maio 29, 2011

A Rainha no Palácio das Correntes de Ar - Stieg Larsson

Título original: Luftslottet Som Sprängdes
Ano da edição original: 2007
Autor: Stieg Larsson
Tradução do Inglês: Mário Dias Correia
Editora: Oceanos

Contém spoilers
"Lisbeth Salander sobreviveu aos ferimentos de que foi vítima, mas não tem razões para sorrir: o seu estado de saúde inspira cuidados e terá de permanecer várias semanas no hospital, completamente impossibilitada de se movimentar e agir. As acusações que recaem sobre ela levaram a polícia a mantê-la incontactável. Lisbeth sente-se sitiada e, como se isto não bastasse, vê-se ainda confrontada com outro problema:o pai, que a odeia e que ela feriu à machadada, encontra-se no mesmo hospital com ferimento menos graves e intenções mais maquiavélicas...
Entretanto, mantêm-se as movimentações secretas de alguns elementos da Säpo, a polícia de segurança sueca. Para se manter incógnita, esta gente que actua na sombra está determinada a eliminar todos os que se atravessam no seu caminho. Mas nem tudo podia ser mau: Lisbeth pode contar com Mikael Blomkvist que, para a ilibar, prepara um artigo sobre a conspiração que visa silenciá-la para sempre. E Mikael Blomkvist também não está sozinho nesta cruzada: Dragan Armanskij, o inspector Bublanski, Anika Gianninni, entre outros, unem esforços para que se faça justiça. E Erika Berger? Será que Mikael pode contar com a sua ajuda, agora que também ela está a ser ameaçada? E quem é Rosa Figueirola, a bela mulher que seduz Mikael Blomkvist?"
Fim dos spoilers. ;)

Chega assim ao fim a Trilogia Millennium. Trilogia que teria sido decalogia não tivesse o autor, Stieg Larsson, falecido antes de terminar o quarto dos dez livros que tinha planeados com Lisbeth e Mikael Blomkvist. Aqui entre nós que ninguém nos ouve, por muito que tenha gostado da Lisbeth e companheiros, dez volumes teriam sido um exagero. Achei até que este terceiro poderia ter sido bem mais pequeno... :)

Este terceiro volume começa exactamente onde o anterior acabou. Lisbeth, depois de no segundo volume ter regressado do mundo dos mortos, dá entrada no hospital em estado considerado muito grave. Com uma bala alojada no crânio, os médicos não se atrevem a avançar prognósticos. No mesmo helicóptero que a levou ao hospital viaja o homem que a pôs entre a vida e a morte, também ele bastante ferido, e que tem sido a causa de todos os problemas que Lisbeth já enfrentou na vida. Irá Lisbeth recuperar, sem sequelas, dos ferimentos? Será essa a única preocupação de Lisbeth enquanto estiver internada no hospital? Ou o homem que quase a matou vai, mais uma vez tentar acabar com a vida de Lisbeth?
Enquanto Lisbeth, no hospital, luta para sobreviver, cá fora Mikael Blomkvist continua a trabalhar num artigo que vai ajudar a ilibar Lisbeth de todas as acusações que pendem sobre ela e que terá de enfrentar assim que estiver em condições de receber alta médica. O artigo em que Mikael Blomkvist está a trabalhar envolve pessoas que pertencem à Polícia Secreta sueca, a Säpo, e que vão fazer tudo para impedir qualquer investigação sobre os podres da Companhia. Portanto, Lisbeth está entre a vida e a morte no hospital, Mikael e todos na redacção da Millennium são ameçados e perseguidos por causa do artigo e, para ajudar à festa, Erika Berger tem à perna um tarado qualquer que a persegue e ameaça. Um livro cheio de coisas boas, portanto. :)
Sobre a história mais não digo sob pena de spoilar toda a trilogia. :) Cuidado que a sinopse não tem e que pode, inclusive, estragar algumas revelações do segundo volume, para quem ainda não o leu. Para além de ser uma sinopse que levanta falsas questões, mas isso é outra história. :)

Confesso que este último livro não me convenceu, achei-o demasiado extenso e a história não foi exposta de uma forma cativante, Lisbeth quase não aparece e Mikael, aparecendo mais, pareceu-me menos interessante que nos primeiros dois livros e é, neste livro, até um pouco irritante. As histórias que giram à volta da conspiração contra Lisbeth têm algum interesse, mas estão de tal forma rodeadas de informação secundária que parece que estamos a ler um livro sobre a história da polícia secreta sueca. Este livro pedia acção e um ritmo mais acelerado, o que nos outros livros não me fez assim tanta falta. No fundo acho que este livro poderia ter ganho se fosse mais sucinto e mais objectivo. Stieg Larsson quis falar de tanta coisa, introduziu tantas personagens, que a história de Lisbeth perdeu alguma consistência.
Para além disso a história do tarado que persegue Erika Berger e todos os outros dilemas que esta atravessa ao longo deste livro não me interessaram por aí além e senti-os apenas como distracções. Erika sempre me foi algo indiferente, pelo que o seu maior protagonismo neste livro fez com que a minha leitura se ressentisse um pouco. Para além disso, Mikael Blomkvist neste livro pareceu-me demasiado convencido, muito presente na história mas com uma presença muito superficial, muito pouco emotiva e sem empatia com as outras personagens. Mais uma consequência da ânsia do autor de falar de tudo e mais alguma coisa, tornando a história demasiado tentacular, notando-se que sentiu alguma dificuldade em fechar todas as frentes que abriu.

