"Kikia Matcho, o desalento do combantente, sua primeira obra literária, é, nas palavras do autor, um pequeno exercício de ficção. Nem história, nem sociologia, nem etnologia, nem política, tão-somente uma abordagem que se pretende dinâmica e existencial do porcesso de síntese sociocultural de um Povo."
O licenciado António Benaf sabe da morte do tio através da rádio. Benaf regressou há pouco tempo da Europa, onde foi estudar com o incentivo do tio que acabou de morrer e nunca mais falou com ele. 'N Dingui era um dos muitos ex-combatentes que deambula por Bissau, homens que vivem amargurados com o resultado da revolução que encabeçaram, que não compreendem porque estão ainda mais miseráveis e que encontram refúgio na bebida. 'N Dingui era mais um, entre muitos. Convicto dos ideais pelos quais lutou e nos quais nunca deixou de acreditar.
Joana, sobrinha de 'N Dingui e prima de Benaf, é uma enfermeira que veio para Portugal a seguir à independência porque acreditou na propaganda do antigo colonizador de que, quem viesse seria recompensado. Joana veio contra a vontade do tio que considerou o desejo dela como uma traição e falta de respeito pela luta que ele travou juntamente com os seus companheiros. Joana parte mesmo assim porque a miséria que viu na Guiné-Bissau independente assustou-a e acreditou que, como enfermeira, em Portugal teria mais oportunidades.
Papai e 'N Dingui foram companheiros de luta e eram parceiros de bebida na tasca de Mana Tchambú.
No dia em que 'N Dingui morre, encontramos Joana em Lisboa, a "viver" num apartamento sem portas de um prédio abandonado, com um filho resultado da promiscuidade em que todos vivem. Nesse prédio vivem, para além dela, muitos dos retornados das ex-colónias, em condições deploráveis, que apenas sonham com o dia em que o estado português lhes vai atribuir a casa prometida quando desembarcaram em Portugal. Temos Benaf, formado na Europa a viver num pequeno apartamento em Bissau com o desejo de ser grande e cujo lema é: "comer e deixar os outros comerem." Veio ocidentalizado, viver numa sociedade ainda muito ligada aos seus Irãs, cheia de contradições e que ele não percebe. Encontramos Papai triste por já ninguém se lembrar dos que lutaram ao lado de Amílcar Cabral, por os Comandantes não comparecerem no funeral do amigo, angustiado com o país que resultou da independência. No entanto, é um homem que continua convicto daquilo por que lutou e a esperança de que um dia ele e os seus companheiros de luta irão ser reconhecidos pelo que fizeram pelo país continua bem viva. Benaf refere-se a ele como um velho interessante, simpático, mas os temas eram sempre os mesmos, a fazer lembrar o outro lado da consciência, precisamente o lado que ele estava interessado em eliminar.
Kikia Matcho significa Mocho Macho e dá título ao livro porque no dia em que 'N Dingui morre, o sobrinho Benaf vê um kikia matcho na janela, a sobrinha Joana, em Lisboa sonha com um kikia matcho com o rosto do tio e o amigo Papai vê um kikia matcho com o rosto do amigo. Segundo as crenças locais, um kikia e ainda por cima matcho é ave de mau agoiro e ter este animal associado a um defunto não pode significar coisa boa. Aparentemente a alma de 'N Dingui está com problemas em atravessar para o outro lado, está preso num limbo e precisa da ajuda dos companheiros de armas para evitar ser mandado de volta, juntamente com outros que se encontram na mesma situação, para a terra como kassissas (espíritos malignos). Parece que Cabral e todos os que morreram antes da luta terminar estão a impedir os antigos combatentes de passarem e exigem que seja feita uma cerimónia. Mas que cerimónia é essa? Ninguém sabe... O que Papai não vai permitir é que o país que já salvou antes da mãos dos tugas seja agora invadido por kassissas. Não o permitirá, por lealdade a Cabral, mesmo que na tasca de Mana Tchambú todos lhe digam que kassissas já eles são todos, despojos de uma sociedade que os quer esquecer, autênticos mortos vivos.
