janeiro 30, 2011

A Ofensa - Ricardo Menéndez Salmón

"Se o corpo é a fronteira entre cada um de nós e o mundo, como pode o corpo defender-nos do horror? Quanta dor pode um homem suportar? Pode o amor salvar aquele que perdeu a esperança? São estas algumas da perguntas implícitas em A Ofensa, a história de Kurt Crüwell, um jovem alfaiate alemão empurrado pelo nazismo para o vórtice de uma experiência radical e insólita."

Não sei bem o que dizer acerca deste livro. Há livros que nos deixam assim: a precisar de um tempo para pensar neles e conseguir falar deles.
Numa fase inicial estava a achar a história muito banal, sem nada que sobressaísse, a não ser as frases gigantescas que formam parágrafos inteiros sem pontos finais. :) Os acontecimentos são contados sem que o autor nos envolva muito nos mesmos, as descrições são um pouco frias e distantes. Kurt Crüwell parecia-me demasiado complacente com a sua situação de soldado à força e pouco incomodado com a realidade dos factos. Depois a história vai crescendo de intensidade e, então ocorre o episódio na aldeia de Mieux, a 2 de Janeiro de 1941, o dia em que Kurt Crüwell ficou insensível. Nesse dia, Kurt assistiu a uma amostra do mal que o ser humano pode provocar no seu semelhante e, o que viu foi demasiado para o alfaiate de Bielefeld, na Alemanha que, com 24 anos se viu envolvido na 2ª Guerra Mundial ao ser recrutado pelos nazis.
Nesta altura é já difícil largar o livro, embora a segunda parte deste seja, de certa forma, mais calma. Quando entramos na terceira e última parte, Kurt ainda sem qualquer sensibilidade, está em Inglaterra, a receber a notícia de que vai ser pai e ficamos felizes por ele. Depois Kurt ouve a palavra Schneider - Alfaiate - vinda de três homens vestidos de preto. Kurt em Inglaterra era de origem francesa, desde que lá chegara nunca mais falou alemão, até já sonhava em inglês. Ouvir aquela palavra, de repente, deixou-o atordoado, ou o equivalente ao que sente um homem incapaz de sentir. Essa palavra leva-o, numa espécie de transe, a perseguir os estranhos que a pronunciaram. O livro não acaba sem que Kurt volte a demonstrar a capacidade de, fisicamente, reagir a uma emoção. No fim, Kurt volta a sentir...

O livro tem um fim surpreendente e inesperado e que me deixou com um nó na garganta. São poucos os livros que me emocionam e, embora este não o faça de uma forma óbvia, a verdade é que dei por mim tensa e fechei o livro angustiada e com vontade de chorar... Não é fácil, como já disse, e era algo que não estava a contar que acontecesse com este livro, aparentemente tão banal e que no início parecia prometer tão pouco.
Inicialmente a leitura pode ser menos fluída, por causa do tamanho das frases que são realmente muito longas. Ainda o meu orientador de mestrado dizia que as minha frases eram longas demais... Dei-lhe razão e desde então é algo que tento controlar mas, agora que encontrei alguém que é bem pior, o meu "problema" com os pontos finais perdeu algum significado. ;)
Gostei das perguntas que o livro vai colocando acerca da capacidade do corpo humano de resistir, ou não, à maldade alheia e ao horror. Gostei da forma como está estruturado, com capítulos muito pequenos e de rápida leitura. Louvo a capacidade de Ricardo Menéndez Salmón de ter feito um livro com tão poucas páginas mas que são as necessárias; mais uma teria sido demais e menos uma teria sido de menos. É uma capacidade que nem todos os escritores possuem. RMS é sucinto mas extremamente eficaz a passar a mensagem que pretende.

Gostei muito e recomendo. Agora que foi editado em Portugal o terceiro volume desta "Trilogia do Mal" ( A Ofensa, Derrocada e O Revisor) a ver se compro os três (este veio da Biblioteca - mais um que gostaria de reportar como perdido...).

Boas leituras! :)

Excerto:
"Face às agressões do mundo, o corpo protege-se. Um bacilo activa as suas defesas; um aguaceiro eriça os pêlos dos braços, nuca e pernas; um alimento envenenado relaxa os esfíncteres. Mas, e o horror? Como reage o corpo de um homem face à presença do horror? Grita, sim. E faz com que o coração bombeie mais sangue, sim. Ou, pelo contrário, paralisa os músculos para não ser agredido. (...) Mas pode um corpo demitir-se da realidade? Pode um corpo face à agressão do mundo, face à fealdade do mundo, face ao horror do mundo, subtrair-se às suas funções, recusar-se a continuar a ser corpo, suspender as suas razões, abdicar de ser o que é, isto é, abdicar de ser uma máquina sensível? Pode um corpo dizer: «Basta, não quero ir mais longe, isto é demasiado para mim»? Pode um corpo esquecer-se de si próprio?"

janeiro 27, 2011

Contos - Eça de Queirós (parte III)

Chego ao fim deste livro de Contos do Eça de Queirós, com uma opinião melhor acerca de livros de contos. Começo a compreender as suas vantagens e a beleza que pode existir em pequenas histórias.

Ficam aqui os últimos textos deste livro:

A Aia:
Mais uma história triste... Um conto onde o Rei morre e o sucessor directo é o seu filho, um bebé com apenas alguns meses de vida. Naturalmente que irá surgir alguém que vai querer disputar o trono e a única maneira de o conseguir é matando o príncipe. Quando o castelo é atacado, no calor do momento, a aia do príncipe troca-o pelo seu próprio filho, também ele um bebé de meses e é este que acaba por morrer. Uma história triste, muito triste.

As Histórias: Frei Genebro:
Frei Genebro era um santo homem que na sua vida havia cometido apenas uma má acção. E mesmo essa acção cometeu com boas intenções, para ajudar um amigo em dificuldades, e nunca tomou verdadeira consciência do que tinha feito. Quando morre, já velhinho, no purgatório, a balança das boas e más acções que cometeu na sua vida equilibra-se. Aquela única acção igualou todas as coisas boas que fez ao longo de anos e anos de uma vida dedicada aos outros. No fim, Frei Genebro é repelido do Paraíso.
Lição a tirar: existem actos que não merecem perdão, principalmente aqueles que nem remorsos nos provocam por nem sequer conseguirmos apreender a enormidade do que acabámos de cometer.