Enfim, o livro tem coisas boas, como é óbvio, tudo o que me fez gostar e querer ler a trilogia está também neste terceiro volume, mas a verdade é que neste o equilíbrio entre a história central e todos os temas paralelos não foi tão bem conseguido. Não é mau, mas podia ser bem melhor. :)

Recomendo a trilogia mas, como já o referi antes, nunca ao preço de editora que sobrevaloriza e muito estes livros. Leiam se tiverem oportunidade, mas se não o fizerem não vem daí mal ao mundo! :)

Boas leituras!


Excerto:
"Faltava pouco para a uma e meia quando Hanna Nicander, uma das enfermeiras, acordou o Dr. Anders Jonasson.
- Que se passa? - perguntou ele, ainda meio atordoado.
- Helicóptero a chegar. Dois pacientes. Um homem já de idade e uma rapariga; ela com ferimentos de bala.

- Já vou, já vou - resmungou Jonasson, cansado."


Deixo-vos os trailer do terceiro filme:


Não posso deixar de expressar a minha estranheza por Stieg Larsson descrever o Blomkvist como um homem extremamente bem parecido e a quem as mulheres dificilmente resistem. Tendo visto os filmes é inevitável que a imagem de Blomkvist que eu tenho na minha cabeça seja a do actor que o representa no filme e, não querendo discutir gostos, que todos sabemos que não se discutem, a verdade é que o actor está longe de ser irresistível! Tirando a imagem dos actores que são diferentes da imagem que Stieg Larsson transmitiu nos livros, os filmes estão bastante fieis a eles e vale a pena ver, principalmente porque a interpretação da actriz Noomi Rapace, que faz de Lisbeth Salander, é digna de ser ver. :)

maio 15, 2011

A Rapariga que Sonhava Com Uma Lata de Gasolina e Um Fósforo - Stieg Larsson

Título original: Flickan Som Lekte Med Elden
Ano da edição original: 2006
Autor: Stieg Larsson
Tradução do Inglês: Mário Dias Correia
Editora: Oceanos

"Depois de uma longa estada no estrangeiro, Lisbeth Salander regressa à Suécia, cede o pequeno apartamento onde vivia à sua amiga Miriam Wu, e instala-se luxuosamente numa zona nobre da cidade. Pela primeira vez na vida é economicamente independente, mas cedo percebe que o dinheiro não é tudo: não tem amigos, nem família e está só. Mikael Blomkvist, que tentara contactar Lisbeth Salander durante meses, sem sucesso, desiste e concentra-se no trabalho. À Millennium chegou material para uma notícia explosiva: o jornalista Dag Svensson e a sua companheira Mia Johansson entregam na editora dois documentos que provam o envolvimento de personalidades importantes numa rede de tráfico de mulheres para exploração sexual. Quando Dag e Mia são brutalmente assassinados, todos os indícios recolhidos no local do crime apontam um suspeito: Lisbeth Salander. O seu passado sombrio e pouco convencional não abona a favor da sua imagem e a polícia move-lhe uma implacável perseguição. Lisbeth Salander, que está disposta a romper de vez com o passado e a punir aqueles que a prejudicaram, tem agora de provar a sua inocência e só uma pessoa parece disposta a ajudá-la: Mikael Blomkvist que, apesar de todas as evidências, se recusa a acreditar na sua culpabilidade."

E Lisbeth Salander volta, neste segundo livro da trilogia, para me fazer companhia. Companhia estranha, é certo que por vezes perturbadora, mas essencialmente boa companhia. Lisbeth continua, neste livro, a ser uma personagem que me fascina. Gosto realmente desta rapariga! :)

Em A Rapariga que Sonhava Com Uma Lata de Gasolina e um Fósforo (mais um título muitíssimo bem escolhido), encontramos Lisbeth multimilionária, depois de no livro anterior ter desviado uns quantos milhões ao corrupto Wennerström, que regressou recentemente à Suécia e não sabe muito bem como se adaptar à sua nova condição de muito rica. A Lisbeth que encontramos está mais madura e aparentemente mais equilibrada e serena. Depois de um ano fora, ela não é esperada por ninguém, as poucas pessoas que se preocuparam com o seu desaparecimento súbito, já haviam desistido de a procurar e seguiram com as suas vidas. Foi o caso de Mikael Blomkvist, que depois de várias e infrutíferas tentativas para a encontrar se rendeu à evidência de que ela não desejava ser encontrada por ninguém, muito menos por ele.
É penosa a solidão e o desamparo de Lisbeth, na fase inicial do livro, mais ainda porque é uma solidão evitável, uma vez que existe quem se preocupe e goste dela.