Gostei deste livro, principalmente porque gostei de ler sobre a Guiné-Bissau. Quando falamos da guerra colonial acabamos sempre por falar de Angola, as pessoas que retornaram com a independência das ex-colónias vinham maioritariamente de Angola e Moçambique e a verdade é que pouco se sabe (falo por mim) do como foram as coisas na Guiné e em Cabo Verde, por exemplo.
A história em si, não chega a ser uma história, é mais, como o autor diz uma "abordagem sociocultural de um povo", onde ele nos vai falando da cultura africana, da absorção e integração nos seus rituais da cultura ocidental, do povo guineense e da relação tensa entre estes e os cabo-verdianos, considerados uma elite por serem mais claros e mais instruídos.
Fala das desilusões, tanto de quem ficou como de quem partiu para Portugal à procura de uma vida melhor. Quem ficou, viu-se ficar ainda mais miserável, vendo muitas das chefias aproveitarem-se do poder recém-adquirido e deixando o povo continuar mal. Os que partiram, como Joana, não ficaram melhor.
Fala da pobreza, não só material mas também de espírito e de como a necessidade pode esbater barreiras e preconceitos. Joana, na Guiné era instruída, tinha um lugar na sociedade guineense, olhava de lado os cabo-verdianos. Em Portugal obrigada pela necessidade a viver com todo o tipo de gente deixou de olhar para cores e origens e passou a ver apenas pessoas que estavam na mesma situação que ela. Em Portugal ela era mais uma entre muitas.
O livro, embora não seja especialmente inspirado, porque a escrita de Filinto de Barros é repetitiva, quase amadora mas, fala de assuntos pertinentes e para quem gosta de ler sobre estes assuntos acho que poderá ser um livro a considerar.
Recomendo, porque no meu caso, me deixou culturalmente mais rica. Aprendi umas quantas coisas que, se já as sabia, não estavam suficientemente cimentadas na minha cabeça para as considerar como sabidas! :)
O licenciado António Benaf sabe da morte do tio através da rádio. Benaf regressou há pouco tempo da Europa, onde foi estudar com o incentivo do tio que acabou de morrer e nunca mais falou com ele. 'N Dingui era um dos muitos ex-combatentes que deambula por Bissau, homens que vivem amargurados com o resultado da revolução que encabeçaram, que não compreendem porque estão ainda mais miseráveis e que encontram refúgio na bebida. 'N Dingui era mais um, entre muitos. Convicto dos ideais pelos quais lutou e nos quais nunca deixou de acreditar.
Joana, sobrinha de 'N Dingui e prima de Benaf, é uma enfermeira que veio para Portugal a seguir à independência porque acreditou na propaganda do antigo colonizador de que, quem viesse seria recompensado. Joana veio contra a vontade do tio que considerou o desejo dela como uma traição e falta de respeito pela luta que ele travou juntamente com os seus companheiros. Joana parte mesmo assim porque a miséria que viu na Guiné-Bissau independente assustou-a e acreditou que, como enfermeira, em Portugal teria mais oportunidades.
Papai e 'N Dingui foram companheiros de luta e eram parceiros de bebida na tasca de Mana Tchambú.
