realismo fantástico, o autor humaniza a imagética cristã, conferindo-lhe uma realidade mais próxima do mundo e da vida. O Limbo, recentemente extinto por decreto papal, solta os espíritos esquecidos que lá moravam e abre-lhes caminho para a glória eterna. O Purgatório, sem o fogo ardente das almas, converte-se num estado depressivo cuja dor parece cingir-se à dimensão do sentimento e do espírito. O Paraíso, mesmo como reino da liberdade, mantém oculto o mistério de Deus. E o Inferno traz consigo uma paisagem gelada, surpreendentemente erguida a sul do Tejo (o rio que as almas condenadas têm de atravessar na velha barca do Sr.Vicente)."
João de Melo é um dos meus favoritos. A forma como escreve é tão próxima que será um daqueles escritores que até com uma lista de compras de supermercado impressiona.
Quando percebi o tema de Lugar Caído no Crepúsculo fiquei um pouco apreensiva. O Limbo, o Purgatório, o Paraíso e o Inferno. E não é uma história típica, romanceada, com desenvolvimento de personagens, com um enredo. É uma espécie de ensaio, talvez...
Confesso que a probabilidade de eu não gostar, por causa do tema, era elevada, mas como foi escrito por João de Melo, gostei. Gostei e muito.
Confesso que a probabilidade de eu não gostar, por causa do tema, era elevada, mas como foi escrito por João de Melo, gostei. Gostei e muito.
Descobri com este livro o prazer de ler de manhã, enquanto o pão está a torrar e a água para o chá ferve. :)
A melhor forma de passar o que é este livro é recorrer a excertos de alguns dos cadernos que constituem o livro:
Assim na Terra como no Céu:
"Passa-se de cá para lá, perde-se de vista o anil e o amarelo e a cal do dia. Vem até nós a noite vazia e misteriosa da eternidade. Eis que a alma entra nela, no mistério dessa noite eterna. Abre os olhos no escuro, tenta em vão compreender o que acaba de ocorrer com a sua pessoa, e nada. Só o escuro continua a mover-se, a expandir-se sobre o mar de um rio chamado infinito. Nessa altura, já nada se pode ver somente com o olhar, e menos ainda medir o tempo e os lugares recorrendo apenas aos restantes sentidos. Talvez que todos eles, de novo unidos num único, não sejam mais do que uma espada de sombra a trespassar a última batida surda do coração: não este que sustenta a vida, mas o das trevas mais profundas, ou o da luz perpétua que nos guia para o além de um lugar caído no crepúsculo."
O Limbo:
"Eu vim aqui parar logo após o acidente. Cheguei em estado de graça. E agora vejo formas, vagas, difusas formas de gente que parece adormecida ou num estado que pode comparar-se ao da hibernação. Não propriamente pessoas, tal e qual nós as conhecemos no nosso mundo; mas figuras, espectros que a toda a hora entram e saem do interior de uma espécie de nuvens esparsas que se sobrepõem umas às outras, por ali acima, como se mais não fossem do que castelos aéreos, navios voadores, montanhas suspensas do ar. Por onde quer que se ande no Limbo, as almas ao cruzarem-se connosco, largam um discreto, adocicado odor a incenso. Esse alegre cheiro a festa e a especiaria fica depois a perdurar nos ares até nos transmitir a sua alegria. (...) Ei-las por aí, as almas: sobrepondo-se, entrecruzando-se, passando de um lado para o outro no espaço sem fim dos céus toldados pelas ondas de incenso. Mas nada disso passa de ilusão óptica, porquanto elas permanecem imóveis; só as nuvens, vindo de um lado para o outro, sugerem a ideia de um movimento universal, embora sem peso nem espessura. (...)
Não serão, só por si, a prova da existência de Deus; mas atestam a substância divina a que pertencem como seres criados por Ele, merecedores de entrar nesta antecâmara do Paraíso.
À qual a santíssima Igreja Católica resolveu pôr o nome de Limbo."
" - Mas isto assim não é vida nem morte! Nada aqui anda nem desanda, porquê? Há que fazer alguma coisa por nós! Quem poderá suportar tamanha sensaboria?
A ideia soltara-se-me de dentro, sem querer nem eu a ter premeditado. Foi como o tal relâmpago que atingirá o nosso avião em cheio e em pleno voo. Acto contínuo, também ela faiscou e fez remoinho no meio das almas que se acomodavam por ali, à minha volta. Foi logo tomando as mentes e as vontades, de patamar em patamar, indo de baixo para cima, até se perder de vez o alcance do seu raio de ação. (...) De repente, todo o imenso oceano dos espíritos entregues ao Limbo deu ouvidos à minha ideia. Pôs-se a pensar nela, a inquietar-se, a estremecer com receio da proposta seguinte e a fremir como um enxame de abelhas dentro da colmeia. As almas, que até então pareciam morcegos pendurados de cabeça para baixo do tecto de uma gruta, deram não só sinais de acordar do sono perpétuo da ausência como de ter entendido que era necessário abrir os olhos contra o peso da luz."