As vidas de Mikael e Lisbeth voltam a cruzar-se quando Dag Svensson e Mia Johansson são assassinados e a principal suspeita é Lisbeth.
Dag era um jornalista que estava a escrever um livro, a ser editado pela Millennium, sobre o tráfico de mulheres, algumas menores, na Suécia e Mia, namorada de Dag, estava em vias de terminar a sua tese de doutoramento sobre o mesmo tema. Ambos pretendiam revelar e expor publicamente figuras importantes da vida política e social sueca, envolvidas no tráfico de mulheres e comércio sexual das mesmas. Mikael Blomkvist vê-se de repente envolvido em mais uma corrida contra o tempo, enquanto tenta provar a inocência de Lisbeth e ao mesmo tempo encontrar o verdadeiro responsável pelo crime que vitimou os seus dois amigos. O historial de violência e o internamento de Lisbeth numa clínica psiquiátrica, que foi a sua casa na adolescência, não vão facilitar a tarefa de Mikael, muito menos com a polícia e a opinião pública sueca a considerarem-na uma sociopata tresloucada que nunca deveria ter tido alta da clínica. Enquanto isso, Lisbeth vai fazendo a sua própria investigação mais com o intuito de encontrar Zala, um nome ligado ao seu passado e que surgiu associado ao tráfico de mulheres que Mia e Dag investigavam, do que para provar a sua inocência. Chega inclusive a afirmar que não é inocente, isto porque "Não há inocentes. Há apenas diferentes graus de responsabilidade."
Lisbeth não tem, nem nunca teve, uma vida fácil e neste livro ela inicia uma viagem ao passado para o resolver definitivamente. Deixar de fugir ou de se esconder deixou de ser opção. Conhecendo Lisbeth, sabemos de antemão que as coisas não vão correr bem para muita gente e a própria Lisbeth irá passar por situações de vida ou morte.
E acho que não vale a pena dizer mais nada acerca da história do livro, até porque o giro é ser-se surpreendido. :)

À semelhança do Os Homens que Odeiam as Mulheres, já lido e comentado aqui, Stieg Larsson não tem qualquer pressa em avançar para a acção, perde-se em pormenores e histórias paralelas, o que provavelmente acaba por afastar alguns leitores menos pacientes. E mesmo o mais pacientes (caso da que aqui vos escreve) por vezes sentem alguma impaciência pela calma que define todo o livro, pelos desvios que distraem e que nos afastam da acção e da vida das personagens. No entanto confesso que, depois de lido, a impressão que fica é a de que acabámos de ler um livro com mais de 600 páginas, sem qualquer esforço e as personagens eram reais e estiveram sempre muito próximas. E isso é positivo. :)
É claro que existem passagens do livro que são perfeitamente dispensáveis, como a da descrição de um Mikael deslumbrado com a máquina de café topo de gama que Lisbeth tem no novo apartamento. Dispensável é também a muita publicidade que se faz ao IKEA e à Apple e passava bem sem saber que Bublanski e Modig (polícias destacados para a investigação criminal) foram ao Burger King e comeram um Whooper e um Veggie Burger, respectivamente. Enfim, distracções dispensáveis mas que não pesam muito na opinião final acerca do livro.

Gostei! E gostei porque está bem escrito, porque gosto muito da forma como o autor vai construindo a história e da forma como no final as peças do puzzle encaixam na perfeição. Porque e, mais uma vez o tema é a violência sobre as mulheres e nunca é demais alertar para qualquer tipo de violência, quer seja sobre as mulheres quer seja sobre homens ou crianças. Neste livro agradou-me especialmente que o desenrolar da história fosse credível, coisa que nos livros do género não é muito comum. Excepção feita para a sensação de que a Suécia só pode ser minúscula, porque toda a gente se conhecia... :) Gostei que me permitisse ter uma imagem da Suécia e dos suecos mais realista, atenuando um pouco a imagem de que os países nórdicos são perfeitos e infalíveis. Mas o que me faz dizer que gostei sem grandes hesitações, é a personagem da Lisbeth. Gosto dela, e sei que é das poucas personagens que me vai ficar pela memória, quando tiver acabado de ler a trilogia. Aliás, uma das críticas menos boas que posso fazer ao livro é mesmo ter achado que, sendo um livro centrado nela, a presença dela poderia ter sido mais evidenciada e explorada.
Finalmente, gostei porque mesmo já tendo visto os filmes e, portanto já conheça o fim da trilogia, o prazer da leitura não foi muito afectado e, só posso imaginar e invejar, confesso, o friozinho na barriga que certas passagens mais tensas poderão provocar. Mesmo nestas condições, gostei do livro e mesmo nestas condições vou ler já a seguir o terceiro e último livro da trilogia.

Posto isto, só posso dizer para lerem! ;)


Excerto:
"Estava deitada de costas, presa por correias de couro à armação de ferro da cama estreita. As correias, cruzadas, apertavam-lhe o peito, e tinha as mãos algemadas aos lados do catre.
Havia muito que desistira de tentar libertar-se. Estava acordada, mas tinha os olhos fechados. Se os abrisse, ver-se-ia, envolta em escuridão; a única luz era uma débil risca amarelada que se filtrava por cima da porta. A boca sabia-lhe mal e ansiava por poder lavar os dentes."