No dia em que 'N Dingui morre, encontramos Joana em Lisboa, a "viver" num apartamento sem portas de um prédio abandonado, com um filho resultado da promiscuidade em que todos vivem. Nesse prédio vivem, para além dela, muitos dos retornados das ex-colónias, em condições deploráveis, que apenas sonham com o dia em que o estado português lhes vai atribuir a casa prometida quando desembarcaram em Portugal. Temos Benaf, formado na Europa a viver num pequeno apartamento em Bissau com o desejo de ser grande e cujo lema é: "comer e deixar os outros comerem." Veio ocidentalizado, viver numa sociedade ainda muito ligada aos seus Irãs, cheia de contradições e que ele não percebe. Encontramos Papai triste por já ninguém se lembrar dos que lutaram ao lado de Amílcar Cabral, por os Comandantes não comparecerem no funeral do amigo, angustiado com o país que resultou da independência. No entanto, é um homem que continua convicto daquilo por que lutou e a esperança de que um dia ele e os seus companheiros de luta irão ser reconhecidos pelo que fizeram pelo país continua bem viva. Benaf refere-se a ele como um velho interessante, simpático, mas os temas eram sempre os mesmos, a fazer lembrar o outro lado da consciência, precisamente o lado que ele estava interessado em eliminar.
Kikia Matcho significa Mocho Macho e dá título ao livro porque no dia em que 'N Dingui morre, o sobrinho Benaf vê um kikia matcho na janela, a sobrinha Joana, em Lisboa sonha com um kikia matcho com o rosto do tio e o amigo Papai vê um kikia matcho com o rosto do amigo. Segundo as crenças locais, um kikia e ainda por cima matcho é ave de mau agoiro e ter este animal associado a um defunto não pode significar coisa boa. Aparentemente a alma de 'N Dingui está com problemas em atravessar para o outro lado, está preso num limbo e precisa da ajuda dos companheiros de armas para evitar ser mandado de volta, juntamente com outros que se encontram na mesma situação, para a terra como kassissas (espíritos malignos). Parece que Cabral e todos os que morreram antes da luta terminar estão a impedir os antigos combatentes de passarem e exigem que seja feita uma cerimónia. Mas que cerimónia é essa? Ninguém sabe... O que Papai não vai permitir é que o país que já salvou antes da mãos dos tugas seja agora invadido por kassissas. Não o permitirá, por lealdade a Cabral, mesmo que na tasca de Mana Tchambú todos lhe digam que kassissas já eles são todos, despojos de uma sociedade que os quer esquecer, autênticos mortos vivos.
Gostei deste livro, principalmente porque gostei de ler sobre a Guiné-Bissau. Quando falamos da guerra colonial acabamos sempre por falar de Angola, as pessoas que retornaram com a independência das ex-colónias vinham maioritariamente de Angola e Moçambique e a verdade é que pouco se sabe (falo por mim) do como foram as coisas na Guiné e em Cabo Verde, por exemplo.
A história em si, não chega a ser uma história, é mais, como o autor diz uma "abordagem sociocultural de um povo", onde ele nos vai falando da cultura africana, da absorção e integração nos seus rituais da cultura ocidental, do povo guineense e da relação tensa entre estes e os cabo-verdianos, considerados uma elite por serem mais claros e mais instruídos.
Fala das desilusões, tanto de quem ficou como de quem partiu para Portugal à procura de uma vida melhor. Quem ficou, viu-se ficar ainda mais miserável, vendo muitas das chefias aproveitarem-se do poder recém-adquirido e deixando o povo continuar mal. Os que partiram, como Joana, não ficaram melhor.
Fala da pobreza, não só material mas também de espírito e de como a necessidade pode esbater barreiras e preconceitos. Joana, na Guiné era instruída, tinha um lugar na sociedade guineense, olhava de lado os cabo-verdianos. Em Portugal obrigada pela necessidade a viver com todo o tipo de gente deixou de olhar para cores e origens e passou a ver apenas pessoas que estavam na mesma situação que ela. Em Portugal ela era mais uma entre muitas.
O livro, embora não seja especialmente inspirado, porque a escrita de Filinto de Barros é repetitiva, quase amadora mas, fala de assuntos pertinentes e para quem gosta de ler sobre estes assuntos acho que poderá ser um livro a considerar.
Recomendo, porque no meu caso, me deixou culturalmente mais rica. Aprendi umas quantas coisas que, se já as sabia, não estavam suficientemente cimentadas na minha cabeça para as considerar como sabidas! :)