Numa fase inicial estava a achar a história muito banal, sem nada que sobressaísse, a não ser as frases gigantescas que formam parágrafos inteiros sem pontos finais. :) Os acontecimentos são contados sem que o autor nos envolva muito nos mesmos, as descrições são um pouco frias e distantes. Kurt Crüwell parecia-me demasiado complacente com a sua situação de soldado à força e pouco incomodado com a realidade dos factos. Depois a história vai crescendo de intensidade e, então ocorre o episódio na aldeia de Mieux, a 2 de Janeiro de 1941, o dia em que Kurt Crüwell ficou insensível. Nesse dia, Kurt assistiu a uma amostra do mal que o ser humano pode provocar no seu semelhante e, o que viu foi demasiado para o alfaiate de Bielefeld, na Alemanha que, com 24 anos se viu envolvido na 2ª Guerra Mundial ao ser recrutado pelos nazis.
Nesta altura é já difícil largar o livro, embora a segunda parte deste seja, de certa forma, mais calma. Quando entramos na terceira e última parte, Kurt ainda sem qualquer sensibilidade, está em Inglaterra, a receber a notícia de que vai ser pai e ficamos felizes por ele. Depois Kurt ouve a palavra Schneider - Alfaiate - vinda de três homens vestidos de preto. Kurt em Inglaterra era de origem francesa, desde que lá chegara nunca mais falou alemão, até já sonhava em inglês. Ouvir aquela palavra, de repente, deixou-o atordoado, ou o equivalente ao que sente um homem incapaz de sentir. Essa palavra leva-o, numa espécie de transe, a perseguir os estranhos que a pronunciaram. O livro não acaba sem que Kurt volte a demonstrar a capacidade de, fisicamente, reagir a uma emoção. No fim, Kurt volta a sentir...
O livro tem um fim surpreendente e inesperado e que me deixou com um nó na garganta. São poucos os livros que me emocionam e, embora este não o faça de uma forma óbvia, a verdade é que dei por mim tensa e fechei o livro angustiada e com vontade de chorar... Não é fácil, como já disse, e era algo que não estava a contar que acontecesse com este livro, aparentemente tão banal e que no início parecia prometer tão pouco.
Inicialmente a leitura pode ser menos fluída, por causa do tamanho das frases que são realmente muito longas. Ainda o meu orientador de mestrado dizia que as minha frases eram longas demais... Dei-lhe razão e desde então é algo que tento controlar mas, agora que encontrei alguém que é bem pior, o meu "problema" com os pontos finais perdeu algum significado. ;)
Gostei das perguntas que o livro vai colocando acerca da capacidade do corpo humano de resistir, ou não, à maldade alheia e ao horror. Gostei da forma como está estruturado, com capítulos muito pequenos e de rápida leitura. Louvo a capacidade de Ricardo Menéndez Salmón de ter feito um livro com tão poucas páginas mas que são as necessárias; mais uma teria sido demais e menos uma teria sido de menos. É uma capacidade que nem todos os escritores possuem. RMS é sucinto mas extremamente eficaz a passar a mensagem que pretende.
Gostei muito e recomendo. Agora que foi editado em Portugal o terceiro volume desta "Trilogia do Mal" ( A Ofensa, Derrocada e O Revisor) a ver se compro os três (este veio da Biblioteca - mais um que gostaria de reportar como perdido...).
Boas leituras! :)
Excerto:
"Face às agressões do mundo, o corpo protege-se. Um bacilo activa as suas defesas; um aguaceiro eriça os pêlos dos braços, nuca e pernas; um alimento envenenado relaxa os esfíncteres. Mas, e o horror? Como reage o corpo de um homem face à presença do horror? Grita, sim. E faz com que o coração bombeie mais sangue, sim. Ou, pelo contrário, paralisa os músculos para não ser agredido. (...) Mas pode um corpo demitir-se da realidade? Pode um corpo face à agressão do mundo, face à fealdade do mundo, face ao horror do mundo, subtrair-se às suas funções, recusar-se a continuar a ser corpo, suspender as suas razões, abdicar de ser o que é, isto é, abdicar de ser uma máquina sensível? Pode um corpo dizer: «Basta, não quero ir mais longe, isto é demasiado para mim»? Pode um corpo esquecer-se de si próprio?"