O Defunto:
Uma história de amor, ciúme e milagres. :) Uma história que está muito bem escrita e que me fez prender a respiração durante toda a caminhada de D. Rui de Cardenas até ao Cabril, tal era a expectativa. :)

Adão e Eva no Paraíso:
"Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às duas horas da tarde... (...)Então, numa floresta muito cerrada e muito tenebrosa, certo Ser, desprendendo lentamente a garra do galho de árvore onde se empoleirara toda essa manhã de longos séculos, escorregou pelo tronco comido de hera, pousou as duas patas no solo que o musgo afofava, sobre as duas patas se formou com esforçada energia, e ficou erecto, e alargou os braços livres, e lançou um passo forte, e sentiu a sua dissemelhança da animalidade."
Eça conta aqui uma versão da história de Adão e Eva onde mistura muito bem a versão bíblica com a teoria da evolução. Gostei muito deste texto, principalmente porque, nesta versão, Eva come do fruto do Saber e é ela a responsável por humanizar Adão, que até aí pouco diferia dos outros animais no Paraíso. :)

A Perfeição:
Encontramos Ulisses na ilha Ogigia onde naufragou e foi acolhido pela Deusa Calipso. Há já sete longos anos que Ulisses, agora mais gordo e com mãos as macias, por nada ter de fazer a não ser satisfazer as vontades de Calipso, se encontra na ilha. Não tem meios para de lá sair e, a bem da verdade, falta-lhe também a autorização de Calipso. A Deusa pergunta-se porque haveria Ulisses de querer voltar para os braços da mortal Penélope? Ulisses explica-lhe que sete anos de perfeição é demais e anseia pela imperfeição da vida mortal. É com imensa alegria que Ulisses parte, numa jangada construída por ele, rumo à vida mortal, com todos os perigos que lhe são inerentes.

José Matias:
Uma história de amor que embora não tenha propriamente um final feliz - aparentemente Eça não é dos que gostam de terminar com o "Viveram Felizes para Sempre!" - tem o final que, no meio de tanto desencontro e más decisões, um dos protagonistas sentiu ser o final correcto. José Matias era homem sério, pouco dado a grandes sentimentos, até ao dia em que pousa a vista em Elisa. Elisa é sua vizinha e casada com Matos Miranda, um senhor com alguma idade e muito doente. Os dois mantêm uma relação puramente espiritual e durante 10 anos nunca trocaram um beijo sequer, trocando olhares e cartas por cima do muro que os separa. Quando Elisa fica viúva, José Matias parte para o Porto e recusa casar-se com Elisa. Porquê, só ele o saberá. Só ele saberá também porque continua a vigiar todos os passos de Elisa, mesmo depois de ela ter casado novamente, ter ficado viúva mais uma vez e ter tomando para amante, sem com ele casar, outro homem que não José Matias. Só ele saberá porque desgraçou a vida dele por amor de uma mulher que o amava de igual forma e que nunca deixou de o amar... Há pessoas que complicam e muito a vida! :)

O Suave Milagre e Um Milagre:
Dois contos que são uma versão ligeiramente diferente da que surge no conto Outro Amável Milagre (já comentado aqui).
Não sei porque decidiram incluir estes no livro, porque o Um Milagre é na sua essência igual ao final dos outros dois e, O Suave Milagre é algo que poderia ter sido acrescentado ao conto Outro Amável Milagre. Segundo nota no final do livro, estes três contos são três versões diferentes da mesma história, que Eça publicou em diferentes revistas e colectâneas da altura.


Nestes textos, surpreendeu-me o tema religioso estar tão presente, muitas das histórias eram sobre Jesus, porque nunca me tinha apercebido desse gosto por parte do Eça. Não foram esses contos os que mais me entusiasmaram, devo dizer, mas a escrita de Eça é sempre muito boa e até esses li com gosto.
É uma colectânea de textos que merecem ser lidos e por isso só posso recomendar a leitura dos mesmos. Destaco de entre todos estes os que mais me disseram: Memórias de uma Forca, A Catástrofe, Um Dia de Chuva, Civilização, O Defunto e Adão e Eva no Paraíso.

Boas leituras!

Déjà Lu - Leilão de Livros

Deixo aqui a informação sobre uma iniciativa que me parece de muito valor:




No site: http://dejalu4ds.blogspot.com/ são leiloados livros usados cujo lucro reverte na sua totalidade para a APPT21, Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21.
É possível ainda fazer doação de livros.

Informação "roubada" do blogue Horas Extraordinárias:
http://horasextraordinarias.blogs.sapo.pt/48132.html

Continuação de boas leituras.

janeiro 25, 2011

Contos - Eça de Queirós (parte II)

Mais Contos de Eça de Queirós. Destaco A Catástrofe, texto tão certeiro no século XIX como nos nossos dias.

Sir Galahad:
Relato da demanda pelo Santo Graal de Sir Galahad, um dos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Artur. Demanda que o leva a vaguear pela terra perseguindo o privilégio de segurar com as suas mãos mortais a taça por onde Jesus Cristo bebeu na última Ceia. Ao longa da jornada tumultuosa e solitária, encontra alguns do cavaleiros da Távola Redonda que também partiram na mesma demanda e dá por si, depois de atravessar um mar envolto de névoas, num mosteiro onde encontra a sepultura de Percival, Cavaleiro de Artur, sepultura esta com mais de vinte anos. Para onde foram todos esses anos que não recorda ter vivido?

A Catástrofe:
Não poderia ter lido este conto em melhor altura: rescaldo das eleições da abstenção e da indiferença.
Em A Catástrofe Eça apresenta o país invadido por um inimigo estrangeiro. Lisboa está ocupada e o protagonista vive angustiado com a sentinela inimiga que todos os dias vê, da sua janela, em frente ao Arsenal. O protagonista em retrospectiva encontra algumas das razões para o estado a que o país chegou: "Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade...Estávamos caquécticos!"
O conto acaba deixando alguma esperança num futuro melhor, entregue nas mãos de uma geração que crescerá com o objectivo de recuperar a pátria pelo "caminho seguro (...): trabalhar, crer e, sendo pequenos pelo território, sermos grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma (...) e a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora."

Evoluímos assim tão pouco, como país?
Muito bom este texto. :)

Um Poeta Lírico:
A história de Korriscosso, um poeta lírico grego que o narrador encontra a servir à mesa num hotel em Londres. Alma triste e angustiada que lhe desperta a curiosidade. Ama quem não o ama. Ama quem não tem a capacidade de compreender a profundidade da sua alma, mas ama mesmo assim... :)

No Moinho:
História triste esta... A mais bela rapariga da aldeia casa-se com o enfermiço João Coutinho para fugir à vida triste que até aí levara em casa dos pais. No entanto, a vida que a espera é a vida de um enfermeira, que cuida do marido entrevado e dos três filhos pouco saudáveis. Mãe e esposa extremosa, "toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado", até ao dia em que Adrião aparece e ela se apercebe do que poderia ser a sua vida...
Triste, é verdade, mas a escrita de Eça torna-o meio irónico e por isso menos pesado.