Trailer do filme baseado no segundo volume da trilogia e bastante fiel à história:

maio 13, 2011

Feira do Livro de Lisboa 2011

Como não pretendo voltar à Feira do Livro e este é o último fim-de-semana de estadia no Parque Eduardo VII, vou partilhar já as minhas aquisições deste ano.

(De baixo para cima)
  • A Ilha do Dia Antes - Umberto Eco
  • Inés da Minha Alma - Isabel Allende
  • A Ponte Sobre o Drina - Ivo Andric
  • Ernestina - J. Rentes de Carvalho
  • A Máquina de Fazer Espanhóis - Valter Hugo Mãe
  • O Jogador - Fiódor Dostoiévski
Para oferta comprei ainda:
  • Frágil - Jodi Picoult
  • Ilha Teresa - Richard Zimler
A Máquina de Fazer Espanhóis devidamente autografado pelo simpático Valter Hugo Mãe que, por coincidência, estava a dar autógrafos no dia em que por lá passei.

Por estar a trabalhar muito perto da feira, este ano fui lá mais vezes, quase todos os dias, para espreitar os livros do dia e para aproveitar o bom tempo que este ano ajudou à festa. :)
Devido à proximidade tive de me conter muito para só trazer aquilo que realmente queria e a preços bem mais simpáticos. O único que não foi comprado como livro do dia, ou em alfarrabistas, foi o Ernestina do J. Rentes de Carvalho. Já o queria comprar há algum tempo e os 2€ ou 3€ que tinha de promoção para mim bastaram. :)

Tive pena de não ter comprado nada para as minhas sobrinhas. Eu bem que olhei para as barraquinhas dedicadas aos mais pequenos mas não vi nada que me parecesse adequado para elas. É extremamente difícil comprar livros para crianças ou sou eu que sou esquisita? Para a mais pequena (10 meses) não achei que houvesse muita oferta e para as mais crescidas (20 meses) pareceram-me todos para meninos mais velhos. Outros eram daqueles que "pedem" para ser rasgados, demasiado frágeis para as mãos das pestinhas! :p Enfim, acho que me safo melhor numa livraria, onde posso mexer mais à vontade e ponderar todos os perigos que poderão ou não correr nas mãos das princesas. :)

Estou muito satisfeita com as minhas compras! E é bom que o esteja porque a compra de livros está suspensa por tempo indefinido. Não gosto de ter muitos livros por ler e a pilha está maior que nunca! :)

Boas leituras!!!!! :)

abril 29, 2011

A Papisa Joana - Donna Woolfolk Cross

Título original: Pope Joan
Ano da edição original: 1996
Autor: Donna Woolfolk Cross
Tradução: Teresa Martinho Toldy
Editora: Editorial Presença

"Personagem histórica envolta em lenda, a papisa Joana protagoniza a notável ascensão de uma mulher que não aceita as limitações que a sua época e a sua religião lhe impõem. Dotada de uma inteligência esclarecida e livre, assim como de uma imensa força de carácter, esta mulher brilhante conquista o mais elevado grau da hierarquia religiosa da Igreja Católica. Apoiado numa investigação rigorosa, este romance não é por isso menos grandioso, cativante e verdadeiramente apaixonante, questiona causas que ainda hoje são polémicas e prende o leitor às complexidades da luta pelo poder, das conspirações e segredos políticos, dos fanatismos, das traições e das crises de fé que ameaçam fazer soçobrar a admirável Joana."

A Papisa Joana, relata a possível história de Joana, a menina de Inglehiem cuja sede de conhecimento, perspicácia e inteligência a levou a ocupar o lugar mais elevado na hierarquia da Igreja Católica, o de Papa.
Desafiando tudo e todos, Joana nunca deixou de questionar o mundo à sua volta, nunca baixou os braços perante os obstáculos que iam surgindo, nunca se resignou com respostas vagas que lhe não satisfaziam a imensa curiosidade pelo mundo que a rodeava. Enfrentou a violência e falta de amor do pai, fugindo para perseguir o seu sonho de estudar. Aguentou, por amor ao conhecimento, ser humilhada e comandada por homens bem menos capazes que ela, em funções de poder. Abdicando de tudo, do amor, da possibilidade de construir uma família e da vida como mulher, rompeu barreiras, ultrapassou os limites impostos pelos outros e conquistou o seu lugar no mundo. Não é por ter alcançado alguns dos seus feitos disfarçada de homem, que Joana deixa de ser uma personagem verdadeiramente inspiradora. :)
Uma mulher muito à frente do seu tempo, com uma visão desempoeirada do mundo, que baseava as suas acções na razão e não no que vinha escrito nos livros sagrados. Inteligente, perspicaz, de certa forma ingénua, tinha um coração grande e solidário, tratando todos de forma igual. Desejava melhorar a vida de todos os que a rodeavam, dar uma vida melhor ao povo, principalmente às mulheres.
Como disse, uma personagem verdadeiramente inspiradora. :)

