agosto 22, 2010

Kikia Matcho - Filinto de Barros


"Kikia Matcho, o desalento do combantente, sua primeira obra literária, é, nas palavras do autor, um pequeno exercício de ficção. Nem história, nem sociologia, nem etnologia, nem política, tão-somente uma abordagem que se pretende dinâmica e existencial do porcesso de síntese sociocultural de um Povo."

O licenciado António Benaf sabe da morte do tio através da rádio. Benaf regressou há pouco tempo da Europa, onde foi estudar com o incentivo do tio que acabou de morrer e nunca mais falou com ele. 'N Dingui era um dos muitos ex-combatentes que deambula por Bissau, homens que vivem amargurados com o resultado da revolução que encabeçaram, que não compreendem porque estão ainda mais miseráveis e que encontram refúgio na bebida. 'N Dingui era mais um, entre muitos. Convicto dos ideais pelos quais lutou e nos quais nunca deixou de acreditar.
Joana, sobrinha de 'N Dingui e prima de Benaf, é uma enfermeira que veio para Portugal a seguir à independência porque acreditou na propaganda do antigo colonizador de que, quem viesse seria recompensado. Joana veio contra a vontade do tio que considerou o desejo dela como uma traição e falta de respeito pela luta que ele travou juntamente com os seus companheiros. Joana parte mesmo assim porque a miséria que viu na Guiné-Bissau independente assustou-a e acreditou que, como enfermeira, em Portugal teria mais oportunidades.
Papai e 'N Dingui foram companheiros de luta e eram parceiros de bebida na tasca de Mana Tchambú.
No dia em que 'N Dingui morre, encontramos Joana em Lisboa, a "viver" num apartamento sem portas de um prédio abandonado, com um filho resultado da promiscuidade em que todos vivem. Nesse prédio vivem, para além dela, muitos dos retornados das ex-colónias, em condições deploráveis, que apenas sonham com o dia em que o estado português lhes vai atribuir a casa prometida quando desembarcaram em Portugal. Temos Benaf, formado na Europa a viver num pequeno apartamento em Bissau com o desejo de ser grande e cujo lema é: "comer e deixar os outros comerem." Veio ocidentalizado, viver numa sociedade ainda muito ligada aos seus Irãs, cheia de contradições e que ele não percebe. Encontramos Papai triste por já ninguém se lembrar dos que lutaram ao lado de Amílcar Cabral, por os Comandantes não comparecerem no funeral do amigo, angustiado com o país que resultou da independência. No entanto, é um homem que continua convicto daquilo por que lutou e a esperança de que um dia ele e os seus companheiros de luta irão ser reconhecidos pelo que fizeram pelo país continua bem viva. Benaf refere-se a ele como um velho interessante, simpático, mas os temas eram sempre os mesmos, a fazer lembrar o outro lado da consciência, precisamente o lado que ele estava interessado em eliminar.
Kikia Matcho significa Mocho Macho e dá título ao livro porque no dia em que 'N Dingui morre, o sobrinho Benaf vê um kikia matcho na janela, a sobrinha Joana, em Lisboa sonha com um kikia matcho com o rosto do tio e o amigo Papai vê um kikia matcho com o rosto do amigo. Segundo as crenças locais, um kikia e ainda por cima matcho é ave de mau agoiro e ter este animal associado a um defunto não pode significar coisa boa. Aparentemente a alma de 'N Dingui está com problemas em atravessar para o outro lado, está preso num limbo e precisa da ajuda dos companheiros de armas para evitar ser mandado de volta, juntamente com outros que se encontram na mesma situação, para a terra como kassissas (espíritos malignos). Parece que Cabral e todos os que morreram antes da luta terminar estão a impedir os antigos combatentes de passarem e exigem que seja feita uma cerimónia. Mas que cerimónia é essa? Ninguém sabe... O que Papai não vai permitir é que o país que já salvou antes da mãos dos tugas seja agora invadido por kassissas. Não o permitirá, por lealdade a Cabral, mesmo que na tasca de Mana Tchambú todos lhe digam que kassissas já eles são todos, despojos de uma sociedade que os quer esquecer, autênticos mortos vivos.