O Purgatório:
"As almas do Purgatório não falam, não se apoiam nem amparam umas nas outras. Nem se confortam entre si. Parecem toupeiras cegas, surdas e mudas, pelo menos na aparência. Poderia tratar-se de um exército exaurido nas suas forças, pela dureza da batalha, ali acampado no intervalo de uma manobra de guerra, a recuperar energia e vontade para enfrentar o combate seguinte. Ou tratar-se de uma cidade semimorta, saqueada pelos bandidos vencedores, e da qual já só restassem velhos, doentes, desventurados que já nem podem erguer-se do chão para se porem de novo a caminhar, à cata do horizonte. Uma cidade paralela a outra, a dos novos-ricos que só não roubaram a outrem o pão que levavam à boca. Um campo tão imenso, tão cheio de infelizes refugiados, que não se consegue medir com o olhar nem com o alcance da alma."
"Essas pessoas só voltam a chegar-se aos humanos quando eles envelhecem, coxeiam e ficam a pontos de morrer. Preferem velhinhos um tanto ou quanto taralhoucos; capazes de as divertirem com as suas confusões, os seus ditos sem sentido, as suas histórias repetidas vezes sem conta.
Pessoas aparentemente bondosas, diria eu, tidas na conta da chamada boa vizinhança - mas vivem afinal com a maldade empedernida nos olhos, nos dentes, no estômago, no coração, na hipocrisia dos voluntariado e da bondade social."
O Paraíso:
"Ao fim de muito voar através do vazio sideral, lá chegámos à morada do senhor Deus Dei. (...) Logo um meio braço, trajado com hábito de frade, nos convidou, num gesto simples, a entrar no Navio da Glória e a juntarmo-nos aos outros - esses inúmeros outros que lá dentro se moviam e removiam por entre arcos e espadas refulgentes de luz, feixes de cores luminosas como as dos relâmpagos à chuva e uns suaves acordes de harpa.
Quais sonâmbulos ou sonhadores, os possessos divinos moviam-se ao ritmo de um deixa-andar preguiçoso, visivelmente repousado, numa sonolência que mais parecia o movimento das imagens em câmara lenta do que seres embalados pela divina graça do Senhor. (...) Tratava-se - sobre isso não existia dúvida nenhuma no meu coração - dos Justos chamados à eternidade do senhor Deus Dei. Só poderiam ser assim, tal e qual se me afiguraram: gordos, ternos, tranquilos, de uma cor rosada que atestava a saúde feliz e a boa coloração da santidade. Figuras bojudas, como as que adornam os altares e jazem nos quadros religiosos dos templos de todo o mundo, irradiavam à minha volta uma serenidade deslumbrada, adormecida.
Todas essas figuras pareciam dormir. sonhar, reviver em êxtase. O sono dos Justos aparentava o mais despojado de todos os gozos espirituais: um prazer deliciado e adormecido, remanso próprio dos eleitos, a paz eterna do Céu, tão imponderável como se consistisse numa levitação."
"Pelo contrário: Deus, omnipresente e omnipotente, viu morrer e matar, assistiu aos fuzilamentos, à abertura de valas comuns e ao pesadelo dos fornos crematórios nos horrores do Holocausto nazi, é nunca por nunca moveu um dedo pelas vítimas inocentes, nem se dignou travar a tempo a loucura dos vencedores sobre os vencidos nos campos de batalha, no saque das cidades e das casas e no estupro das mulheres. Ninguém sabe em nome de quê nem de quem Ele se absteve de intervir, que até permitiu crimes e genocídios à mão de indivíduos e exércitos, bem como os ignominiosos autos-de-fé da Inquisição em nome da Santa Madre Igreja Católica. E tantos, tantos cruzados guerreiros e outros ditos infiéis miseravelmente mortos por nada e para nada. Deus fora sempre o silêncio mais atroz de toda a catástrofe humana."
O Inferno:
"Começou a entristecer desde que o Inferno se lhe revelou sem o tal fogo higiénico da cremação, que tanto desejara para a sua morte, mas antes branco e frio como os países de clima extremo, com invernos tão longos quanto escuros e tempestuosos, e onde a vida nunca ia além de um dissabor e de um incómodo. A sua tristeza comportava o ódio que desde sempre votara à neve. (...) E agora, por uma cruel e manifesta ironia, um mundo todo de branco, gelado, desértico, esperava-o no Além, onde teria início a perpetuidade da morte. (...)
Não teve mais remédio senão seguir atrás dos outros e em corrente de fila única. (...)
O que viu, mal terminou a travessia dessa garganta, deixou-o em estado de choque. na sua frente, abria-se o abismo de um espaço sem medida possível para cima e para os lados, nem mais luz do que a da Lua Cheia, num firmamento falso e espelhado, sem nuvens. Entre a poalha luminosa do luar e a penumbra desses lugares, tão secretos que até lhes pareciam interditos, os seres convertiam-se em vultos na multidão, numerosos, aconchegados, sempre em fila uns atrás dos outros. (...)