Terá Joana existido ou não passa de um mito, uma lenda?
O livro é claramente um romance que tem como ponto de partida esta possibilidade mas, exceptuando alguns factos, tudo nele é ficção, pelo que acredito que Joana existiu, que chegou a Papisa, que a Igreja terá apagado o rasto histórico deste facto, mas não encaro este livro como a verdadeira biografia de Joana, aliás nem julgo ser essa a intenção de Donna Woolfolk Cross. O que este livro é, sem dúvida, é uma homenagem a todas a mulheres que, ao longo da história mundial, nunca baixaram os braços, que nunca se deixaram intimidar pelas adversidades, que nunca se resignaram à sua condição de seres inferiores e sem valor, mesmo que isso implicasse viver como um homem. Não sendo este um caso único na história, como a autora refere no fim do livro. O mais irónico nesta história é o facto de Joana nem sequer ser muito religiosa. A sua personalidade iquisitiva tinha alguma dificuldade em viver com verdades absolutas, impostas por homens que se escudavam atrás de um Deus que aparentemente considerava as mulheres seres inferiores, pouco mais que animais. Joana aproveitou-se de um sistema que a excluía e adaptou-se a este para que pudesse ser incluída e, para isso apenas teve de dizer que era um homem e não uma mulher. A partir desse momento todas as portas se abriram e ela teve acesso a todo o conhecimento disponível, conhecimento esse que pertencia à Igreja e só por isso ela acaba por fazer a "escola" católica toda e chega onde chegou.

Outra questão que este livro acaba por levantar é a fiabilidade dos factos históricos que temos como certos hoje em dia. Quantos desses factos não serão baseados em documentos e provas, interpretadas de forma errada por nós, porque na altura em que foram produzidos escondiam interesses cuja compreensão é para nós impossível de atingir? Quantos desses documentos, escritos por Homens, não têm segundas intenções, não satisfaziam interesses pessoais da época, deturpando assim o legado que foi deixado para as gerações futuras? Dá que pensar... :)

Não fiquei especialmente impressionada com a escrita ou com a forma como as personagens foram criadas. Achei a Joana boazinha demais, demasiado perfeita e algumas situações demasiado forçadas para que Joana demonstrasse, mais uma vez, a sua superioridade mental e humana. Por vezes tive a sensação que estava a ler um romance cor-de-rosa, talvez porque senti alguma imaturidade na escrita de Donna Woolfolk Cross, mas a verdade é que este livro acaba por demonstrar que quando a história é boa, o que acabei de referir não passam de pormenores. Pela homenagem, pela pertinência do tema, pelo interesse que a época em causa levanta, este é um livro a não perder e que aconselho sem qualquer hesitação. Leiam! :)

Excerto:
"A partir daí, aquilo tornou-se uma espécie de jogo entre eles. Sempre que havia oportunidade, não tantas vezes quanto Joana desejava, Mateus mostrava-lhe como desenhar letras no chão. Ela era uma aluna ávida de aprender; apesar de estar ciente das consequências, Mateus não conseguia resistir ao seu entusiasmo. Ele também adorava aprender; a paixão dele falava-lhe ao coração. Mesmo assim, até ele ficou chocado quando Joana veio ter com ele um dia, carregando a enorme Bíblia com encadernação em madeira, que pertencia ao pai de ambos.
- O que estás a fazer? - gritou ele. - Vai pôr isso no sítio; nunca lhe devias ter mexido!

- Ensina-me a ler.

- O quê?

A audácia dela era espantosa.

- Ora, vamos lá, irmãzinha, isso é pedir muito.
- Porquê?

- Bem... porque ler é muito mais difícil do que limitarmo-nos a aprender o alfabeto. Duvido mesmo que fosses capaz de aprender.

- Porque não? Tu aprendeste.

Ele sorriu indulgentemente:

- Sim, mas eu sou um homem."


Notas: Algumas páginas na internet sobre a existência ou não de uma Papisa Joana.
E muitos mais existem, é só pesquisarem. :)

E o trailer do filme que estreou em Portugal em Setembro de 2010 (existe ainda um filme de 1972 também acerca do mesmo tema):

abril 18, 2011

Jaime Bunda, Agente Secreto - Pepetela

Título original: Jaime Bunda, Agente Secreto
Ano da edição original: 2001
Autor: Pepetela
Editora: Publicações Dom Quixote

"A moça se despediu da amiga e avançou para a avenida. Ainda conservava nos lábios o sorriso da despedida, quando parou bruscamente, assustada com o automóvel preto. O carro também estacou de súbito. O condutor viu o sorriso desaparecer dos lábios dela. Mediu num relance o tamanho dos seios pontudos, querendo furar o vestido muito curto. Esperou gentilmente que se refizesse do susto e continuasse a travessia. Ela hesitou, mas depois agradeceu com um vago sorriso para os vidros escuros e correu à frente do carro, mostrando o corpo meio de menina meio de mulher, moldado pelo vestido justo. Uma gazela, uma cabra de rabo de leque, pensou o motorista, sentindo compulsivos apetites de caçador. Arrancou com o carro e seguiu até ao fundo da Ilha."