Outro Amável Milagre:
Mais um texto religioso, onde a fama de milagreiro de Jesus começa a crescer. Todos os procuram mas só aqueles que o procuram de coração puro o conseguem encontrar.
Não sabia Eça tão religioso e estou a achar estranha esta inclinação... :)

Um Dia de Chuva:
José Ernesto vai à província conhecer a quinta que pretende comprar. Está farto de Lisboa, do seu cheiro a pó e da fútil vida que lá leva. Quando chega à quinta começa a chover, uma chuva que não pára e que não lhe permite conhecer o terreno e os arredores da casa. Uma chuva que deprime e que o deixa desgostoso. É no entanto por causa dessa chuva que se apaixona pela mulher com quem casará. Um amor que começou a crescer ainda antes de a ter conhecido. História bonita e muito bem escrita. :)

Enghelberto:
Enghelberto, senescal das Ilhas, príncipe da Escânia e senhor de Elfingor, também conhecido por O Cavaleiro de Estanho era um jovem violento, impiedoso e sanguinário que atormentava a vida dos seus súbditos. Esta é a história de Enghelberto. :)

Civilização:
Uma história acerca de um homem, Jacinto, supercivilizado, que vive na sua casa, o Jasmineiro, rodeado por toda a tecnologia disponível na época. Vive rodeado de livros e tem um biblioteca invejável. Porque se sente, então Jacinto tão aborrecido? Porque parece tão desligado do mundo e dos seus prazeres? A verdade é que Jacinto só vai aprender a beleza da vida quando parte para o seu solar em Torges. Isolado num sítio sem luxos, por ter estado abandonada a casa, Jacinto descobre a beleza da natureza, descobre as estrelas, a boa comida e a simplicidade das coisas importantes. Por lá fica e retornar à civilização é algo em que nem sequer pensa.

As Histórias: o Tesouro:
"Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram, em todo o reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados." Um dia estes irmãos encontram, na floresta uma arca cheia de moedas de ouro e a vida deles dá uma volta de 180º. ;)

Mais Contos numa terceira e última parte.

Boas leituras!

janeiro 23, 2011

Contos - Eça de Queirós (parte I)

Apercebi-me no outro dia de que nunca tinha lido este livro de Contos do Eça de Queirós. Tenho-o aqui em casa desde sempre, no entanto a minha menor inclinação para contos sempre adiou a sua leitura. Cheguei inclusive, a levá-lo para a escola, pois estudei nas aulas de português dois dos contos que fazem parte desta colectânea: A Aia e No Moinho. Nunca fui além disso e quando deixei de precisar dele para escola, voltou ao seu lugar nas estantes, entre A Cidade e as Serras e Prosas Bárbaras. Apercebi-me no outro dia que me apetecia ler Eça de Queirós e porque não um livro de contos?
Sendo os textos tão diversos um dos outros decidi que valia a pena falar de todos individualmente.

Ficam aqui os que li até agora.

O Réu Tadeu:
Tadeu Esteves é encontrado junto ao corpo de Simão. Simão é seu irmão e enforcou-se. Tadeu é preso pelo homicídio do irmão, e a única coisa que disse durante todo o julgamento foi que era culpado. Se é ou não culpado, não sabemos. Sendo um texto que está incompleto, o máximo que podemos fazer é, com a informação que os textos que Tadeu escreveu na cadeia, enquanto aguardava a execução da pena, morte por enforcamento, especular acerca do que realmente se passou. Tenho pena que este texto esteja incompleto pois deixou-me muito curiosa e gostei de o ler.

O Milhafre:
Eça de Queirós depois de dizer que "a literatura em Portugal está a agonizar", conta-nos uma fábula.
Numa casa arruinada havia um portal com um nicho onde um santo de pedra lia uma Bíblia de pedra, da qual não despegava os olhos. A excepção acontecia quando, à noite aparecia uma criança muito pobre que se deitava junto ao nicho. Aí, "o santo afastava um pouco o livro, e toda a noite ficava cobrindo com a grande luz dos seus olhos aquela criança miserável, adormecida sobre as lajes."
Na mesma casa arruinada, havia um crucifixo onde "sobre a cabeça e sobre os braços de Cristo havia teias de aranha: em baixo os ratos roíam-lhe a cruz." Um homem entra na casa arruinada e, compadecendo-se do estado em que se encontra o crucifixo prepara-se para limpá-lo, no entanto, o milhafre que lá se encontra pousado não deixa: "Deixa as aranhas, o pó, a caliça, os bichos, a neve, a geada, o apodrecimento. (...) Tudo o que ele criou, o amor, o ideal, o perdão, a fé, o pudor, a religião, Deus, todo aquele evangelho da vida nova, anda pelo mundo, tão degredado, tão coberto de bichos, tão imundo, como o seio desta imagem antiga."
Gostei muito deste conto, onde Eça de Queirós, pela voz do milhafre transparece alguma tristeza por o Homem ter morto a alma e o pensamento e cultivar o culto do corpo: "Oh, amigos íntimos dos vermes, como vós cuidais do corpo, e o laveis, e o amaciais, e o engordais - para a pastagem escura das covas."

O Senhor Diabo:
"O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez a nostalgia do Céu!" Assim é retratado o Senhor Diabo, uma criatura cuja existência não é a preto e branco, está antes cheia de todas as cores do arco-íris. Criatura que está mais perto do Homem que Deus.

Memórias de Uma Forca:
Neste conto conhecemos as memórias de uma forca, um carvalho que "desde pequeno fui triste e compassivo. (...) eu só queria o bem, o riso, a dilatação salutar das fibras e das almas." Um dia "um daqueles homens metálicos que fazem o tráfico da vegetação, veio arrancar-me à árvore". A Forca descreve a sua viagem angustiante até à cidade, sem saber que destino a aguardava. Quando percebeu que iria ser uma forca ficou "inerte, dissolvida na aflição (...) tinha enfim entrado na realidade pungente da vida. O meu Destino era matar."
Muito bonito este conto, escrito de uma forma que achei muito original.

A Morte de Jesus:
Mais um texto incompleto que não li todo. É o relato de Eliziel, capitão da polícia do Templo sobre a altura em que Jesus da Nazaré apareceu em Jerusalém e começou a ser conhecido como o Messias e Profeta. É um conto a dar para o comprido e o tema, demasiado religioso, com referências que não compreendo não me cativou.

Singularidades de Uma Rapariga Loura:
Um jovem pacato e reservado é um guarda-livros competente e responsável do armazém do seu tio. Um dia, numa janela do outro lado da rua, surge uma rapariga loura que prende a sua atenção e lhe rouba o coração. Apaixonado e cego de amor desvaloriza os pequenos incidentes que parecem ocorrer quando ela está por perto. Por causa dela, perde o emprego, vive na miséria, ganha algum dinheiro para o voltar a perder, recupera o emprego, pede-a em casamento e não casa com ela mas nunca a esquece. :) É uma boa história!

Mais dos Contos de Eça de Queirós nos próximos posts.

Boas leituras!

janeiro 21, 2011

Flashman, A Odisseia de Um Cobarde - George MacDonald Fraser

"Pode um homem que foi expulso da escola por andar sempre bêbado, que seduziu a amante do próprio pai, que mente com quantos dentes tem e é um cobarde desavergonhado no campo de batalha, protagonizar uma série de triunfantes aventuras na era vitoriana?
A escandalosa saga de Flashman, herói e soldado, mulherengo e agente secreto relutante, emerge numa série de memórias campeãs de vendas em que o herói gingão revê, na segurança da velhice, as suas proezas na cama e no campo de batalha."