Perdera-se dos outros, da mesma forma que eles se haviam perdido de si. Aquele, agora, era o pórtico de entrada para a mais absoluta solidão da sua morte. Deixava de ser possível interagir com a existência e a humanidade dos outros. (...) Agora olhava, via esquadrões de gente parada, hirta como estátuas na margem de um estradão ermo e gelado, sobre o qual deslizavam contínuas multidões de cegos em busca do seu lugar na perpetuidade da morada do Diabo; (...) Andou assim durante dias e dias, talvez anos, talvez séculos terrenos, no meio da multidão ondulante que com ele vagueava por ali sem um destino."
"A ausência consciente e inexplicável dos outros, colocados ali mesmo ao lado, ao alcance de um simples gesto, de uma mão estendida. Eis o absoluto verdadeiro. Contra ele, nada de nada se podia.
Perdeu o ânimo, perdeu a esperança. Perdeu o fio derradeiro que lhe restava da memória em que ainda acreditava. Perdeu a paz inexistencial da morte. Perdeu, enfim, a ideia da existência do Bem. Como Deus não estava ali, nem em lado nenhum, apenas o Mal o chamava para si, porque só a ele passava a pertencer. Deixou até de saber quem era de novo, onde estava, tanto em concreto como em abstracto; nem o que fazia ele naquele desterro gelado e silencioso. No qual se sentia preso, morto e mal enterrado. Ao mesmo tempo que se despersonalizava, algo de contrário à falência da sua pessoa vinha agora de regresso a si, acendendo uma réstia de luz na sua mente e tornando-a receptiva a um derradeiro assomo de sentimentos humanos. E o que sentiu não foi mais do que a crua desesperança, o desespero absoluto, a escura perda de tudo - menos da sua dor. O sofrimento vinha-lhe dos outros, que estavam mais ou menos à mão e à sua volta, como se os espíritos deles lhe enviassem mensagens e promessas de um novo Pentecostes."
"Começou a entristecer desde que o Inferno se lhe revelou sem o tal fogo higiénico da cremação, que tanto desejara para a sua morte, mas antes branco e frio como os países de clima extremo, com invernos tão longos quanto escuros e tempestuosos, e onde a vida nunca ia além de um dissabor e de um incómodo. A sua tristeza comportava o ódio que desde sempre votara à neve. (...) E agora, por uma cruel e manifesta ironia, um mundo todo de branco, gelado, desértico, esperava-o no Além, onde teria início a perpetuidade da morte. (...)
Não teve mais remédio senão seguir atrás dos outros e em corrente de fila única. (...)
O que viu, mal terminou a travessia dessa garganta, deixou-o em estado de choque. na sua frente, abria-se o abismo de um espaço sem medida possível para cima e para os lados, nem mais luz do que a da Lua Cheia, num firmamento falso e espelhado, sem nuvens. Entre a poalha luminosa do luar e a penumbra desses lugares, tão secretos que até lhes pareciam interditos, os seres convertiam-se em vultos na multidão, numerosos, aconchegados, sempre em fila uns atrás dos outros. (...)
Perdera-se dos outros, da mesma forma que eles se haviam perdido de si. Aquele, agora, era o pórtico de entrada para a mais absoluta solidão da sua morte. Deixava de ser possível interagir com a existência e a humanidade dos outros. (...) Agora olhava, via esquadrões de gente parada, hirta como estátuas na margem de um estradão ermo e gelado, sobre o qual deslizavam contínuas multidões de cegos em busca do seu lugar na perpetuidade da morada do Diabo; (...) Andou assim durante dias e dias, talvez anos, talvez séculos terrenos, no meio da multidão ondulante que com ele vagueava por ali sem um destino."
"A ausência consciente e inexplicável dos outros, colocados ali mesmo ao lado, ao alcance de um simples gesto, de uma mão estendida. Eis o absoluto verdadeiro. Contra ele, nada de nada se podia.
Perdeu o ânimo, perdeu a esperança. Perdeu o fio derradeiro que lhe restava da memória em que ainda acreditava. Perdeu a paz inexistencial da morte. Perdeu, enfim, a ideia da existência do Bem. Como Deus não estava ali, nem em lado nenhum, apenas o Mal o chamava para si, porque só a ele passava a pertencer. Deixou até de saber quem era de novo, onde estava, tanto em concreto como em abstracto; nem o que fazia ele naquele desterro gelado e silencioso. No qual se sentia preso, morto e mal enterrado. Ao mesmo tempo que se despersonalizava, algo de contrário à falência da sua pessoa vinha agora de regresso a si, acendendo uma réstia de luz na sua mente e tornando-a receptiva a um derradeiro assomo de sentimentos humanos. E o que sentiu não foi mais do que a crua desesperança, o desespero absoluto, a escura perda de tudo - menos da sua dor. O sofrimento vinha-lhe dos outros, que estavam mais ou menos à mão e à sua volta, como se os espíritos deles lhe enviassem mensagens e promessas de um novo Pentecostes."
Um livro cheio de ironia e sentido de humor que tenta descrever o que os católicos acreditam ser o que os espera depois da morte. É claramente uma crítica social e à Igreja Católica e, está muito bem escrito, outra coisa não seria de esperar de João de Melo.
Vale muito a pena ler e recomendo sem reservas.
Boas leituras!