Para desanuviar de umas leituras mais pesadas, em termos de temas, nada melhor do que ter o Jaime Bunda, do Pepetela, como companhia. Uma personagem com este nome só pode proporcionar uma leitura divertida. :) Foi o que aconteceu com este livro, que me fez sorrir, enquanto o lia no metro e que deve ter provocado alguns sorrisos, também, àqueles que repararam na capa, no título e, já agora no meu "delicioso" marcador! :p

Embora possa parecer um livro diferente daqueles a que o Pepetela nos acostumou, a verdade é que a única diferença é o tom em que está escrito, mais irónico e divertido. Fala de Angola independente e de toda a corrupção que parece proliferar por lá. Das desigualdades sociais e da facilidade com que se gasta o muito dinheiro que o país tem. Fala um pouco do deslumbramento em que alguns angolanos parecem viver, ansiando por uma posição que lhes dê poder e acesso ao tal dinheiro que parece perseguir os governantes do país e aqueles que gravitam à volta destes. O tema pode não ser novo, mas a forma como é abordado é uma novidade, não tanto para mim que já tinha lido o Jaime Bunda e a Morte do Americano (segundo livro com esta personagem de anca larga) e tendo em conta que o Jaime Bunda é uma personagem deliciosa, não há forma de não se gostar deste livro.

De uma forma muito resumida a história de Jaime Bunda, Agente Secreto é a história de um estagiário dos SIG (espécie de serviços secretos angolanos) que de repente é chamado a investigar a violação e homicídio de uma menina de 14 anos, uma "catorzinha". Jaime Bunda, alcunha que lhe serve como uma luva, é um jovem viciado em policiais americanos, única fonte dos seus conhecimentos de investigação criminal, que decide agarrar esta oportunidade com unhas e dentes. Com uma imaginação galopante e um instinto (ou sorte) extraordinário acaba, no decorrer da sua investigação, por "tropeçar" numa figura sinistra que todos temem. Numa história cheia de mal-entendidos, meias-verdades e golpes de sorte, Jaime Bunda acaba por se ver envolvido numa investigação que o vai tornar numa espécie de herói e tirá-lo da posição de eterno estagiário no Bunker (nome porque também são conhecidos os SIG). Nos entretantos, Jaime Bunda tem ainda de lidar com Florinda, a sua namorada que é casada com um traficante de diamantes que vai, finalmente tornar o seu negócio legal com a ajuda de um General. Tem ainda de aturar a má vontade da mulher do tio, a Tia Sãozinha, que não perdoa o facto de ter Jaime Bunda a viver no anexo de sua casa e de graça, sem receber um único dos ansiados dólares.

Como podem ver é um livro que promete e, digo-vos eu, que cumpre. No entanto e porque, como muito bem se diz por ai, "não há amor como o primeiro", gostei mais do Jaime Bunda e a Morte do Americano. Mas, é sem qualquer hesitação que recomendo este primeiro livro do Jaime Bunda! Este e qualquer outro do Pepetela, já que estamos numa de recomendações. :)

Boas leituras!

Excerto:
"Mas foi numa aula de educação física, mais propriamente de vólei, que surgiu a alcunha. Às tantas, o professor, irritado com a falta de jeito ou de empenho do aluno, gritou:
- Jaime, salta. Salta com a bunda, porra!

A partir daí, ficou Jaime Bunda para toda a escola. De facto, as suas nádegas exageravam. Ele, aliás, era todo para os redondos, até mesmo os olhos que gostava de esbugalhar à frente do espelho, treinando espantos. A mãe é que não gostou nada quando ouviu colegas tratarem-no assim, és um mole, não devias que te chamassem um nome ofensivo, mas ele encolheu os ombros, a minha bunda é mesmo grande, vou fazer mais como então?"

abril 13, 2011

Derrocada - Ricardo Menéndez Salmón

Título original: Derrumbe
Ano da edição original: 2008
Autor: Ricardo Menéndez Salmón
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Uma terrível ameaça recai sobre Promenadia, uma pacata cidade costeira. O Mal irrompe sob a forma de um assassino em série, que seduz vítimas e verdugos, actores e espectadores, transformando-se na sombra da comunidade. Os pilares de uma sociedade de escassos valores são infectados pela chaga do Terror - um prenúncio da derrocada - a que ninguém, nem mesmo Manila, o cismático polícia encarregado da investigação dos vários crimes, fica imune. Quem é vítima e quem é carrasco? Um homem perverso que não tem nada a perder; duas famílias que crêem ter perdido tudo; três jovens que encontram na violência uma forma de expulsar o tédio. Em Derrocada, a única justiça é o horror, a única vocação é a atracção pelo Mal."