Este livro é muito divertido, mas isso provavelmente não será novidade para vocês. O que talvez não saibam ainda é que para além de divertido é também muito imaginativo, inteligente e está muito bem escrito. Quase acreditamos que Flashman realmente viveu a vida que George MacDonald Fraser inventou para ele e que divertido teria sido se fosse mesmo verdade! Muito divertido digo-vos eu... Que sacana sortudo é Harry Flashman!

Harry Flashman é o rufia do livro de Thomas Hughes, Tom Brown no Colégio, e Flashman, A Odisseia de Um Cobarde é o relato da sua vida depois de ter sido expulso do tal colégio de Tom Brown, por embriaguez. Flashman apresenta-se a si mesmo como "alto, imponente, bem-parecido (...) um malandro, mentiroso, vigarista, ladrão e cobarde" e pelo que nos vai contando é tudo isso, sem tirar nem pôr. :)
Passado na Inglaterra, Índia e Afeganistão do século XIX, o livro relata-nos as peripécias de Flashman que, com dezanove anos, se torna militar por achar que vai ter uma vida descansada, rodeado de mulheres, em permanente festa no quartel da 11ª companhia, acabada de regressar da Índia. Engana-se, pois a sua personalidade exibicionista e a sua propensão para se meter em sarilhos e irritar as pessoas erradas levam-no a ser enviado para a Índia e mais tarde para o Afeganistão.
Este primeiro volume das memórias de Flashman concentram-se, na sua maioria, na passagem pelo Afeganistão, onde Flashman passa as passas do Algarve. Os afegãos não são um povo fácil de "domesticar", e o destacamento inglês em Cabul que recebeu Flashman, descobre isso da pior forma. No meio de tanto incompetência e cobardia por parte das chefias do exército, a verdade é que Flashman acaba por sobressair, não como cobarde, mas como um soldado valente e destemido. Quem diria? O facto de muita da sua reputação ter sido granjeada a partir de mentiras e mal-entendidos não importa para o caso. Afinal só ele conhece a verdade. :)
O maior mal-entendido de todos acaba por trazer Flashman de regresso a Londres como um herói nacional, com direito a medalha da Rainha e tudo. Só vos digo uma coisa, este livro põe-nos a reflectir sobre os mal-entendidos que transformaram os Flashmans da história mundial em heróis. Quanto da história como a conhecemos não é feita de percepções erradas, alterações propositadas de relatos e da idolatração da personagem que melhor se pôs a jeito ou que se limitou a estar no sítio certo à hora certa?

Embora o livro esteja escrito num tom divertido e leve, muito do que lá vem descrito não é tão leve assim. Afinal Flashman andava em guerra e na guerra existem muito poucas razões para rir. Contém relatos violentos de tortura, de perseguições e de actos de violência gratuita e irracional. Flashman é divertido, mas também é racista, machista, muitas vezes desumano e um ser desprezível que comete actos reprováveis sem qualquer tipo de arrependimento ou remorso. É por isso que gostamos menos dele? Nem por isso, alturas houve em que até senti alguma pena do desgraçado que parecia um autêntico íman para problemas. Mas também houve alturas em desejei que sofresse só mais um bocadinho, antes de ser salvo, mais uma vez por um inesperado golpe de sorte. Flashman é assim, encantador! :)

Gostei bastante do livro, não sabia bem o que iria encontrar e estava apreensiva por ser um livro rotulado como cómico e divertido. Não é fácil um livro fazer-me rir e, embora tenha dado algumas risadas, o livro não é feito de piadas fáceis, tem um sentido de humor com o qual me identifiquei e por estar todo ele muito bem escrito é realmente um livro que me deu muito prazer ler.
Quero ler o próximo, Royal Flash, já editado pela Saída de Emergência e fiquei até curiosa por ler o Tom Brown no Colégio, que tenho aqui em casa e que não me recordo de alguma vez ter lido.

Recomendadíssimo e preparem-se para passar um bom bocado na companhia desta criatura extraordinária que é Harry Flashman.

Excerto:
"Inclinaram-se quatro cabeças em resposta, e uma assentiu - era a Sra. Morrison, alta e de nariz aquilino, em quem se via toda a beleza murcha de um abutre. Fiz um inventário rápido das filhas: Agnes, peituda e morena, bonita - serviria. Mary peituda e feia - não. Grizel, magra e deslavada e ainda colegial - não. Elspeth não se parecia com nenhuma das outras. Era linda, loura, de olhos azuis e faces rosadas, e só ela sorria para mim com o sorriso aberto e simples de quem é verdadeiramente estúpida. Marquei-a logo, e dediquei toda a atenção à Sra. Morrison."

Nota: As notas do autor estão no fim do livro, antes do excerto do livro Blasfémia, do Douglas Preston (não sei se outras edições têm excertos de outros livros). Não as encontrei durante algumas páginas... Cheguei a pensar que o livro tinha defeito... :p

janeiro 17, 2011

O Amor Nos Anos de Chumbo - E. S. Tagino

"Estamos no finais de 1837, em plena Guerra Civil entre liberais e miguelistas. O brigadeiro José Joaquim de Sousa Reis, mais conhecido por Remexido, Comandante do Exército do Sul por nomeação do proscrito D. Miguel, atravessou todo o Alentejo e veio atacar Grândola. Este ataque - que marca o início da nova estratégia da guerrilha miguelista que se irá estender a toda a planície alentejana - é o ponto de partida de O Amor nos Anos de Chumbo.
Através de uma tórrida e triangular história de paixões, E, S, Tagino transporta-nos a um tempo em que, sobre as cinzas do antigo regime e enquanto o romantismo florescia no coração dos poetas, os frades egressos, com a extinção das ordens religiosas e a confiscação dos conventos, vagueavam pelos campos; os barões, disfarçados de liberais, abocanhavam o cadáver do país, e o vírus do caciquismo se instalava no corpo apodrecido da Nação.

Com o Estado na bancarrota, sob a pressão inglesa que ameaçava tomar-nos a Índia, com as diversas facções do
Setembrismo a digladiarem-se publicamente e uma revolta camponesa generalizada, O Amor nos Anos de Chumbo retrata uma realidade decadente onde, apesar de tudo, o amor sem barreiras, alguma consciência social e o lento despertar do Povo são sinais, ténues mas esperançosos, de uma possível regeneração."