Gostei deste livro, principalmente porque gostei de ler sobre a Guiné-Bissau. Quando falamos da guerra colonial acabamos sempre por falar de Angola, as pessoas que retornaram com a independência das ex-colónias vinham maioritariamente de Angola e Moçambique e a verdade é que pouco se sabe (falo por mim) do como foram as coisas na Guiné e em Cabo Verde, por exemplo.
A história em si, não chega a ser uma história, é mais, como o autor diz uma "abordagem sociocultural de um povo", onde ele nos vai falando da cultura africana, da absorção e integração nos seus rituais da cultura ocidental, do povo guineense e da relação tensa entre estes e os cabo-verdianos, considerados uma elite por serem mais claros e mais instruídos.
Fala das desilusões, tanto de quem ficou como de quem partiu para Portugal à procura de uma vida melhor. Quem ficou, viu-se ficar ainda mais miserável, vendo muitas das chefias aproveitarem-se do poder recém-adquirido e deixando o povo continuar mal. Os que partiram, como Joana, não ficaram melhor.
Fala da pobreza, não só material mas também de espírito e de como a necessidade pode esbater barreiras e preconceitos. Joana, na Guiné era instruída, tinha um lugar na sociedade guineense, olhava de lado os cabo-verdianos. Em Portugal obrigada pela necessidade a viver com todo o tipo de gente deixou de olhar para cores e origens e passou a ver apenas pessoas que estavam na mesma situação que ela. Em Portugal ela era mais uma entre muitas.
O livro, embora não seja especialmente inspirado, porque a escrita de Filinto de Barros é repetitiva, quase amadora mas, fala de assuntos pertinentes e para quem gosta de ler sobre estes assuntos acho que poderá ser um livro a considerar.

Recomendo, porque no meu caso, me deixou culturalmente mais rica. Aprendi umas quantas coisas que, se já as sabia, não estavam suficientemente cimentadas na minha cabeça para as considerar como sabidas! :)

9 comentários:

  1. Este foi o único livro que não comprei desta colecção de "Autores Lusófonos".
    A tua opinião deu-me uma outra visão sobre a história deste livro. Agradou-me.

    Também nunca li nada de Mario Vargas Llosa, que me suscita alguma curiosidade. Vou aguardar pela tua opinião. :)

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  2. Estive com o livro na mão várias vezes e, hesitante, voltei sempre a devolvê-lo ao "monte" (sim, porque livros por ler, comigo, não vão para a prateleira mas para um monte.
    Mas ainda bem que gostaste; é mais um argumento para"ir ao monte" :)

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  3. tonsdeazul: O tema é interessante e pelo preço a que ele veio com a revista valeu muito a pena. :)
    É o primeiro que vou ler do Mario Vargas Llosa. Confesso que estou curiosa para conhecer a escrita dele.

    Manuel: Eu não posso ter "montes" de livros por ler. Viveria numa excitação constante, a pensar qual seria o próximo. eheh :)

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  4. Pronto. Prometi e cumpri! Menos um no monte! :)
    Também gostei muito do livro pelas mesmas razões que tu apontas. Há muita coisa na memória histórica que convém que se saibam. Nós, os heróis dos descobrimentos nem sempre fomos os "bons da história".

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  5. Manuel: Eu aprendi imenso com este livro. Muitas vezes é só isso que queremos de um livro, que nos deixe mais ricos, como pessoas e não só. :)

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  6. Olá pes­soal do Quero Um Livro, venho por este meio felicitar-​vos pelo exce­lente blog que aqui têm e informar-​vos que foi com todo o pra­zer que o vosso blog foi adi­ci­o­nado à barra late­ral de Outras Lei­tu­ras do recen­te­mente inau­gu­rado blog «O Tra­ves­são», pois blogs como este foram cer­ta­mente uma influên­cia à sua cri­a­ção, fica feito o con­vite para darem lá uma vista de olhos.

    http://​otra​ves​sa​o​blog​.blogs​pot​.com

    Abraço, Fer­nando

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  7. Olá pessoal do Quero Um Livro, venho por este meio comunicar-vos que já se encontra disponivel no blog "O Travessão" a entrevista a Maria Araújo Lima,a autora do recém publicado thriller policial Anástasis!

    Passem por lá e digam o que acharam.

    Abraço, Fernando

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  8. Olá Fernando! Obrigada pelos elogios. Vou já espreitar o Travessão. :)

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