Parti com algumas expectativas para este segundo volume da Trilogia do Mal de Ricardo Menéndez Salmón. Outra coisa não seria de esperar depois de ter sido surpreendida pela carga emocional de A Ofensa (opinião aqui), que gostei bastante de ler. Em Derrocada, embora o tema do Mal seja abordado de uma forma mais violenta e explícita, não me senti tão tocada e por isso o livro, para mim, está uns degraus abaixo do primeiro. :)

O livro está dividido em três partes que têm em comum, para além do Mal e do Medo, Manila, um polícia, pai de uma menina pequena e casado com Mara, grávida do segundo filho do casal.
Na primeira parte, Manila é integrado na força policial destacada para investigar uma série de mortes violentas que têm vindo a ocorrer. O assassino deixa junto a todas as vítimas um sapato da vítima anterior e mata, aparentemente de forma aleatória, sem qualquer razão aparente e de forma extremamente violenta. A narração vai alternando entre a descrição das mortes, a investigação dos crimes e na forma como Manila lida com o medo que um monstro como este provoca. Ricardo Menéndez Salmón explora aqui o medo de perdermos as pessoas que mais amamos de forma violenta e inesperada. Mas não se limita a explorar o medo, explora também a perda e todos os sentimentos que daí vêm. É talvez a parte do livro que mais custa a ler, por ser muitas vezes chocante e por lidar com sentimentos que todos nós podemos conceber.
Na segunda parte do livro três pessoas, disfarçadas de bobos, anunciam publicamente serem os responsáveis pela colocação das agulhas nos pacotes de leite que provocaram algumas mortes e ferimentos graves, sendo este apenas um dos muitos actos de Terror que pretendem levar a cabo. Porquê? Apenas e só porque o podem fazer, porque retiram prazer no medo das pessoas e porque isso lhes dá uma sensação de poder inigualável. Violência arbitrária e gratuita é o que temos aqui. Esta parte da história para mim não foi tão envolvente, não sei bem porquê, mas não a senti muito credível.
Na terceira e última parte, as duas histórias anteriores caminham paralelamente para um fim. É um desfecho feliz? Infeliz? Não sei, muitas vezes o que se tem não é uma coisa nem a outra, é apenas e só um desfecho, uma espécie de trégua ao sofrimento que se vive.

É um livro que pode ser chocante e desconfortável mas que, curiosamente a mim me deixou um pouco indiferente e, mais por isso do que pelo que ia lendo, me senti desconfortável. Porquê a indiferença numa leitura assim? Por um lado porque acho que a violência é algo tão presente no nosso dia-a-dia, principalmente através das notícias, mas também nos livros que lemos e nos filmes que vemos, que se torna mais difícil emocionarmos-nos com ela. E aperceber-me disso deixou-me desconfortável. No entanto, em minha defesa, que aparentemente corro o risco de me transformar num cubo de gelo, achei a escrita menos bem conseguida. Acho que o que me surpreendeu no A Ofensa foi o facto de a escrita ser mais subtil. Neste segundo volume o apelo ao sentimentalismo é mais notório e talvez por isso tenha ficado mais na defensiva. :)

O problema de RMS com os pontos finais persiste mas estranhamente, neste livro, fiquei até com a sensação de ideias sucintas, passadas através de frases curtas. Folheando o livro para tirar as teimas apercebo-me, agora e não durante a leitura, que RMS não tem meio termo, ora usa frases muito curtas, ora escreve autênticas teses entre um ponto final e o outro. Aparentemente neste as frases curtas devem estar em maioria.

É um livro que se lê num ápice e que nos mantém interessados até à última página e que faz uma reflexão muito interessante sobre o Mal, na sua forma mais pura e assustadora. Recomendo-o! ;)

Excerto:
"O mal encontra justificação na sua existência. O mal não precisa de prova ontológica, nem de redução ao absurdo, nem de fé ou de profetas. O mal é a sua própria expectativa.
A minha vida ensinou-me que é o bem que precisa de justificação. É o bem que precisa de um porquê, de uma causa, de um motivo. É o bem que, na realidade, constitui o mais profundo dos enigmas."

abril 10, 2011

Gente Feliz Com Lágrimas - João de Melo

Título original: Gente Feliz Com Lágrimas
Ano da edição original: 1988
Autor: João de Melo
Editora: "Colecção BIIS" da Leya

"Uma saga que irresistivelmente arrasta o leitor ao longo de cinco mundos, vividos e pensados através da obsessiva busca da felicidade que move os seus protagonistas. Concebida polifonicamente como a descrição dos vários modos de viver a amargura que medeia entre o abandono da terra e o retorno ao domínio do que é familiar, esta peregrinação possível em tempos de escassez de aventura é a definitiva lição de que o regresso se não limita a perfazer o círculo e constitui uma visão fascinante do Portugal que todos, de uma maneira ou de outra, conhecemos."

Este demorou algum tempo a ler, não porque não estivesse a gostar mas porque o próprio livro exige uma leitura mais sossegada e calma. Chegado ao fim, digo que gostei e muito. :)