Com o fim oficial da Guerra Civil entre liberais e miguelistas, em 1834, nem todos os miguelistas depuseram as armas. Uns foram para Espanha onde, com o apoio dos Carlistas continuaram a lutar pela causa de D. Miguel, outros criaram movimentos de guerrilha que lutavam, em território nacional, no Alentejo e nas serras algarvias. É neste contexto histórico que se desenrola o livro O Amor nos Anos de Chumbo de E. S. Tagino.
Rafael Leocádio, um dos membros da guerrilha do brigadeiro Remexido é recrutado para ser uma espécie de espião/elo de ligação entre os apoiantes de Lisboa e o valoroso Exército do Sul. De origem algarvia, é um jovem descendente de corajosos seguidores da causa miguelista, que viu parte da sua família morrer às mãos dos liberais. Juntar-se à guerrilha foi por isso algo natural. Rafael é um rapaz corajoso, inteligente e com bom coração que luta, por convicção ao lado dos companheiros da guerrilha, reconhecidos e apoiados pelo exilado D. Miguel.
É em Grândola que vai levar a cabo a sua vida dupla onde, para os grandolenses é apenas um comerciante e uma novidade que acabam por estimar. É lá também que conhece as duas mulheres da sua vida, Quinita e Isabel. Joaquina Luísa, ou Quinita, é a filha de uma das famílias abastadas da vila, os Vasconcellos, apoiantes de Rafael na sua missão, sendo os únicos que conhecem a sua verdadeira identidade. Isabel é a mulher do Tenente Oliveira, liberal destacado (ou desterrado) em Grândola. Isabel, depois de o marido ser transferido para o Algarve, nunca mais o vê e fica sozinha. É assim que Rafael a encontra, bela, desejável e sozinha, quando regressa a Grândola e se apaixona perdidamente por ela. Por Quinita, Rafael sente um amor parecido ao das histórias românticas, é um amor platónico, está apaixonado pelos seus belos olhos castanhos, que viu em sonhos ainda antes de a conhecer. É um sentimento pueril, quase infantil que o faz estremecer, mas que não o arrebata como o sentimento que nutre por Isabel, com quem mantém uma relação verdadeira, real, completa e secreta, como convém a uma mulher casada.
Através das viagens de Rafael pelo sul do país, Alentejo e Algarve, E. S. Tagino vai-nos dando a conhecer um período negro da história de Portugal, como só podem ser as guerras civis. Vamos seguindo o jogo de interesses dos que mudam de posição para que o poder nunca lhes seja retirado, dos que oprimem e emburrecem continuamente o povo no jogo das cadeiras e onde a mudança resultante é quase sempre insignificante para os que mais lutaram por ela. Enfim, coisas que podem ser perfeitamente adaptadas aos dias de hoje, com as devidas diferenças, porque infelizmente, ou o país não mudou muito ou a história tem uma tendência mórbida para se repetir, connosco a viver permanentemente num carrossel que não pára de girar e do qual temos dificuldade em sair.
Rafael vai assistindo a isso tudo e vai-se apercebendo também de que não existem maus nem bons na guerra que trava à anos e que esta só interessa a quem pode ganhar algo com ela, quer seja dinheiro, quer seja apenas prestígio ou um lugar na história.

Este é o segundo livro que leio de E. S. Tagino (a minha opinião do Mataram o Chefe do Posto aqui) e achei-o... mais ou menos. Não me entusiasmou por aí além, não é livro que me vá ficar na memória e em termos de entretenimento... bem, cumpriu mais ou menos. Na verdade achei a escrita pouco inspirada, os diálogos sofríveis e forçados, as personagens pouco desenvolvidas e, embora acredite que historicamente o livro seja irrepreensível, o mesmo não posso dizer da parte romanceada do livro. A "tórrida e triangular história de paixões" referida no sinopse foi por vezes tórrida, é verdade, mas a escrita de E. S. Tagino, neste livro não soube tornar esta história de amor, que escusava de ser triangular de tal forma um dos vértices foi desprezado pelo autor, numa história mais envolvente, onde criássemos alguma empatia com os protagonistas. Não foi o caso.
Valorizo a lição de história e todos os pormenores descritos no livro. Nesse aspecto acho que é um documento interessante mas, para o meu gosto pessoal, foram demasiados os pormenores históricos e pareceram-me sempre uma amálgama confusa de informação, onde encontrar um fio condutor foi difícil. Uma imensidão de nomes que não conheço e que poderiam ter sido mais bem explorados, para que verdadeiramente me importasse com o seu destino, ou sentisse algum reconhecimento pelo papel que tiveram na história do país. Mas isso, mais uma vez, não aconteceu e o facto de não ter vontade de pesquisar mais sobre eles, diz mais do que qualquer outra coisa que possa acrescentar sobre a incapacidade que senti, por parte do autor em criar uma história que fosse fluída e onde a parte ficcional casasse na perfeição com os factos históricos. Depois de ter lido este livro, não me sinto mais capacitada para falar sobre a guerra civil nem sobre os anos sangrentos que se seguiram e, comigo, o livro acabou por não conseguir cumprir com os objectivos.

Tenho a certeza de que lerei mais livros deste autor, até porque gostei do Mataram o Chefe do Posto e, não será uma obra menos inspirada que me fará desistir de E. S. Tagino, mas a este, não o posso recomendar.

Boas leituras!

Excerto:
"Pela primeira vez, tinha-se confrontado com o outro lado da questão. Até aí, o seu ponto de vista e o dos seus camaradas comungavam das mesmas coordenadas: de um lado estavam os malhados; do outro lado estavam os nossos. (...) Finalmente, dera-se conta de que 34 era a repetição de 28 e que, de ambos os lados, havia as mesmas culpas, as mesmas queixas e as mesmas recriminações. (...) E o desenho argênteo da Lua, assim abundantemente revelado, recordou-lhe as noites inesquecíveis da infância em que, ao lado do Avô, deitado de costas na açoteia da casa grande do morgado de Apra, ia descobrindo o mapa luminoso que se abria, escancarado à sua frente:
- Avô, porque é que vemos sempre a mesma face da Lua?
- Ora, Rafael, isso só pode ser porque a Lua tem vergonha da outra face.
"

janeiro 13, 2011

As 3 Vidas - João Tordo

"Que segredos rodeiam a vida de António Augusto Millhouse Pascal, um velho senhor que se esconde do mundo num casarão de província, acompanhado de três netos insolentes, um jardineiro soturno e um rol de clientes tão abastados e influentes como perigosos e loucos? São estes mistérios que o narrador - um rapaz de família modesta - procurará desvendar durante mais de um quarto de século, não podendo adivinhar que o emprego que lhe é oferecido por aquela estranha personagem se irá transformar numa obsessão que acabará por consumir a sua própria vida.
Passando pelo Alentejo, por Lisboa e por Nova Iorque em plenos anos oitenta - época de todas as ganâncias - e cruzando a história sangrenta do século XX com a das personagens, As Três Vidas é, simultaneamente, uma viagem de autodescoberta através do "outro" e a história da paixão do narrador por Camila, a neta mais velha de Millhouse Pascal, e do destino secreto que a aguarda; que estará, tal como o do avô, inexoravelmente ligado à sorte de um mundo que ameaça, a qualquer momento, resvalar da corda bamba em que se sustém."

Este livro é das melhores coisas que li nos últimos tempos! É o que me ocorre dizer agora que cheguei ao fim, não sem alguma pena por ter de o fechar e largar. João Tordo entrou, definitivamente no meu coraçãozinho de leitora e hei-de devorar tudo o que escreveu e escreverá. Muito, muito bom!
As leituras deste início de ano estão a ser tão boas, que até tenho medo de pegar no próximo... :) Só posso desejar que assim continue e que sejam sintomas de um ano cheio de boas descobertas literárias, mas não só, entenda-se.

Quanto ao livro o que será que posso dizer sobre ele? Bem, primeiro a história é fantástica e as personagens idem idem, aspas aspas. João Tordo consegue fazer-nos sentir medo, apreensão e desperta-nos de tal maneira a curiosidade e o interesse, que largar o livro é difícil. Para onde é que a história vai levar o narrador, de quem nunca sabemos o nome? Quem é Millhouse Pascal, e porque é que é procurado por homens tão perigosos e perturbados na sua Quinta do Tempo, uma propriedade perdida no Alentejo dos anos oitenta? Que papel teve Millhouse na história sangrenta do século XX? Quem é Artur, o jardineiro que raramente vemos a jardinar, e fiel empregado de Millhouse? Conseguirá o jovem sem nome, o rapaz que nunca cresceu, alcançar Camila do alto da sua corda bamba? Conseguirá alguma vez viver sem ela, esquecê-la e aos acontecimentos que marcaram a sua passagem pela Quinta do Tempo?
Perguntas e mais perguntas, mistérios e mais mistérios e uma imaginação ilimitada preenchem as páginas deste livro. Dizer mais seria redutor e, por isso fico-me por aqui, porque há livros assim, difíceis de explicar.

Recomendadíssimo! :)

"Foram horas longas. Assim que chegámos à estrada, Artur ligou o rádio, e a voz do locutor, intercalada com música, foi o único som que ouvimos durante grande parte do caminho. A certa altura o jardineiro começou a assobiar, acompanhando uma canção. Olhando o seu perfil, agarrado ao volante, de mãos longas e venosas, queixo proeminente e olhos vítreos, perguntei-me quantas vezes teria ele feito aquela mesma viagem. Tive, de repente, a terrível certeza de que Artur lidava frequentemente com a morte."

Nota: Este foi um dos dois livros ( o outro é a próxima leitura) que trouxe da Biblioteca e agora estava aqui a pensar que não o quero devolver... :/ Será que o posso "perder"? ;)

janeiro 11, 2011

Este País Não é Para Velhos - Cormac McCarthy

"Quando Llewelyn Moss encontra uma mala cheia de dinheiro, depois de um tiroteio entre narcotraficantes, pensa que lhe saiu a sorte grande. Mas Llewelyn não sabe que o seu acto o acaba de converter numa das pessoas mais procuradas no Texas. Entre os seus múltiplos perseguidores encontra-se Anton Chigurh, um implacável assassino armado com uma estranha pistola pneumática, cuja máxima concessão à piedade consiste em atirar uma moeda ao ar para decidir o destino das suas vítimas. Também o procurará o velho Xerife Ed Tom Bell, que está disposto a fazer o que for necessário para ajudar as pessoas que jurou proteger..."

Desde que vi o filme A Estrada, baseado na obra homónima de Cormac McCarthy, que andava muito curiosa para ler um dos livros deste escritor norte-americano. E assim Este País Não É Para Velhos veio parar às minhas mãos. No início confesso alguma desilusão com a escrita de McCarthy, repetitiva e a imprimir um ritmo ao livro um pouco "pastoso", mas ao chegar ao fim do livro a verdade é que gostei, a leitura acaba por entrar no ritmo imposto pelo autor, acabando por fazer sentido o ritmo que ele escolheu para o livro e por isso posso dizer que gostei muito do livro.

A história passa-se no Texas e ao longo da famigerada fronteira EUA/México. Llewelyn Moss, um soldador e veterano da guerra do Vietname, numa das suas saídas para caçar, encontra uma mala cheia de dinheiro. Ignorando todos os sinais de perigo, ou seja todos os mortos que faziam companhia à mala, Llewelyn pega na mala e leva-a consigo. Acabou de lhe sair a sorte grande, pensou ele. Uma vez que se tratava de muito dinheiro e de dinheiro ligado ao tráfico de droga, Llewelyn torna-se, de um momento para o outro, o homem mais procurado do Texas. Sabendo-se perseguido, Llewelyn foge com a mala cheia de dinheiro. O que ele não podia imaginar é que um dos seus perseguidores é um assassino implacável e violento, Anton Chigurh, um autêntico psicopata.
Chigurh é uma personagem sinistra que não faz concessões na sua vida, para ele tudo está interligado e não lhe compete a ele decidir, apenas agir de acordo com as consequências que os actos dos outros desencadeiam. Não é por decisão dele que Llewelyn, e todos os que com ele se cruzam, têm de morrer. Afinal, não foi que ele colocou a pasta de dinheiro nas mãos de Llewelyn.
O livro vai narrando a perseguição de Llewelyn e toda a carnificina que dela resulta. Muita violência, muito sangue e muitos mortos constituem este livro. Mas nem só disto vive a história, aliás o mais interessante da história é mesmo o que se refere à personagem do Xerife Bell, um homem competente que foi apanhado no meio da carnificina perpetrada por Chigurh. Homem que o Xerife Bell tem dificuldade em compreender, que teme e que o faz repensar toda a sua carreira. O Xerife Bell é um homem de boa índole e que começa a sentir-se deslocado num mundo que, em pouco anos, se tornou tão violento. A parte que mais me cativou neste livro foram aquelas onde o Xerife Bell, como narrador, partilha com o leitor aquilo que o atormenta. A sensação de que "Este país não é para velhos" é algo que o acompanha todo o livro, enquanto vai tentando apanhar Chigurh e salvar Llewelyn de uma morte mais que certa. A escrita de Cormac McCarthy é também diferente nestes trechos do livro, mais pulsante e mais viva.

"A outra coisa são os velhos, e eu não consigo deixar de pensar neles. Olham para mim e vejo-lhes sempre uma pergunta estampada no rosto. Não me recordo de as coisas serem assim há uns anos. Não me lembro de ser assim quando eu era xerife nos anos cinquenta. Olhamos para eles e nem sequer têm um ar confuso. Parecem enlouquecidos, nem mais. Isto incomoda-me. Ficamos com a impressão de que eles acordaram e não sabem como é que vieram parar ao lugar onde estão. Bom, num certo sentido não sabem."