Gente Feliz Com Lágrimas é um livro triste, muitas vezes violento e tão estranhamente próximo que se torna por vezes incómodo. Nele é narrada a história de Nuno e da sua família. Nuno é açoriano e o quarto filho de uma família onde as crianças nascem a um ritmo acelerado, "roubando" aos irmãos mais velhos a infância e a pouca ternura que os pais lhes dispensavam.
O livro está dividido em cinco partes. Na primeira parte Maria Amélia, Luís e Nuno contam-nos a infância dura que tiveram, numa família que gravitava em torno dos humores da figura paterna, um homem violentíssimo e duro, que espancava os filhos e os considerava apenas como braços para trabalhar que cedo tinham de começar a merecer o pão que comiam. A mãe era uma mulher que, ao contrário do que seria de esperar, não era submissa, mas sim desligada dos inúmeros filhos que lhe iam crescendo no ventre, era mesquinha e a versão feminina do marido para as filhas que com ela ficavam a gerir a casa. Este casal era, de certa forma, perfeito um para o outro, todo o amor que sentiam era direccionado para eles próprios, os filhos eram uma consequência da paixão animalesca que viviam.
Desta forma, Maria Amélia, a primogénita, tornou-se a única figura maternal que muitos dos irmãos conheceram. Com 4 ou 5 anos já tomava conta dos irmãos que iam nascendo a um ritmo alucinante, cozinhava e geria a casa. Nos intervalos dessas tarefas levava porrada da mãe se se distraia nalgum devaneio de criança ou se a sua tenra idade lhe dificultava a execução de algumas tarefas. Tornou-se uma menina triste e uma adulta amargurada e de olhos cansados.
Luís, o segundo filho, era um miúdo de bom coração que tentava proteger os irmãos travando a violência do pai. Começou, como todos os irmãos, a ajudar o pai nas tarefas diárias que a quinta exigia. E tal como todos os irmãos sentiu desde cedo a mão pesada do pai.
Nuno nasceu pequenino, o gémeo que sobreviveu, e cresceu frágil, magro, de pele clara e com os olhos azuis da mãe. Tão diferente do pai e dos irmãos foi sempre perseguido pelo pai que o achava um inútil que pouco contribuía para a economia da família.
Para fugirem aos trabalhos desumanos da quinta e à falta de amor dos pais, Maria Amélia ingressou num convento em Lisboa, Nuno num seminário, também no Continente e, Luís voluntariou-se para a tropa acabando por ser enviado para guerra na Guiné. Maria Amélia acabou por ser expulsa do convento gerido por freiras pouco caridosas e formou-se enfermeira ficando livre da influência dos pais. Nuno tem o mesmo destino, sendo expulso do seminário por se ter começado a interessar por política e a questionar em demasia. Torna-se professor e mais tarde um escritor relativamente bem sucedido, é o intelectual da família, de quem acaba por se afastar.
Nas restantes partes do livro, a história é narrada na perspectiva de Nuno, que entretanto se casou com Marta, a mulher que sempre idealizou mas por quem acaba por se desencantar. Conhecemos a sua vida e a dos irmãos que se encontram todos a viver no Canadá, para onde os pais também foram e onde acabam por morrer. Tanto Nuno como os irmãos vivem uma vida superficial, uma felicidade que nunca poderá ser livre de lágrimas, são todos eles "gente feliz com lágrimas".

É um livro pesado, muitas vezes doloroso e estranhamente comovente porque é desesperante a forma como todas aquelas crianças procuravam um gesto de ternura, de como mesmo sendo maltratadas não conseguiram nunca odiar os pais, tendo até tornado os seus últimos anos de vida o menos dolorosos possível. Que este pai me tenha conseguido surpreender com alguns gestos de genuína afeição no meio de tanta violência e descontrolo e que esses gestos tenham sido guardados nas memórias de infância daqueles adultos como se se tratassem de preciosidades é de cortar o coração. É na realidade um livro de cortar o coração e real demais.
O que me fez mais confusão foi o facto de eles nem serem uma família considerada pobre. Tinham algumas posses, eram proprietários de algumas terras e possuíam muitos animais. Trabalhavam muito é certo e tinham muitos filhos, mas a pobreza neste caso não era desculpa para a violência a que as crianças eram sujeitas desde cedo, forçadas a trabalhos pesados e a responsabilidades completamente desadequadas às suas idades. Não existiam atenuantes para a falta de amor daquele pai e daquela mãe e isso foi o que mais confusão me fez. Isso e o facto de toda a vizinhança saber do tratamento que era dado às crianças da família e nada fazer para além de criticar, virar costas ao pai e mais tarde ostracizar os filhos por serem filhos de quem eram.
É um livro muito duro mas que está escrito com algum sentido de humor e onde a crítica social está bem evidenciada. Retrata uns Açores agrestes, onde a natureza quase selvagem tornava a vida de gente já muito pobre ainda mais difícil. Bonitos e magníficos mas onde era extremamente duro viver e cujos habitantes eram eles próprios duros e tristes e cansados e desesperados.

Concluíndo, é um livro que está escrito numa linguagem extremamente rica e poética, cuja história é do mais angustiante que já li e que recomendo sem qualquer hesitação.

Excerto:
"Não compreendera ainda como o tinha eu salvo da crucificação. Mas quando os seus braços musculados se abriram para o meu corpo delgado, senti que o peito se lhe tornara discretamente ofegante, ao reconciliar-se com o meu. E, estando eu morto, ressuscitei. E, pedindo-me ele de novo que comesse, agarrei na tigela com as mãos muito trémulas e pus-me a sorver, em apressados e sôfregos tragos, aquele delicioso caldinho de farinha, com cujo sabor se cruzou para sempre a memória doce da minha infância. E os olhos dele, rasando-se de lágrimas, eram afinal olhos felizes com lágrimas - assim você me perdoe o facto de a minha história comportar também episódios felizes..."