Enfim, gostei bastante deste livro. Não fosse a escrita de McCarthy ser, à falta de melhor adjectivo, esquisita porque faz um uso exagerado da conjugação "e", e o livro teria deixado em mim ainda melhor impressão. Não sei se esta predilecção pelo "e" está presente nos outros livros do escritor, mas julgo que neste em particular funcionou um pouco para induzir no leitor uma sensação de adormecimento, perante a violência que ia sendo descrita. Um pouco como quando vemos imagens de extrema violência a que, por vermos tantas vezes, na televisão ou onde quer que seja, somos já um pouco indiferentes. Terá sido essa a intenção, pelo menos assim espero, porque sem ser neste contexto o exagero de "e" é muito irritante! :)

Vou ler outros livros dele, de certeza! :)

Nota: Este livro de Cormac McCarthy foi adaptado ao cinema, pelos irmãos Cohen, em 2007. No Country For Old Men ganhou 4 óscares: o de melhor director, melhor actor secundário (Javier Bardem, no papel do assustador Chigurh), melhor imagem e melhor argumento adaptado. Confesso que quando vi o filme pouco percebi... É um filme estranho, no mínimo, mas está fiel ao livro. Neste caso gostei mais do livro, se bem que agora até gostava de voltar a ver o filme, pode ser que agora perceba mais do que para lá acontece! :p

Fica aqui o trailer e, boas leituras!


janeiro 07, 2011

Livro - José Luís Peixoto

"Este livro elege como cenário a extraordinária saga da emigração portuguesa para França, contada através de uma galeria de personagens inesquecíveis e da escrita luminosa de José Luís Peixoto. Entre uma vila do interior de Portugal e Paris, entre a cultura popular e as amais altas referências da literatura universal, revelam-se os sinais de um passado que levou milhares de portugueses à procura de melhores condições e de um futuro com dupla nacionalidade. Avassalador e marcante, Livro expõe a poderosa magnitude do sonho e a crueza, irónica, terna ou grotesca, da realidade. Através de histórias de vida, encontros e despedidas, os leitores de Livro são conduzidos a um final desconcertante onde se ultrapassam fronteiras da literatura."


José Luís Peixoto nunca foi um autor que me chamasse à atenção, aliás sempre achei que não gostava dele... Não faço ideia de onde vinha essa certeza, que me lembre nunca tinha lido nada dele até hoje. Pode ter acontecido ter-me passado pelas mãos algum livro dele, quando era muuuiittoooo mais nova e não ter gostado, mas sinceramente não me recordo. Aponto mais para o facto de ter, por alguma razão, confundido o nome dele com o de algum autor que não gostei. É possível, visto a minha memória para nomes ser má e o meu conhecimento de escritores portugueses contemporâneos ser vergonhosamente deficiente. :/ O importante aqui é que esse erro foi corrigido e José Luís Peixoto entrou na lista dos escritores que gosto e que quero continuar a ler. :)

O Livro de José Luís Peixoto está dividido em duas partes, claramente distintas uma da outra. Na primeira parte o autor narra a história de amor de Ilídio e Adelaide, numa aldeia do interior de Portugal. Um amor feito de olhares, de sentimentos não falados, de silêncios e de desencontros gerados pela miséria, pela vergonha, pela ignorância e pela inveja. Quando Adelaide é forçada a partir para França, Ilídio parte atrás dela. Adelaide e Ilídio servem de pretexto para que conheçamos as condições duras da viagem mas, também a solidariedade dos espanhóis que ajudavam os portugueses até à fronteira francesa. É através deste dois, que partiram por razões completamente diferentes das dos seus companheiros de viagem, que José Luís Peixoto nos vai dando conta das condições difíceis que esperavam os portugueses em França com a descriminação e o trabalho duro.
Esta primeira parte do livro é angustiante, é triste, miserável como a vida de quase todos os que nele aparecem. José Luís Peixoto consegue, com as palavras e pela forma como as utiliza, transmitir emoções fortes, consegue chocar-nos, deixar-nos confusos e muitas vezes enojados, apanha-nos desprevenidos e somos confrontados com situações que nos deixam sem defesas e sem reacção, engolimos em seco. Ao mesmo tempo o Livro consegue fazer-nos sorrir, porque nem tudo na vida são desgraças, porque existem situações caricatas, estranhas, quase cómicas e porque as personagens são na sua essência puras, inocentes e a esperança acaba por ser um sentimento que vagueia pelas páginas do livro. De alguma forma, temos a certeza de que tudo acabará bem. :)
A segunda parte do livro é mais leve, o estilo de escrita muda completamente e o cenário é mais luminoso e risonho. Não será coincidência que a primeira parte acabe pouco dias depois do 25 de Abril. :) Aqui José Luís Peixoto, como diz a sinopse, ultrapassa as fronteiras da literatura e interage com o leitor, provocando-o. Esta parte termina a história, não sem alguma estranheza pela personagem que nela nos é apresentada... Quase irreal, quase uma personagem ela própria. :)

Porque vim de um livro completamente diferente (The Cider House Rules) em termos de escrita, John Irving enche as histórias de pormenores e normalmente chego ao fim dos livros dele cansada, fisicamente cansada, entrar na escrita mais simples, sem ser linear de José Luís Peixoto custou-me um pouco. Adaptar-me a uma linguagem mais próxima dos sentimentos, mais límpida foi uma questão que tive de ultrapassar no início. Mas depois desse período de adaptação a leitura, embora feita de uma forma calma, foi de certa forma compulsiva. Não acho que este livro deva ser um livro de leitura rápida mas sim um daqueles em que saboreamos as palavras e a musicalidade da escrita.
Gostei e agora gostava de ler um dos anteriores do José Luís Peixoto pois, pelo que me consta este é diferente de todos os outros.

Recomendo sem reservas!

Boas leituras!

janeiro 03, 2011

The Cider House Rules - John Irving



"The reason Homer Wells kept his name was that he came back to St Cloud's so many times, after so many failed foster homes, that the orphanage was forced to acknowledge Homer's intention to make St Cloud's his home."


"Homer Wells' odyssey begins among the apple orchards of rural Maine. As the oldest unadopted child at St Cloud's orphanage, he strikes up a profound and unusual friendship with Wilbur Larch, the orphanage's founder - a man of rare compassion and an addiction to ether. What he learns from Wilbur takes him from his early apprenticeship in the orphanage surgery, to an adult life running a cider-making factory and a strange relationship with the wife of his closest friend..."

Estou a ter sérias dificuldades em escrever a minha opinião sobre este livro. O problema não reside em saber se gostei ou não, porque aí a resposta é inequivocamente sim!, gostei e muito! A questão é que, tal como nos outros livros do John Irving que já li, as histórias são tão completas, tão cheias de tudo, que é difícil decidir o que é importante ou não referir, porque é tudo importante, porque nada acontece por acaso e porque os livros dele mais parecem uma temporada completa de uma série televisiva... :)
Depois de muito escrever e muito apagar decidi manter esta opinião o mais simples possível, e não acrescentar à sinopse muito mais do que já está dito.

Homer Wells é o orfão mais velho a viver em St Cloud's, um orfanato rodeado por habitações abandonadas, numa cidade quase fantasma. A única ligação ao mundo civilizado é feita pela estação de comboios, onde chegam as mulheres que procuram St. Cloud's para terem orfãos, deixando os seus bebés no orfanato, ou para fazerem abortos, prática que o Dr. Wilbur Larch faz, ilegalmente, a todas as mulheres que o procuram.
Dr. Wilbur Larch é o fundador do orfanato e um viciado em éter, que começou a utilizar para anestesiar as dores provocadas pela gonorreia, doença transmitida por uma prostituta, que foi a primeira e única experiência sexual da sua vida. É um homem de bom coração, de convicções fortes, que cria Homer Wells, a única criança da história do orfanato a quem não conseguiu arranjar uma família, como o filho que nunca teve, educando-o para ser útil, ensina-lhe tudo que sabe sobre trazer ao mundo orfãos ou abortos. Prepara-o para ser o seu substituto quando a altura certa chegar.
No entanto Homer, como qualquer adolescente, começa a sentir necessidade de conhecer o mundo fora de St Cloud's. Depois de se aperceber de que, embora concorde com o que Wilbur Larch faz ilegalmente, ele nunca seria capaz de o fazer, decide partir com o casal jovem que aparece em St Cloud's, Candy e Wally. Wilbur é um acérrimo defensor da legalização do aborto mas também o é dos seus orfãos e, por isso, deixa que Homer parta para viver a sua vida e fazer as suas próprias descobertas. Nunca deixa de acreditar, no entanto, que Homer irá voltar, porque ele pertence a St Cloud's. O orfão que foi devolvido tantas vezes tem o seu lugar no orfanato e só lá é que ele poderá ser útil.
Homer parte com Wally e Candy, por quem se apaixonou desde a primeira vez que a viu. Parte para Ocean's View onde aprende tudo o que há para aprender acerca do fabrico de sidra de maçã. Lá conhece pessoas fantásticas que o ajudam e acolhem como se ele fosse um deles. Será que finalmente Homer Wells conseguiu ser adoptado?
É encantadora a forma como vamos acompanhando as descobertas de Homer num mundo tão cheio de novidades e onde a inocência de Homer pode ser desarmante.
Homer nunca perde o contacto com St Cloud's onde Wilbur Larch nunca desistiu de o tornar no seu sucessor. Torná-lo médico é o seu objectivo, mesmo que para isso tenha de lhe construir uma nova identidade e dar-lhe uma nova vida. Acabará Homer por aceitar esta nova vida que Larch escreveu para ele? Estará ele disposto a ir contra a sua decisão de nunca praticar um aborto? Veremos... :)

E a história de uma forma muito resumida é esta. Custa-me deixar de fora desta opinião personagens como a Melony, que tão importante é para o desenrolar dos acontecimentos, as enternecedoras enfermeiras Edna e Angela, o Angel, Ray Kendall e a Olive Worthington e todos os trabalhadores da quinta, porque existe tanto mais para dizer acerca deste livro e sobre os temas que aborda. O tema central é o aborto, mas fala mais sobre as mulheres e a sua vida nos anos 40 e 50 do século passado. Fala também de racismo, de sexo, de crianças abandonadas e indesejadas, de adopção, de violência doméstica e de sacrifício mas, também fala de amor, de heróis, de amizade e de justiça. Não pensem, no entanto, que o tom do livro é pesado e deprimente. Nada disso, o tom é sempre de permanente ironia e comédia contida.
Se tem momentos dramáticos? Claro que tem, momentos como aquele em que Curly Day pensou que iria ser adoptado pelo casal bonito (Candy e Wally), que ele iria ser escolhido porque era o "melhor orfão" e ficou despedaçado por estes terem partido com Homer. É claro que Curly percebeu tudo mal, Candy e Wally não estavam lá para adoptar ninguém, mas não deixa de ser angustiante a aflição do rapazinho. Toda a situação desenrola-se de forma muito caricata e de certa forma cómica, mas não deixa de ser um momento particularmente triste do livro. Tal como é triste a forma como John Irving descreve a chegada e partida das mães que não o querem ser, a vergonha e a dor estampadas nos seus rostos. É triste e chocante a descrição dos abortos, mas também o é a descrição dos abandonos e das razões que levam as mulheres a cometerem tais actos.
John Irving é um autor pouco comum, que escreve autênticas histórias de vida, que nos apresenta personagens fantásticas e permite que acompanhemos as suas vidas desde que nascem até à sua morte, tornado-as tão familiares que nos sentimos abandonados quando lemos a última frase do livro. E agora, o que vai ser deles?, pensamos.

Gostaria que ao lerem esta opinião ficassem com um gostinho do que são as histórias do Irving, mas isso é impossível porque os livros dele são estranhos, divertidos, absurdos, dramáticos, tristes, envolventes, chocantes, polémicos e viciantes. Só lendo é que se consegue apreender todo o génio de John Irving como o escritor e como contador de histórias.
Existem autores que não nos fazem correr para a livraria mais próxima quando lançam um novo livro mas que, quando lemos nos fazem pensar no quanto sentimos a sua falta. Ler John Irving, para mim é isso: não corro para a livraria para comprar os seus livros, dele apenas li quatro livros e com intervalos de tempo grandes entre eles, mas de cada vez que o leio é como encontrar um velho amigo.

Não só recomendo como exijo que leiam pelo menos um livro dele para verem se tenho razão ou não! :p Recomendo todos os que já li dele (a minha opinião sobre Um filho do Circo aqui) mas, este The Cider House Rules (As Regras da Casa na edição portuguesa há muito esgotada) e o The World According to Garp (O Estranho Mundo de Garp na edição portuguesa) simplesmente genial, talvez sejam mais emblemáticos do que é a escrita de Irving. Leiam!!! :)

Para os que possam estar renitentes devido ao tema do aborto, esclareço que este livro não é um livro pró-aborto, não sendo também um livro que condene o aborto. O que este livro espelha é a uma realidade e todos os argumentos apresentados nele são verdadeiros e todas as justificações justas. Não me fez mudar o que penso sobre o assunto, nem veio revalidar a minha opinião. Quem é a favor do aborto não o é de ânimo leve e não o é sem compreender alguns dos argumentos dos que tem outra forma de pensar. Para mim é e será sempre, uma questão de saúde pública, de justiça social, de igualdade de direitos e uma questão acima de tudo pessoal. Se seria capaz de o fazer? Provavelmente não, mas essa seria uma decisão minha e não algo imposto por terceiros. Que não seja o tema do aborto a afastar-vos deste livro, até porque, embora seja um assunto importante para a história, não é de todo A história.

Boas leituras!


Nota: John Irving tem visto alguns dos seus livros serem adaptados para o cinema (livros adaptados ao cinema aqui). Foi o caso do The Cider House Rules. Nunca vi o filme mas pelo que já li sobre ele está bastante diferente do livro. John Irving trabalhou nesta adaptação que foi galardoada com dois Óscares, o de Melhor Actor Secundário para Michael Caine (Dt. Larch) e o de Melhor Argumento Adaptado.

Fica aqui o trailer do filme, que conto ver brevemente: